Bruno Dantas quer “despoluir” pauta do TCU
Foto: Cristiano Mariz/O Globo
Após pouco mais de oito anos como ministro, o jurista baiano Bruno Dantas Nascimento assume hoje a presidência do Tribunal de Contas da União (TCU), em solenidade repleta de autoridades, entre as quais o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), além de ministros do Supremo Tribunal Federal. Apesar de ser, de longe, o mais jovem entre os ministros do TCU, com 44 anos, Dantas tem grande influência no o órgão de controle, além de trânsito livre nos principais gabinetes de Brasília, o que o tem credenciado para voos mais altos.
Na presidência do TCU, pretende criar uma secretaria para “descontaminar” o debate entre empresas e governo, que segundo ele foi criminalizado pela Operação Lava-Jato. “Criminalizou-se qualquer relação entre o público e o privado. E quando nós falamos de setores como infraestrutura ou financeiro, se não houver diálogo entre as instituições de Estado e os agentes de mercado, esses setores simplesmente travam”, afirmou Dantas em entrevista ao Valor.
Dantas ainda se ambientava ao TCU quando participou, em 2015, do julgamento das “pedaladas fiscais”, que culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Olhando para os últimos quatro anos, o agora presidente do TCU observa um cenário de caos nas contas públicas e de vulgarização do arcabouço fiscal, que ameaça a análise das contas do último ano do presidente Jair Bolsonaro.
Dantas também falou das especulações sobre sua eventual indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF) e as declarações de teor golpista do seu colega de TCU Augusto Nardes. A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: O senhor assume a presidência do TCU e da Intosai, que é uma organização internacional dos órgãos de controle. De que forma o Brasil, sob sua administração, vai contribuir para o debate internacional sobre controle externo?
Bruno Dantas: A Intosai tem status de órgão consultivo da ONU e congrega 196 países. O que nós poderemos enfatizar durante a nossa presidência é que a Intosai não tem muita proximidade com outras organizações internacionais, como OCDE, Unesco, Banco Mundial, BID, FMI. Então, para que a entidade cumpra sua função de ser a voz global as instituições de controle, ela precisa se aproximar de outras organizações e dar maior repercussão aos seus trabalhos.
Valor: Quanto às questões locais, cada novo presidente do TCU costuma definir eixos para a gestão. Quais serão as suas prioridades?
Dantas: Aprendi muitas coisas nesses oito anos de TCU, especialmente o valor de um órgão de controle com estrutura colegiada. Mas eu percebi também que existem órgãos no Brasil que se apegam a dogmas ou, pior, a teses que só servem para benefícios corporativos.
Valor: Por exemplo?
Dantas: A Receita Federal, que se apega a um argumento de sigilo bancário para não ser auditada. Pode se ter muitas críticas ao governo Jair Bolsonaro, mas ele garantiu que o TCU pudesse fiscalizar a Receita Federal. Uma coisa que senti nos últimos quatro anos no país é que houve uma renúncia ao valor que a gestão tem. Salvo algumas honrosas ilhas de excelência, faltou gestão ao Brasil nos últimos anos.
Valor: Mas o TCU tem como atuar para melhorar esse cenário?
Dantas: Teremos que atacar alguns gargalos. Infelizmente, a Operação Lava-Jato, que começou com uma atuação aplaudida pela população, se transformou em um projeto político. Acontece que o efeito colateral de um certo gigantismo que a Lava-Jato assumiu foi a criminalização de todas as esferas da vida pública, não só da política. Criminalizou-se qualquer relação entre o público e o privado. E quando nós vamos falar de setores da economia como infraestrutura ou setor financeiro, se não houver diálogo entre as instituições de Estado e os agentes de mercado, esses setores simplesmente travam. Nem nos EUA existe uma ciranda de delações como a que vimos no Brasil.
O TCU terá um desafio imenso para examinar o descalabro criado na gestão, em especial nos últimos meses”
Valor: Mas o senhor não concorda que o próprio TCU embarcou nessa agenda da Lava-Jato?
Dantas: O TCU foi tragado por essa agenda, como todas as instituições foram. Mas justiça seja feita: fomos os primeiros a erguer a voz contra exageros. E o primeiro momento em que isso aconteceu foi quando o ex-procurador Deltan Dallagnol, agora deputado eleito, foi ao TCU defender que o TCU não apurasse o dano causado pelas empreiteiras que tinham acordo com ele.
Valor: Mas o TCU acabou perdendo essa disputa no Supremo.
Dantas: Não. O que o Supremo disse é que o TCU não poderia declarar a inidoneidade das empresas que tinham acordo. Mas declarou que o TCU poderia continuar buscando o valor do dano ao erário com todas as cautelares necessárias.
Valor: Seu papel, então, será ajudar a restaurar a normalidade das relações entre público e privado?
Dantas: Vamos despoluir o debate entre o setor público e empresas. Como houve uma criminalização dessa relação, qualquer diálogo poderia ser tido como criminoso e isso é algo muito deletério. A criminalização do diálogo, instituída nos anos de Lava-Jato, somada a uma hipertrofia dos órgãos de controle, criou um apagão das canetas e fomentou um processo de infantilização da gestão pública.
Valor: Mas como o TCU pode interferir nesse processo?
Dantas: Com a criação de um ambiente institucional, formalizado, que favoreça esse diálogo. Já conversei com os ministros do tribunal e pretendo criar a partir de janeiro uma secretaria de administração pública consensual.
Valor: Em quais casos irá atuar?
Dantas: No reequilíbrio econômico de um contrato de concessão, por exemplo. Na pandemia, os aeroportos ficaram fechados por alguns meses. Qual é o valor do reequilíbrio desse contrato? A agência reguladora, hoje, não tem coragem de assinar esse acordo. É o momento em que temos condições de colocar na mesa os técnicos da agência, a concessionária e os auditores do TCU e analisar os números.
Valor: O TCU ganhou os holofotes durante o episódio das “pedaladas”, que culminou no impeachment de uma presidente. Na semana passada um ministro mencionou que o atual governo gastou mais de R$ 700 bilhões por fora do teto de gastos. O tribunal continua acompanhando com o mesmo rigor a questão fiscal do país?
Dantas: O teto de gastos foi uma âncora fiscal muito importante, mas a pandemia mostrou seus limites. Foi preciso aprovar uma PEC e aí nos deparamos com uma verdadeira gincana de regras fiscais que escancarou o problema que temos hoje. Foi uma solução confortável para os que estão nos cargos, mas absolutamente deletéria para o país, porque vulgarizou as regras fiscais. Hoje há na Constituição regras fiscais que não deveriam estar nem em uma instrução normativa do Tesouro Nacional.
Valor: Na semana passada o governo pediu ao TCU autorização para abrir crédito extraordinário para bancar despesas previdenciárias.
Dantas: Essa consulta desnudou em praça pública a falta de planejamento e a dificuldade em escolher prioridades. O que vimos nesse fim de ano foi um completo caos em áreas absolutamente sensíveis. Isso significa que dinheiro foi alocado indevidamente nos últimos meses em outras áreas. O TCU terá um desafio imenso para examinar o descalabro criado na gestão, em especial nos últimos meses.
Valor: Esse caos pode comprometer a análise das contas de Bolsonaro referentes a 2022?
Dantas: É cedo para dizer porque não vi os números. Faremos análises setoriais, mas a sensação de caos que existe será avaliada pelo relator, ministro Jorge Oliveira, que terá condições de emitir um parecer que reflita o que foi o ano de 2022.
Valor: Desde as “pedaladas”, o TCU recebe críticas de uma suposta interferência indevida em áreas que estariam fora de sua jurisdição, como eleições, por exemplo. Como o senhor rebate essas críticas?
Dantas: Um professor da Universidade de Chicago, chamado Tom Ginsburg, analisando vários países do mundo, conclui que os órgãos de controle têm um papel de verdadeiro “ombudsman” do balanço constitucional e institucional. Segundo ele, esses órgãos não são meros observadores ou ouvidores, são partícipes do jogo democrático. No caso brasileiro, quando o constituinte deu ao TCU competência para verificar a eficiência do funcionamento do Estado, de certa forma nos autorizou a verificar questões como, por exemplo, a urna eletrônica.
Valor: O novo governo está sendo cobrado a entregar as promessas de diversidade na estrutura. O senhor assume no lugar da primeira presidente mulher do TCU. Como pretende atuar nessa questão?
Dantas: Infelizmente, com a aposentadoria da ministra Ana Arraes, perdemos a única mulher no nosso quadro de ministros. Do ponto de vista do quadro funcional, do número total de servidores do TCU, apenas 27% são mulheres. Isso nos traz uma dificuldade adicional. Mas temos uma progressão que vem acontecendo. A ministra Ana aumentou o número de mulheres em cargo de direção de 12% para 29%. Como escolher o novo ministro não está na minha alçada de decisão, o que eu desejo fazer é elevar esse número para 41%.
Valor: Por falar em trocas de ministros, no passado o plenário do TCU já se mobilizou para evitar que pessoas com problemas no currículo fossem nomeados. Ainda estão atentos a isso, considerando que uma vaga está aberta atualmente?
Dantas: O plenário do TCU aprovou uma resolução afirmando que o critério de reputação ilibada pode ser aferido. Quem é réu em ação penal ou de improbidade, por exemplo, não pode ser ministro. Não se deve confundir reputação ilibada com presunção de inocência. Reputação ilibada tem a ver com a imagem pública que a pessoa tem, e não registro criminal. Então, existe uma resolução que dá concretude a essas exigências e agora quem quiser ser ministro basta olhar e saber se pode ser.
Valor: Vieram a público recentemente falas de um ministro do TCU tratando da possibilidade de uma ação das Forças Armadas para desestabilizar a democracia. Como presidente, como viu esse episódio?
Dantas: O TCU teve um papel importante na defesa das instituições, especialmente com a auditoria que fizemos nas urnas. Evidentemente que quando um diálogo ganha escala elevada isso causa algum constrangimento, mas entendo que foi superado com uma declaração imediata do próprio ministro, condenando manifestações golpistas. Penso que foi um episódio ruim, mas que a retratação supriu qualquer dúvida.
Valor: O senhor é famoso em Brasília pela habilidade política, além do conhecimento jurídico. Seu nome vem aparecendo entre os cotados para as próximas vagas no Supremo. O senhor é candidato?
Dantas: Sou candidato a realizar um bom mandato como presidente do TCU, até como forma de agradecer à confiança dos meus colegas ministros e de uma expectativa que, percebo, é grande em relação ao trabalho do tribunal. Vivo um dia de cada vez e digo que essa discussão está longe dos meus pensamentos. Quero estruturar o TCU para ajudar o Brasil a retomar o crescimento, com responsabilidade fiscal, que não tem contradição com responsabilidade social. A agenda do Brasil é muito grande para que autoridades pensem em si.