Dono da Quaest tenta explicar política brasileira nos EUA
Foto: Reprodução/TV Cultura
Diretor da Quaest, uma das empresas que mais fizeram pesquisas eleitorais em 2022, o cientista político Felipe Nunes está percorrendo universidades nos EUA a convite da Fundação Fullbright para falar sobre aspectos da política brasileira que emergiram das urnas e dos perigos das “fake news”.
Nas apresentações, ele destaca o que vem chamando de “calcificação” das posições políticas, reflexo da permanência do clima de polarização mesmo após o pleito.
É um ambiente novo em que o eleitor passa a se comportar no dia a dia em consonância com sua escolha eleitoral e com o mesmo humor beligerante da disputa: rejeita produtos de empresas cujos donos se manifestaram do lado oposto, por exemplo, ou se afasta e deixa de ouvir quem pensa diferente.
Na base desse novo padrão, diz ele, estão as “fake news”, que alimentam realidades paralelas, abalam referências, bloqueiam o contraditório e, portanto, representam uma ameaça à democracia. Em parceria com o jornalista Thomas Traumann, Nunes está começando a escrever um livro sobre o tema. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Novo padrão eleitoral
“O voto deixou de ser uma escolha, uma verbalização da preferência, para ser a manifestação de uma visão de mundo. A novidade é que a eleição acaba, mas a divisão não acaba. O comportamento polarizado continua. Esse processo calcifica as posições políticas e começa a afetar outros campos. O sujeito não quer que seu filho se case com alguém do outro lado, não quer mais comprar produto de empresário que se manifesta do outro lado, não quer ouvir música se o artista apoiou o rival. As bolhas do meio digital viram bolhas no dia a dia. Galgou à vida cotidiana.”
O papel das “fake news”
“Estão destruindo a democracia. O volume de pessoas conectadas é enorme. Os algoritmos vão gerando conteúdos que vão te agradar, hedonistas. Você passa procurar cada vez mais só o que vai ao encontro do que já pensa e começa a negar fontes de informação que não atendam aos seus interesses. Dissonância cognitiva.”
Risco elevado
“Com as ‘fake news’ você não precisa mais buscar consenso, encontrar meio termo. Cada um vem com seu mundo pronto, alimentado por notícias produzidos para ele. É perigoso. Ninguém mais olha pro lado, não conversa, não discute, não tem o contraditório.”
Perda de referência
“Mais de 80% dos brasileiros acredita que recebeu notícia falsa na eleição. Aí a gente pergunta: ‘Mas você tem certeza disso?’ Mais da metade não tem certeza. Avançamos. Pegamos várias ‘fake news’ e pedimos para cada um dizer se achava que a frase era real ou mentirosa. Só 20% conseguem identificar uma ‘fake news’. Outro aspecto danoso: as pessoas tendem a achar que a notícia é falsa quando desagrada sua posição política.”
Empresas
“Outro dia eu estava vendo uma entrevista do ministro Fernando Haddad [Fazenda] em Davos. Ele disse que não consome um produto sem antes saber qual é a posição política do fabricante. Nas pesquisas isso já aparece em certos segmentos. Minha previsão é que vai se tornar uma coisa padrão, mas as empresas ainda não perceberam.”
“Fake news” na eleição de 2022
“Tiveram papel fundamental de mobilização. ‘Fake news’ não serve para convencer ninguém. As pessoas já têm suas posições e as usam só para confirmar seus preconceitos. Em 2022, serviram para manter o eleitorado bolsonarista motivado. No caso lulista, também. Mas não é comparável. O bolsonarismo tem uma máquina própria para isso. Ali é uma estratégia.”
Fanáticos
“Dividimos o eleitorado bolsonarista em subgrupos. 18% são os radicais. Esses processam informações com um nível de viés efetivamente cego em relação à realidade. Realmente acreditam naquelas coisas, que o Brasil vai virar comunista, ameaça global. Nessas pessoas, as ‘fake news’ têm o efeito de alimentar o ego e o sentido de pertencimento ao grupo.”
Notícias falsas no pós-eleição
“Nada mudou. Tem um componente profissional de fabricação e distribuição, mas tem também um processo orgânico. Hoje, qualquer um tem no celular a capacidade de gravar e distribuir, isso facilitou muito a possibilidade de construir conteúdo falso. Monitoramos uns 20 mil grupos de WhatsApp e Telegram. São 15 ou 16 diferentes tipos de ‘fake news’ todo dia.”
Exemplos recentes
“Depois da eleição, circulou com força a história a de que Lula estava morrendo, internado, não iria sobreviver. Aí veio golpe militar, que havia reunião com os EUA e que os generais estavam na iminência de agir. Agora voltou a invermectina [medicamento propagandeado para combater covid, mas sem eficácia contra a doença]. Ficam espalhando quem tomou isso é que acabou sobrevivendo.”
Confronto com a verdade
“O fato de Lula não ter morrido não produz efeito algum no sujeito que recebeu, acreditou e espalhou essa bobagem. Zero. Naquele momento, a notícia falsa serviu para atender aos desejos, ansiedades e interesses de curtíssimo prazo. Se Lula depois não morreu, não importa, já tem outra ‘fake news’ rolando para dizer que o globalismo vai dominar a Amazônia, que vai ter intervenção militar em 72 horas. A lógica é essa. E é por isso que há uma inundação de ‘fake news’. A frequência não permite reflexão. O sujeito precisa ser mantido num estado constante de embriaguez.”
Impacto do fracasso do golpismo
“Entre os eleitores de Bolsonaro há um subgrupo de empreendedores. Os que têm algum negócio, acham que não dependem do Estado, que corrupção é o que estraga tudo, que o Estado é grande e tem muito imposto. Esse perfil foi o último a aderir ao Bolsonaro. Tinham receio de um elemento mais autoritário e esperaram pela terceira via. Acabaram votando pela reeleição só porque parecia o único jeito de derrotar o Lula. Esse público não aprova a invasão da Praça dos Três Poderes. Bolsonaro, então, se enfraquece com aquilo, essa parcela de moderados se afasta dele. E é a primeira oportunidade para Lula falar com essa turma.”
O erro de Joe Biden nos EUA
“A aprovação ao 6 de janeiro de 2021 era de 9% logo após a invasão do Capitólio. Agora está em 32%. Entre republicanos, quase metade aprova aquilo hoje. O erro foi do presidente Joe Biden, que transformou o 6 de janeiro numa questão partidária. Ele passou a tratar os invasores como republicanos, fez a generalização. Isso é o que o Lula não pode fazer de jeito nenhum.”
Oportunidade e risco para Lula
“Lula ganhou de presente o papel de defensor da democracia. Ele precisa lembrar que há gente que votou Bolsonaro e que não quer autoritarismo e não aprova o 8 de janeiro. Então Lula tem de caracterizar o caso como obra de radicais, golpistas, vândalos. Se ficar dizendo que é bolsonarismo, esse eleitor do Bolsonaro que não gostou do 8 de janeiro vai se sentir compelido a defender o vandalismo.”