Livro mostra como Bolsonaro colonizou o judaísmo em 2018
Foto: Alan Santos – 2.abr.2019/PR
No dia 3 de abril de 2017, um deputado conhecido pelas posições radicais de direita testou seu grito de guerra diante de uma plateia de judeus, adaptado do lema dos paraquedistas brasileiros e com ecos do slogan nazista “Alemanha acima de tudo”. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, bradou ali Jair Messias Bolsonaro.
Outros elementos no discurso de Bolsonaro, que àquela altura não escondia de ninguém suas intenções de concorrer à Presidência, em teoria poderiam ser indigestos para o público alvo. Na prática, abriram o apetite para um bolsonarismo que condensou ali, no clube Hebraica do Rio de Janeiro, tantas das agendas de ódio que propagaria nos anos seguintes.
Vieram daquele encontro falas que até hoje escoltam a biografia do agora presidente, como ao narrar a visita a um quilombo onde “o afrodescendente mais leve lá pesa sete arrobas”. O tom racista continua na sequência: “Não fazem nada. Acho que nem pra procriadores servem mais”.
Bolsonaro também explicou para descendentes de um povo preso nos campos de concentração do Holocausto seu plano para conter venezuelanos refugiados que chegam ao país. A proposta de criar “campos de refugiados” lhe garantiu gritos de “mito” na audiência.
O historiador Michel Gherman se lembrou do colega britânico Tony Judt, um judeu de esquerda que avistou na Viena dos anos 1990 espectros dos judeus assassinados pelo nazismo. Também Gherman imaginou ver “os primeiros fantasmas daquela noite”, como narra em seu livro “O Não Judeu Judeu – A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo”.
“Eu podia ver Chael Charles Schreier, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski e Vladimir Herzog espremidos em um canto na frente do clube”, todos judeus eliminados pela ditadura militar, o “regime que Bolsonaro emulava”.
O então presidenciável afirmaria ainda, em 2018, que Herzog provavelmente se suicidou, a mesma versão furada que os militares ofereceram após torturarem e matarem o diretor de jornalismo da TV Cultura. Na mesma semana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos havia condenado o Brasil por esse assassinato.
Em 1975, quando Bolsonaro ainda estava na escola de cadetes, o rabino Henry Sobel tomou para si a decisão de não enterrar Herzog na ala de suicidas do cemitério judaico, algo desonroso para a tradição judaica. Um confronto aberto à versão oficial para a morte de Herzog, fabulada pela ditadura que Bolsonaro enaltece sempre que pode. Como ao pendurar um pôster em seu gabinete, nos tempos de parlamentar, com sua frase “quem procura osso é cachorro”.
Proferiu-a em resposta a parentes que demandavam saber onde estavam os restos mortais de militantes mortos na guerrilha do Araguaia. Havia dois judeus entre eles. O desaparecimento dos corpos impossibilitou o cumprimento de um rígido rito fúnebre que daria à alma o descanso eterno.
Não passa batido a Gherman o silêncio cúmplice diante da fala de Bolsonaro sobre Herzog. “Nenhuma entidade judaica se mostrou, em um ano eleitoral, especialmente indignada ou pediu retratação do então candidato.”
Eis a questão central para o autor: como parte dos judeus brasileiros chegaram até aqui, e que lugar resta à outra porção que não se deixou arrastar pelo canto da sereia do bolsonarismo? Que colonialismo ideológico deriva daí, em que quem se distancia da perspectiva bolsonarista é excluído da comunidade judaica?
O Brasil de 2022 é farto em símbolos judaicos, muitas vezes presentes em ambientes sem judeu algum por perto. A nova direita brasileira se ocupou de enaltecer Israel, e a judaicização do pentecostalismo nacional encontra um exemplo acabado na réplica paulista do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus. Para inaugurá-lo, o bispo Edir Macedo incorporou traços típicos do rabinato: quipá, talit (o xale de orações) e uma vasta barba branca, tal qual um profeta de Israel.
Evangélicos veem uma agenda comum com Israel, a terra prometida. Judeus passaram, portanto, a ser um ativo do bolsonarismo —o que ficou claro para Gherman, um professor de sociologia da UFRJ que havia levado alunos para acompanhar uma manifestação na porta do Hebraica contra a presença do homem que, um ano depois, se elegeria presidente da República.
Gherman tem um lado nessa história e não o esconde. Já na largada ele se descreve como um “judeu não judeu”, expressão emprestada de Isaac Deutscher, polonês famoso por sua trilogia biográfica de Leon Trótski. É aquele judeu que transita entre mundos, integrado à cultura do lugar onde vive, com vivências seculares, mas que preserva a identidade judaica como se tatuada na alma.
Gherman é também um progressista que, em agosto, usou o Twitter para emparelhar Bolsonaro e o nazismo: “Esteticamente e ideologicamente o sujeito se aproxima de Hitler, falo e escrevo sobre isso desde 2016”.
Não consigo assistir bolsonaro falar. Tem duas camadas aí.A primeira, sua proximidade com o nazismo. Esteticamente e ideologicamente o sujeito se aproxima de Hitler. Falo e escrevo sobre isso desde 2016. Hj o crescimento dos grupos nazistas e suas referências nazis provam isso.
— Michel Gherman (@michel_gherman) August 23, 2022
Enquanto “judeu não judeu”, escreve no livro ter se dado conta “de que havia certa experiência fascista brasileira que colonizava o judaísmo no país”. O outro lado se insinuava como um “não judeu judeu”, alguém que não era judeu, mas “construía um passado ideal vinculado aos sacerdotes, aos reinos de Davi e Salomão, do qual ele poderia fazer parte, mas eu não”. Essa é, portanto, uma história de colonização do judaísmo pelo que ele chama de fascismo tropical.
A polarização nacional também provocou um cisma na comunidade judaica, escancarado pelo estranhamento entre participantes do encontro no Hebraica e os que protestavam do lado de fora. “Uma guerra cultural sem precedentes na história dos judeus do Brasil”, diz o autor.
Gherman enxerga em Olavo de Carvalho uma peça valorosa para a reconfiguração discursiva que possibilitou a aliança entre judaísmo e bolsonarismo. Ele resgata uma reação de Olavo às acusações de antissemitismo feitas ao filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson: “Meu recado aos judeus é simples: nenhum mal lhes virá pelo lado cristão. Os inimigos de Israel são hoje os inimigos da cristandade”.
Olavo forja, assim, uma nova “comunidade de vítimas” para alicerçar seu ideal de “civilização judaico-cristã”, unida pela suposta ameaça da secularização. Seria um “guru do neotradicionalismo”, um passo adiante da corrente tradicionalista que ganha força no começo do século 20. A alergia à modernidade, esse antro de degenerados, é a força motriz, e o vislumbre de um passado ideal e ordeiro, a meta.
O judaísmo era um tema recorrente nas aulas do professor que instruiu tantos bolsonaristas, lembra Gherman. Olavo era ao mesmo tempo um crítico ferrenho do Holocausto e um entusiasta do sionismo, e também alguém que se lançou contra judeus que via como responsáveis pela corrosão dos valores do cidadão de bem.
Vide este post seu de 2016: “Certos judeus espertalhões, como Karl Marx, os Rothschilds, o George Soros, fazem os demais judeus de trouxas com uma facilidade impressionante. […] Cada judeu acha que todo judeu de nascença é judeu como ele, e acredita no filho da puta como se ele fosse seu tio ou seu avô. Nunca ouviram falar da sinagoga de Satanás, ‘aqueles que dizem que são judeus, mas não o são’”.
Essa linha de pensamento sugere a existência de judeus que não honram seu nome. Como o próprio autor. Como se a identidade judaica, agora, dependesse do alinhamento automático à retórica bolsonarista.
Quem protestasse contra o convite ao não judeu judeu no Hebraica só poderia ser, nesse sentido, um judeu não judeu. Para a nova direita, aquele que diz que é judeu, mas não o é.