Ações na Justiça anularão Bolsonaro

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Foto: Leo Martins/Estadão Conteúdo

Para a cientista política Camila Rocha, estudiosa da nova direita brasileira e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a derrota do presidente Jair Bolsonaro nas urnas ficou mais difícil de ser digerida por seus apoiadores porque, para quem seguia uma lógica de guerra espiritual, o “mal” acabou vencendo o “bem” no final. Ela diz ser cedo para analisar qual será o futuro do bolsonarismo, mas vê o grupo político com forças para reconquistar o poder em 2026 se não houver uma renovação dos quadros do PT e se a esquerda não aprender como se “digitalizar”. A pesquisadora também considera o governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como o mais capaz de herdar o espólio do bolsonarismo.

O presidente Jair Bolsonaro passou anos associando o PT ao crime, à corrupção e ao mal, num sentido que também era religioso. Que impacto isso teve no bolsonarismo após a vitória de Lula?

Certamente essa demonização do PT torna a derrota do Bolsonaro mais retumbante. Uma vez que você coloca Deus na jogada, começa a mobilizar um discurso que é do campo espiritual, da guerra do bem contra o mal, e dizer “se Deus quiser eu vou ser reeleito” como Bolsonaro fez. Então as coisas não acontecem, isso amplifica o sentimento de decepção dos eleitores. A gente pode pegar o exemplo da declaração do bispo Edir Macedo. Num certo sentido, ele foi obrigado a dizer que “Deus quis que Lula ganhasse”.

A derrota favorece a consolidação de uma direita para além de Bolsonaro?

É uma possibilidade, mas não trivial. Isso vai se tornar viável se a imagem do Bolsonaro se enfraquecer, o que depende muito do desenrolar dos diversos processos que ele vai enfrentar na Justiça. O movimento é muito centrado na figura do Bolsonaro.

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Você vê alguém se cacifando como sucessor?

O Tarcísio (de Freitas, governador eleito de São Paulo) é uma figura interessante. Se ele quiser, pode buscar uma independência do Bolsonaro, que não será mais presidente. Tarcísio agora é quem tem o poder, e não é qualquer poder. Vai ter o segundo maior orçamento do país e muitos cargos para distribuir. São tantos cargos que ele terá de acomodar interesses que não são os do bolsonarismo. Ele pode herdar um bolsonarismo que não é aquele que pede golpe de Estado. Ele dialoga com esse bolsonarismo mais conservador que reacionário.

Muitos nessa direita tentaram uma carreira solo longe das asas do presidente Bolsonaro e minguaram eleitoralmente. Acha que Tarcísio de Freitas pode conseguir uma carreira solo?

Sim. Tarcísio tem margem de manobra muito maior que outras figuras, porque ele tem muito poder agora. Basta ele não operar uma ruptura muito brusca (de Bolsonaro), que ele se distancie gradualmente, sem um rompimento efetivo, sem declarações contrárias, como João Doria (ex-governador de São Paulo) fez.

Que atenção você acha que devemos dar às manifestações golpistas que estão na frente dos quartéis?

Uma coisa que deve ser evitada a todo custo é fazer justamente o que se faz nas redes sociais: transformar em meme, dar atenção ao que é grotesco, ressaltar o ridículo ou querer expor certos personagens como se fossem uma vergonha pública. Acho que isso não é bom porque retira a seriedade e a gravidade desses acontecimentos. Se você entra na ordem do humorístico, as pessoas param de identificar aquilo como um potencial perigo, quando, na verdade, a gente tem que levar a sério, e aquelas pessoas precisam ser punidas.

No que bolsonaristas falharam enquanto situação?

Na condução da pandemia. Desses eleitores que votaram no Bolsonaro no segundo turno, uma parte muito grande era de pessoas que estavam muito decepcionadas. Votaram em Bolsonaro em 2018, mas não queriam mais votar nele. Elas se viram forçadas a escolhê-lo de novo porque não queriam o Lula. Elas tinham críticas muito significativas em relação à condução da pandemia, principalmente as mulheres. Para além da desumanização, do deboche das pessoas que ficavam doentes, tinha coisas marcantes, como a imagem dele tirando a máscara de uma criança. Do ponto de vista político, era completamente desnecessário. Talvez se ele não tivesse tido esse comportamento, teria sido reeleito.

O que deve ser decisivo para permitir ao bolsonarismo retomar o poder em 2026?

Caso uma direita democrática não consiga se organizar, se reconstruir, isso acaba deixando um campo aberto na direita. Outra coisa é a não renovação de quadros dentro do PT. As pessoas com quem a gente conversa (em pesquisas qualitativas) acham que os quadros do PT são sempre os mesmos. Mais do que isso, o PT acabou por muito tempo se fiando no carisma do Lula, impossibilitando outras lideranças de se firmarem. O que será o PT sem Lula, com esses quadros envelhecidos? O Bolsonaro é uma liderança de massas, isso é algo inconteste. Lula já falou que não tem disposição de concorrer em 2026. O PT não vai ter uma liderança de massas, o outro lado vai ter. Mais um aspecto importante: o bolsonarismo conquistou o sucesso que teve porque atuou numa vanguarda nas redes sociais, e que até agora as pessoas ainda não conseguiram alcançar. Se a esquerda não construir um capital digital, a disputa vai ficar muito desfavorável sem poder contar com o carisma de Lula.

O Globo