Hacker da Vaza Jato encontrou Bolsonaro
Fotos Ruy Baron/BaronImagens; Sergio Dutti/
O carro de um agente da Polícia Legislativa da Câmara estaciona às 6h12 da quarta 10 em frente ao prédio onde fica o apartamento funcional da deputada bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP), na Asa Sul de Brasília. O motorista desce, ajeita o uniforme e entra como passageiro em um outro veículo, um Corolla cinza de vidros escuros e placas frias, que adentra pela garagem subterrânea do prédio. Às 6h35 o automóvel deixa o local, a caminho de uma missão secreta. Minutos depois, chega ao Hotel Phenícia, de onde sai um sorridente Walter Delgatti Neto, o hacker que ficou famoso por roubar mensagens do Telegram trocadas por membros da Lava-Jato, feito que contribuiu para a derrocada da maior operação de combate à corrupção da história do país e para a reabilitação eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Às 6h52, finalmente, o Corolla chega ao seu destino: adentra o Palácio da Alvorada, onde o presidente Jair Bolsonaro (PL) aguarda Delgatti para uma reunião fora da agenda oficial que tem na pauta o seu tema preferido, quase uma obsessão: a segurança das urnas eletrônicas, alvos frequentes de ataques infundados do mandatário na busca pela reeleição. Como se sabe, a disputa tem como favorito o ex-presidente Lula, justamente o político que deixou a prisão graças à repercussão do conteúdo das mensagens roubadas pelo hacker. Outra das ironias da agenda secreta é que, devido à Vaza-Jato, como ficou conhecido esse episódio, Delgatti, depois de se tornar réu como líder do grupo responsável pela invasão, recebeu apoio de pessoas ligadas ao PT, homenagens de artistas de esquerda e solidariedade de políticos como o senador Renan Calheiros (MDB), um dos principais apoiadores de Lula na atual campanha, que chegou a apresentar um projeto para anistiar o hacker. Às 8h49, Delgatti deixou o Alvorada com a expectativa de que vai ser integrado à campanha de Bolsonaro como peça de propaganda. A ideia absurda é usar sua fama de invasor de sistemas para atacar a credibilidade das urnas eletrônicas nas eleições.
Bolsonaro deixou o Alvorada poucos minutos depois do encontro com Delgatti. Ainda parou com sua comitiva no tradicional cercadinho montado em frente ao palácio para acomodar a sua claque mais fiel, que o aguarda todas as manhãs para ouvir declarações sobre os assuntos da semana. O carro que transportava o hacker saiu logo em seguida, atrás da comitiva presidencial. Dali, Bolsonaro seguiu para o Encontro Nacional do Agro, um evento oficial que teve feições de agenda de campanha. E voltou à carga contra o sistema eleitoral. “Nós temos mais que o dever, o direito de aperfeiçoar as instituições, desconfiar, debater. Que pipoca de democracia é essa que estão atacando? Nós queremos transparência, queremos a verdade, queremos terminar as eleições sem quaisquer desconfianças, seja qual for o lado”, disse à plateia de apoiadores. Voltou a criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, para ele, “não aceita sugestões” dos militares, e declarou que o que ele quer é “que o voto de cada um de vocês vá realmente para aquela pessoa”.
Na tarde da mesma quarta-feira, Zambelli e a assessoria do Palácio do Planalto negaram ao site G1 o encontro entre Bolsonaro e o hacker no Alvorada. O portal de notícias Veja.com confirmou o acontecimento e as fotos que ilustram a abertura desta reportagem fazem parte das provas de que ele realmente ocorreu. A reunião do Alvorada foi o desfecho de uma movimentação que começou dias atrás, a partir de uma articulação promovida por Zambelli. Na terça 9, Delgatti, o advogado Ariovaldo Moreira, que defendia o hacker no processo da Operação Spoofing — responsável pela prisão dos hackers pela Polícia Federal em 2019 —, e seu filho, o também advogado Matheus Moreira, estiveram no diretório nacional do PL, a sigla de Bolsonaro.
Lá, foram recebidos por Zambelli e pelo presidente da legenda, o ex-deputado Valdemar Costa Neto, em reunião que começou por volta das 11 horas. O grupo foi levado até o cacique do PL no carro de Bruno Zambelli, irmão da parlamentar e candidato a deputado estadual em São Paulo. A conversa começou repleta de elogios à competência do hacker em promover a reviravolta da Vaza-Jato. Envaidecido, ele discorreu com desenvoltura sobre as possibilidades de se invadir as urnas eletrônicas, sem dizer ali, no entanto, como faria isso com equipamentos que não são conectados à internet. A conversa inicial empolgou até o próprio Valdemar, visto como avesso às ideias tresloucadas de Bolsonaro de atacar o sistema de votação como parte da estratégia eleitoral. Aos poucos, porém, diminuiu ali a certeza sobre o sucesso de uma eventual invasão dos sistemas de votação e apuração. O foco mudou para uma possível grande jogada da campanha de Bolsonaro, que independia de as vulnerabilidades do processo serem verdadeiras ou não, tendo Delgatti como garoto-propaganda.
Afinal, se o homem que invadiu as mensagens trocadas entre os agentes da maior investigação de políticos da história simplesmente viesse a público alegando que as urnas são fraudáveis, muitas pessoas poderiam ficar em dúvida. O raciocínio é que, nessa hipótese, seria difícil até para a esquerda se contrapor a Delgatti, já que ele é tido como um ídolo desde as revelações da Vaza-Jato. “A hora que partiu para essa questão de o Walter afirmar que as urnas podem ser fraudadas aconteceu um mal-estar muito grande. Eu dei opção para o Walter ir embora comigo, disse que isso ia gerar um problema gigantesco para ele, para mim e para várias pessoas. Optei por pegar as minhas coisas e sair”, relatou a VEJA o advogado Ariovaldo Moreira. Ele vinha evitando confirmar o episódio até ser confrontado pelas evidências colhidas pela reportagem de VEJA. “Acho que as urnas são um assunto delicado, não tenho propriedade para falar sobre isso e penso que o Walter também não tem. Não vou compactuar”, acrescenta o advogado. Mesmo sem o apoio de Moreira, Delgatti seguiu em frente. Depois de sair da sede do PL, já sem o seu advogado, ele foi conversar com o marqueteiro Duda Lima, escalado pelo chefe do PL para produzir as peças eleitorais de TV e rádio da campanha de Bolsonaro. Os dois teriam tratado das urnas eletrônicas e de como o hacker poderia contribuir para a reeleição do presidente da República. Através da comunicação da campanha, Lima nega tal diálogo e diz que os dois se encontraram no hall do PL em um encontro fortuito.
Reforço improvável do bolsonarismo, Delgatti assumiu riscos ao viajar para Brasília a convite de Zambelli. Respondendo em liberdade pela acusação de ter invadido contas de Telegram, em uma ação penal que está pronta para ser sentenciada na 10ª Vara Federal do Distrito Federal (pode pegar até vinte anos de cadeia), ele está proibido de se ausentar de Araraquara, onde vive, sem comunicar ao juízo. No caso de Bolsonaro, as implicações de receber no Alvorada um réu confesso em desobediência à Justiça são morais e, principalmente, políticas, pois a ideia de usar o hacker para incendiar de vez o debate sobre as urnas eletrônicas ocorre justamente no momento em que há um movimento de parte do governo e da campanha à reeleição de tentar apaziguar os ânimos, após os ataques frequentes e ferozes do presidente contra o TSE e o STF.
No início da noite da mesma quarta, aliás, o presidente recebeu os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, do STF e do TSE, para uma reunião no Palácio do Planalto. Os dois foram levar o convite para que ele participe da posse de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral e de Lewandowski como vice, marcada para a terça-feira 16. O futuro chefe do tribunal é um dos principais alvos dos frequentes ataques de Bolsonaro, e também um de seus principais algozes no Judiciário, como relator de processos que investigam o presidente e seus aliados (veja reportagem na pág. 24). No encontro, Bolsonaro prometeu comparecer à posse. Ou seja, em mais um exemplo de seu estilo errático, o presidente emitiu sinais distintos nas reuniões com o hacker e com os ministros, o que deixa em suspense qual será seu comportamento daqui para a frente.
A aproximação entre Delgatti e a campanha de Bolsonaro se dá em um momento em que o hacker se sente abandonado pelo PT e, em especial, pelo ex-presidente Lula — que, a seu ver, muito se beneficiou com a divulgação das irregularidades cometidas pelos agentes da Lava-Jato, mas nunca fez um reconhecimento público sequer. Na visão de Delgatti e pessoas próximas, a partir do momento em que a Polícia Federal concluiu que ele hackeou autoridades por iniciativa própria, sem receber pagamentos nem obedecer a mandantes, o PT ficou liberado para retribuir financeiramente pela ajuda prestada, mas não o fez. Segundo Moreira, seu então cliente aceitou o convite para ir a Brasília após receber sinalizações, por meio de Zambelli, de que na capital federal ele teria oportunidade de obter um trabalho regular — Delgatti voltou a cursar direito, matéria pela qual demonstra grande interesse e conhecimento, mas tem encontrado obstáculos por questões de imagem e porque até hoje está proibido pela Justiça de acessar a internet. “Ele passa por grandes dificuldades financeiras, está meio desesperado”, afirma o advogado, que garantiu ter voltado a Araraquara ainda na madrugada de quarta-feira, horas antes do encontro entre o hacker e Bolsonaro no Alvorada. “Em dado momento da reunião no PL, o assunto se voltou para a questão de marketing e depois eu tive um certo desentendimento com a Zambelli sobre essa reunião com o presidente. Achei que estavam ali tentando — e isso foi percepção minha, não estou dizendo que foi a intenção deles — manipular o Walter, e não concordei”, relata o criminalista, que renunciou formalmente à defesa do hacker.
No fim da tarde da quarta, após a divulgação das primeiras notícias do envolvimento de Delgatti na campanha de Bolsonaro, Zambelli publicou em sua conta no Twitter uma foto dela com o novo aliado. “O homem que hackeou 200 autoridades, entre ministros do Executivo e do Judiciário brasileiro. Muita gente deve realmente ficar de cabelo em pé (os que têm) depois desse encontro fortuito. Em breve, novidades”, anunciou, aproveitando para fazer uma provocação à calva assumida do ministro Moraes. A aproximação marca uma reviravolta no tom do bolsonarismo com o hacker. No passado, quando a Vaza-Jato veio à tona, a deputada, que era uma grande defensora de Moro e da operação conduzida pela força-tarefa de Curitiba, chamou Delgatti de “bandido” e o comparou a Adélio Bispo, o homem que esfaqueou Bolsonaro em setembro de 2018, em Juiz de Fora (MG), na campanha eleitoral.
Como se vê, as ofensas ficaram para trás e a articulação conduzida por ela para usar o hacker no esforço de descrédito das urnas eletrônicas só mostra que, enquanto parte do governo tenta apagar o fogo gerado a partir das fagulhas das manifestações antidemocráticas, há gente por ali tentando jogar gasolina no clima incendiário. Bolsonaro contribui decisivamente para a confusão, emitindo sinais de jogo duplo ao acenar ao mesmo tempo para o hacker e para os ministros do STF e TSE. O país torce para que a missão de paz prevaleça sobre qualquer operação aloprada.