Lula impõe revés inédito a populismo pseudo-cristão
Foto: Mateus Bonomi – 18.dez.19/Folhapress
Pelos últimos quatro anos, com Jair Bolsonaro (PL) na cabeceira do Executivo federal, a bancada evangélica se sentiu jogando no ataque. Mas Bolsonaro não se reelegeu, e a volta de Lula (PT) à Presidência é um balde d’água progressista nos planos conservadores do mais articulado bloco religioso do Congresso, avaliam seus integrantes.
É com a sensação de que entrarão em campo mais uma vez na zaga, posição em que mais precisam impedir que o outro lado avance do que impor sua agenda, que parlamentares evangélicos se reunirão na manhã desta quinta-feira (2) para escolher seu novo líder.
Enfrentam-se três nomes que apoiaram Bolsonaro na corrida presidencial. Dois são deputados: Silas Câmara (Republicanos-AM), que já presidiu o grupo, e Eli Borges (PL-TO). Corre por fora o senador Carlos Viana (Podemos-MG).
Ex-bolsonarista roxo, que nas últimas semanas passou a criticar o ex-aliado e falar em “virar a página”, Otoni de Paula (MDB-RJ) chegou a enviar sua inscrição, mas deve abrir mão da candidatura em prol de Borges.
Até a véspera, a eleição se encaminhava para uma inédita disputa no voto. Isso porque pleitos passados tiveram como praxe a aclamação de um presidente sem necessidade de votação. Assim aconteceu desde a criação da Frente Parlamentar Evangélica, em 2003.
O consenso às vezes chegava de última hora, é verdade. Os cabeças do bloco ganham mandatos bienais, mas em 2021, por exemplo, dois candidatos evitaram o confronto ao fecharem um acordo pouco antes da queda de braço política se consolidar. Ficou assim: Cezinha de Madureira (PSD-SP) liderou a bancada em 2021, e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), no eleitoral 2022. Todo mundo saiu feliz.
Aliado do pastor Silas Malafaia, Sóstenes deve passar o bastão para Câmara ou Borges. O mais provável é que Viana capitaneie os evangélicos do Senado, um time que conta com a “terrivelmente cristã” Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra de Bolsonaro, e Magno Malta (PL-ES), que retorna à Casa após perder a vaga em 2018 para Fabiano Contarato (PT-ES), primeiro senador abertamente gay do país.
Até a noite de quarta (1º), não havia expectativa de um acordo entre os adversários —o que sempre pode ocorrer aos 45 minutos do segundo tempo, claro.
Câmara, aliás, está bem ciente disso: quando foi eleito pela primeira vez, em 2019, a pacificação em torno do seu nome só foi selada no próprio dia, após cinco rivais abandonarem o páreo em seu benefício, incluindo Flordelis (então PSD-RJ). Três meses depois, seu marido seria assassinado, crime pelo qual ela acabou condenada no ano passado.
As costuras para a eleição deste ano coincidiram com a campanha para as presidências da Câmara e do Senado. Na terça (31), Arthur Lira (PP-AL), que no dia seguinte seria reconduzido à liderança dos deputados, recepcionou a bancada evangélica com um café da manhã que teve no menu o racha entre evangélicos e o posicionamento que o bloco pretende adotar nesta legislatura.
O apego dos membros à chamada agenda de costumes será uma pedra no sapato de Lula, diz o atual presidente. Sóstenes vê o “enfrentamento ideológico às pautas do governo esquerdista” como prioridade da bancada daqui em diante. Os temas são velhos conhecidos do embate entre progressistas e conservadores, do aborto à causa LGBTQIA+.
Estreiam na bancada três deputados recém-chegados à Câmara, todos alvo de inquérito do STF (Supremo Tribunal Federal) que apura se eles incentivaram os atos de vandalismo em Brasília no dia 8 de janeiro.
Clarissa Tércio (PP-PE) é investigada por ter postado numa rede social: “Acabamos de tomar o poder. Estamos dentro do Congresso. Todo povo está aqui em cima. Isso vai ficar para a história, a história dos meus netos, dos meus bisnetos”. Sílvia Waiãpi (PL-AP), por compartilhar um vídeo com a legenda: “Tomada de poder pelo povo brasileiro insatisfeito com o governo vermelho”.
Fecha o trio André Fernandes (PL-CE), que fez uma convocação virtual para o “ato contra o governo Lula”, dizendo que lá estaria. Ele depois publicou a foto de um armário do ministro Alexandre de Moraes, vandalizado. “Quem rir vai preso”, escreveu.
Sóstenes diz que conversou com os deputados e que nenhum deles estava na capital do país no dia.
O novo governo começou provocando, afirma o presidente de saída. Irritaram gestos como o uso do pronome neutro (“todes”) em eventos oficiais e a limpeza do Palácio do Planalto com sal grosso. O elemento é vinculado a religiões de matriz africana, demonizadas por parte das igrejas cristãs.
Pelas suas contas, a bancada terá 132 deputados (26% da Câmara) e 14 senadores (17% da Casa). Decano do grupo, Gilberto Nascimento (PSC-SP) engrossou a primeira frente parlamentar, no primeiro ano de Lula como presidente. O momento atual é mais desafiador, diz o deputado.
O obstáculo maior, para ele, nem será o próprio presidente, mas “o pessoal dos ministérios”, com um perfil diferente e mais identitário do que o da primeira Esplanada lulista. “Vamos ter que trabalhar numa defesa grande, tentar sobreviver em termos dessas pautas [progressistas].”
Nem todos da bancada desejam fazer uma oposição intransigente a Lula, até porque há questões partidárias no meio —muitos congressistas estão em legendas da órbita lulista, como o PSD, ou em siglas que podem aderir à base governista no futuro, como o Republicanos.
Enquanto isso, o clima de disputa no bloco evangélico contamina as redes sociais. Um dos comentários dizia, sem nomear desafetos: “Tomem cuidado com os anjos caídos”.