E agora, Egito?
O assunto mais discutido entre os formadores de opinião políticos, neste momento, é o futuro do Egito, simplesmente porque a situação político-institucional daquele país pode tanto mudar significativamente o equilíbrio de poder no mundo quanto manter tudo como está. Antes de adentrar nessa questão, no entanto, faz-se necessário preâmbulo algo longo.
Se há um ano dissessem que o maior país árabe – que há décadas vinha sendo o porto-seguro para os interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos no Oriente Médio – poderia vir a deixar de ser um títere do Ocidente, poucos acreditariam. Tudo parecia sob absoluto controle, ao ponto de que todos os mais importantes líderes políticos de todas as partes do mundo, ao longo das três últimas décadas, confraternizaram com o agora ex-ditador Hosni Mubarak.
Do democrata Jimmy Carter ao republicano George Bush pai, chegando a Barack Obama, ou de Sarney a Lula, todos mantiveram uma relação com a ditadura egípcia que ia da cordialidade à aliança explícita, tudo fundado na certeza de que havia meramente que aceitar um regime que perseguia opositores políticos, praticava a censura, assassinava, torturava, fraudava eleições e roubava descaradamente o patrimônio público.
Só um completo sem-vergonha diria que há qualquer coisa de melhor ou de desculpável na ditadura egípcia para justificar que, nas últimas três décadas, não tenha sido atacada pela grande imprensa ocidental como a inegável ditadura cubana, a semi-ditadura iraniana ou a legítima democracia venezuelana são atacadas ininterruptamente.
Pelo contrário: a ditadura egípcia era pior, mais violenta, mais corrupta, mais desavergonhada do que a cubana, por exemplo. Ainda que não haja gradações para falta de liberdade política, característica primeira das ditaduras, há que olhar o que esta ou aquela ditadura fazem com o poder.
Ainda que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Cuba, por questões políticas, tenha sido deixado de lado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) desde 2007, o país figurava na 40ª posição, naquele ano, e o Egito ocupa 101ª posição no ranking de qualidade de vida divulgado em 2010.
Apesar disso, o último relatório do PNUD “explica” que ano passado Cuba não foi incluída no estudo “devido à indisponibilidade de números do rendimento dos cidadãos comparáveis internacionalmente”, mas ressalva que Cuba tem realizações sólidas e continuadas na saúde e na educação.
Detalhe: o Brasil ocupa a 73ª posição no IDH.
Ou seja: ditaduras são ditaduras, mas algumas são usadas para oprimir o povo de forma a que os ditadores obtenham benesses particulares, enquanto que outras fazem parte de projetos político-ideológicos convictos e aparentemente bem-intencionados, ainda que equivocados. Este fato vai ficando cada vez mais claro e difícil de esconder.
Não é por outra razão que, na última sexta-feira, quando do anúncio da renúncia de Mubarak e de sua camarilha, uma Globo, por exemplo, admitiu, de forma inédita, os interesses e a condescendência histórica dos EUA com aquele regime, o que certamente fez o telespectador pensante se perguntar por que a ditadura egípcia nunca foi atacada pela mídia como Cuba ou Irã.
Contextualizada a situação, pois, passamos a um esforço para entender os futuros possíveis para o Egito, sempre na linha lógica de pensamento, a que resta quando o futuro é nebuloso.
Há, pelo menos, um consenso entre todas as correntes político-ideológicas da opinião pública e da mídia: a queda da ditadura coloca o Egito diante de um desafio quase tão grande quanto o de reconstruir institucionalmente o Iraque, o que, como se sabe, anos e anos após a invasão americana ainda não foi conseguido.
Não surgiu uma verdadeira liderança política durante a revolução mais popular e espontânea de que se tem notícia na história contemporânea, o que dá margem a supor desde uma perpetuação no poder da junta militar que agora governa os egípcios, passando pela ascensão de um regime teocrático fundamentalista nos moldes iranianos e chegando ao cenário dourado de um processo eleitoral livre, com a chegada ao poder de um grupo político independente e democrático que nem se sabe se existe naquele país.
Especulações envolvendo os atores políticos, existem aos montes. Jornais, televisões, revistas e internet oferecerão detalhes políticos que os “egipcianistas”, digamos assim, vão divulgando. Uma dessas especulações, porém, sobrepõe-se a todas as outras: o papel dos militares no processo.
O mais provável, em situação normal, seria imaginar que os militares, que controlam até a economia atuando como empresários, fraudarão a vontade popular, impedindo a livre disputa política entre partidos existentes ou por se formar e colocando um títere no poder, inclusive fraudando o processo eleitoral, pois recebem bilhões de dólares dos EUA anualmente e têm poder para fazer jus aos pagamentos.
A minúscula elite egípcia, que vive à farta enquanto a massa sobrevive em condições de miséria, segundo vários analistas é composta por uma maioria de famílias ligadas aos militares e tudo o que lhe interessa é manter privilégios, tendo poder e influência para tanto. Contudo, não se sabe se esse poder e essa influência serão suficientes, depois do que ocorreu no país.
Haverá que combinar tudo com as efervescentes ruas egípcias, nas quais um quarto da população de um país de mais de oitenta milhões de almas fez dos tanques do regime palanques e quadros de aviso para as mensagens insurrecionais e que teriam que ser massacradas pelos militares para cederem a uma nova ditadura produzida por nova eleição fraudada.
A mobilização egípcia, o acesso do povo à informação e a fantástica comunicação eletrônica entre a sociedade civil (esta um ator que hoje parece ser a grande força política emergente no país) certamente manterão fragilizado qualquer novo regime que não seja absolutamente legítimo.
Os Estados Unidos teriam condições de sustentar um banho de sangue? Parece difícil, vendo a persistência daquele tsunami humano que varreu Mubarak e seus asseclas do poder. E a grande imprensa internacional, que sai escaldada dessa primeira fase da revolução egípcia, pois vai ficando claro seu envolvimento no discurso hipócrita dos americanos sobre ditaduras, pode decidir não arriscar perder mais credibilidade.
O uso da internet pelo povo egípcio certamente impedirá que a mídia tente acobertar uma nova ditadura naquele país. E muito mais uma eventual repressão sangrenta do povo pelas forças armadas, de forma a instalar outro regime ilegítimo.
A fragilização de Israel será inevitável, caso o Egito se torne democrático e independente. Deve levar a um inédito ímpeto negociador essa potência militar intransigente que tantos genocídios praticou ao longo do século XXI. É pouco ou alguém quer mais?
Por outro lado, as outras ditaduras da região, mancomunadas com os EUA e com a direita mundial, têm grande interesse em sabotar a revolução egípcia. Fracasso ou sucesso dessa revolução determinarão, respectivamente, continuidade das ditaduras ou um desejável efeito dominó democrático. Esse é o jogo que agora passa a ser jogado no Oriente Médio.