Lei obriga Lula a rever privataria da Eletrobras

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Foto: Reprodução

Privatizada há dois anos, a Eletrobras se transformou em um dos alvos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No início de maio, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) na qual pede que a Corte declare parcialmente inconstitucionais alguns dispositivos da Lei da Desestatização da companhia, sancionada em julho de 2021.

O Executivo pede mudanças na regra que limita a participação da União – que possui 43% das ações da Eletrobras – a apenas 10% do direito de voto na empresa. “O governo tem a obrigação legal de fazer isso. O governo é obrigado a zelar por um patrimônio que pertence à sociedade”, defende o ex-ministro de Minas e Energia Nelson Hubner, em entrevista ao Metrópoles.

“Não há caso no mundo, envolvendo empresa pública ou privada, em que não exista uma correspondência entre o peso político e o poder econômico que se detém”, afirma Hubner, engenheiro eletricista por formação, que comandou a pasta entre 2007 e 2008, durante o segundo mandato de Lula.

Hubner, que também foi diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de 2009 a 2013, integrou o grupo técnico de Minas e Energia do gabinete de transição, antes do início do terceiro governo do petista.

Segundo ele, após a privatização, “a Eletrobras não está entregando o que prometeu, nem para o mercado nem para ninguém”. Mesmo assim, diz Hubner, nada indica que o presidente da República levará adiante qualquer tentativa de reestatizar a companhia, apesar das pressões de setores do PT.

Leia os principais trechos da entrevista concedida por Nelson Hubner ao Metrópoles:

O governo recorreu ao STF para questionar pontos da Lei da Desestatização da Eletrobras relativos à participação da União na companhia. Contestar uma lei aprovada pelo Congresso não gera insegurança jurídica?

O governo tem a obrigação legal de fazer isso. O governo é obrigado a zelar por um patrimônio que pertence à sociedade. A União tem, dentro da Eletrobras, um patrimônio correspondente a 43% do valor total das ações da empresa e precisa zelar por isso. Na realidade, o governo está reivindicando que o Supremo esclareça essa questão. Não há caso no mundo, envolvendo empresa pública ou privada, em que não exista uma correspondência entre o peso político e o poder econômico que se detém, ou seja, o volume de ações que se detém. Isso já aconteceu em outros países, em outros processos de privatização de empresas que eram concessionárias de serviço público. Os Estados nacionais se mantêm como acionistas de referência e, nessa condição, restringem o poder de voto de outros acionistas.

O senhor acredita que o governo pode tentar reestatizar a Eletrobras?

É claro que você tem gente que pensa de todas as formas dentro do governo. Eu estava na transição, coordenando o grupo sobre energia elétrica, e reportamos todas as consequências do processo de privatização da Eletrobras, da forma como ele foi feito. A indicação que recebemos ali era exatamente na linha que foi adotada agora pelo governo. É claro que, dentro de um governo, de um partido, haverá um tanto de pessoas defendendo uma posição e um tanto de gente defendendo outra. Mas, para mim, ficou muito claro, com o ajuizamento dessa ação no Supremo, preparada pela AGU e assinada pelo presidente da República, que o governo pretende apenas corrigir o que considera uma distorção sobre o entendimento da lei, para que tenha um poder de voto nas assembleias compatível com o poder econômico. Afinal, esse dinheiro não é do governo. Esse dinheiro é nosso, é da população.

O presidente Lula e integrantes do governo fizeram críticas duras à privatização da Eletrobras. A empresa vem perdendo valor de mercado e suas ações estão em queda. Como reverter esse processo?

É claro que, se existe um embate entre grupos de acionistas, isso pode afetar o valor das ações. Mas, para mim, o fundamental é que a Eletrobras não está entregando o que prometeu, nem para o mercado nem para ninguém. Você pega qualquer empresa. Quando sai um balanço, todo o mercado e os analistas acompanham e têm suas previsões. O que aconteceu na Eletrobras? Divulgou o balanço com um lucro muito menor do que se esperava e menor, inclusive, do que no período em que ela era estatal (o lucro da Eletrobras no primeiro trimestre foi de R$ 406 milhões, uma queda anual de 85%). Houve aumento do endividamento, mesmo com todos os cortes de despesas. Eu tinha uma grande preocupação e participei de debates (sobre a privatização) no Tribunal de Contas da União, quando apresentaram esse modelo, e questionei o governo. Eu disse que, com aquele modelo, da forma como estavam apresentando, nenhuma empresa investidora do mercado de energia compraria ações da Eletrobras. A capitalização foi toda projetada em cima de cálculos feitos pelo ministério e pelo próprio tribunal que acabaram não se confirmando. A usina hidrelétrica de Tucuruí, que é imensa e tem um mundo de energia, está toda descontratada (livre para negociar a energia gerada a preços competitivos no mercado). Quando a energia não tem contrato, ela perde valor. A Eletrobras está vendendo toda essa energia por R$ 69 o megawatt-hora (MWh). Eles imaginavam que estariam vendendo a R$ 320 o MWh. Esse valor atual é menor que o valor que a empresa receberia se continuasse com cotas (a privatização da Eletrobras se deu por meio de descotização e diluição da União no capital da companhia, com uma oferta subsequente de ações na bolsa). Temos também um outro aspecto que não foi analisado, que é a transição energética. Toda a nossa expansão se dá a partir das fontes eólica e solar, especialmente a solar neste momento, com um custo extremamente baixo. Eles analisaram muito mal esse cenário. Se não mexerem nesse modelo, a Eletrobras caminha para uma situação muito pior.

Falando em transição energética, um relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) mostra que o investimento em energia limpa está ultrapassando o gasto com combustíveis fósseis. Para cada dólar investido em combustíveis, US$ 1,7 está indo para energias renováveis. Como o Brasil pode surfar essa onda?

O Brasil é bastante privilegiado em termos de natureza. Mas o país precisa se preparar para a transição energética. Dentro do governo, inclusive, é necessária uma articulação maior no sentido de enfrentar essa frente e começar a trabalhar em cima de um processo de transição. Trata-se de algo absolutamente irreversível e que vai acontecer com uma velocidade muito maior do que muita gente aposta. No Brasil, toda a expansão da energia elétrica vai se dar, basicamente, em cima de usinas eólicas e solares e nós teremos de mudar a forma de utilização das nossas usinas hidrelétricas. O Brasil, se quiser, pode muito rapidamente tirar da matriz de energia elétrica tudo o que é fonte suja e ficar somente com energias hídrica, eólica e solar. E ainda temos uma riqueza imensa em termos de minerais estratégicos que são fundamentais para a transição. Temos de rever a nossa indústria, reestruturá-la, para priorizar investimentos em toda essa nova cadeia de produção. É um novo mundo, que vai gerar empregos em todas as áreas. São novos setores industriais que temos de desenvolver para colocar o Brasil em condições de ser um provedor de energia para o mundo ocidental e, ao mesmo tempo, atender o nosso estoque.

No plano estratégico da Petrobras, fica claro que o refino volta a estar entre as prioridades. A decisão é contestada por especialistas, que afirmam que o foco deveria ser o investimento em fontes alternativas de energia. O governo brasileiro não está indo na contramão das melhores práticas do mundo?

Na verdade, acho que agora a Petrobras está acompanhando o que as suas congêneres mundiais estão fazendo. A Petrobras não tinha nada em termos de investimento em energias renováveis e agora está criando uma Diretoria de Transição Energética. Estão investindo na eletrificação da matriz, sem descuidar de oferecer o petróleo, com o qual nós ainda teremos de conviver durante muitos anos. Tem de investir e buscar outras alternativas. Eu não tenho dúvida de que nós vamos todos caminhar nessa direção. Mas é importante lembrar que, no início do século XX, o carvão deixou de ter a preferência para as matrizes energéticas no mundo. E acabou o carvão? Não. O mesmo vai acontecer com o petróleo. Acredito que haverá um processo muito acelerado de transição para veículos elétricos e veículos leves, mas tem que fazer as duas coisas. Continuar com o processo de refino porque o mercado não vai acabar da noite para o dia. E, ao mesmo tempo, embarcar nesse processo de transição.

A Petrobras anunciou mudanças na sua política de preços para os combustíveis derivados do petróleo, com o fim do Preço de Paridade de Importação (PPI), que vinculava as tarifas à flutuação do valor praticado no mercado internacional. O senhor concorda com essa decisão?

Na minha visão, é o mínimo que deveria ter sido feito. Quando você tem uma empresa que, majoritariamente, tem um poder de controlar o mercado, não seria ela que deveria ter liberdade para praticar preço. Na Europa, é natural você ter os preços dos combustíveis equiparados ao mercado internacional porque eles compram todo esse combustível. Um país que tem muita produção sempre tem uma política que não é feita pelas empresas. Todo país busca garantir os suprimentos para seu mercado de energia. É uma questão de segurança energética. O governo poderia definir o seguinte: qualquer empresa que produz petróleo no Brasil, para exportar, teria que destinar um percentual daquilo que ela está explorando para atender o mercado interno. Aí você cria uma sobra de energia. Já me assusta, hoje, a Petrobras ter esse poder absoluto para definir preço.

Metrópoles