O progressismo no STF e o poder de governar
Entrevista do ministro do STF Carlos Ayres Britto publicada hoje (2ª feira, 4 de julho) na Folha de São Paulo reflete uma série de decisões recentes da Suprema Corte de Justiça brasileira que estão mudando radicalmente a sociedade, decisões como a de reconhecimento dos direitos dos homossexuais, de permissão para a Marcha da Maconha ou de libertação do ativista italiano Cesare Battisti.
Os votos dos ministros na questão dos direitos dos homossexuais, aliás, remeteram o país ao iluminismo mais puro, a avanços inéditos no que concerne aos direitos e às garantias individuais do cidadão. Apesar de o STF ainda ser a porta de saída para os poderosos por conta de membros daquela Corte resistentes ao processo de evolução ali em curso, até o escandaloso caso Pimenta Neves sucumbiu aos novos tempos.
O que ocorre na Suprema Corte de Justiça do país se deve simplesmente ao fato de estarmos no terceiro governo progressista consecutivo, desde de 2002. Não fosse a vitória de Lula em 2002 e 2006 e a de Dilma Rousseff em 2010, certamente os mais de dois terços das vagas de ministro do STF que foram preenchidas no período teriam hoje ocupantes bem menos progressistas.
E quando se fala em progressismo, atualmente, há que explicar do que se está falando. Nesse aspecto, a definição da Wikipedia parece a mais razoável.
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Progressismo
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O progressismo é uma doutrina (muitas vezes política) ou corrente filosófica de pensamento relacionada ao positivismo. O progressismo é a intenção do adiantamento, desenvolvimento, aperfeiçoamento, evolução, superação e oposta ao conservadorismo. Políticas progressistas são aquelas que propõem mudanças sócio-econômicas radicais, para o desenvolvimento e, naturalmente, o progresso do país.
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Tudo isso nos remete ao poder de governar. Apesar de ser terrivelmente errado que presidentes da República possam escolher aqueles que um dia poderão julgá-los, o bom uso que Lula, sobretudo, fez desse poder terá efeito por décadas, o que significa que, em caso de vitória de um José Serra em 2002, hoje o país amargaria escolhas previsíveis por quem compartilha as posições políticas deste blog e até por alguns que não compartilham ou compartilham em parte.
Cada vez mais, portanto, vai-se entendendo que não adianta adotar, em uma democracia como a nossa, a postura de tudo ou nada, ou seja, de que se eu não puder governar para realizar de uma só vez tudo que tem que ser realizado, prefiro ficar de fora criticando. Não. Foi graças a Lula ter sido eleito e feito o possível dentro do status quo vigente que não temos hoje um bando de reacionários como maioria na Suprema Corte.
Aliás, hoje, no Brasil, o papel que o STF ainda pode vir a desempenhar será o de estender a todos as mesmas garantias e direitos que, até então, nem todos tinham, como no caso dos homossexuais, que, apesar de sempre terem tido os mesmos deveres dos demais cidadãos, tinham menos direitos.
Não é por outra razão que a Folha de São Paulo destaca, na entrevista em questão, a posição progressista do ministro Ayres Brito em relação à homofobia, julgando que há que fazer leis nesse sentido, de coibir, criminalizar e punir o discurso homofóbico, que cada vez mais vai sendo responsável pelo recrudescimento da violência contra esses cidadãos discriminados, caçados, espancados e até assassinados por sua natureza.
Não se trata, hoje, dessas questões individuais, como a dos homossexuais. Hoje o país vive uma guerra pelo equilíbrio entre os direitos e deveres de todos os cidadãos, independentemente de etnia, credo, orientação sexual, origem geográfica, estrato social, faixa etária e o que mais surgir. A defesa desses valores humanistas e progressistas é um imperativo civilizatório.
Leiam, abaixo, a excelente entrevista do ministro Ayres Britto.
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FOLHA DE SÃO PAULO
4 de julho de 2011
ENTREVISTA DA 2ª – CARLOS AYRES BRITTO
Preconceito de homofóbico o faz chafurdar no ódio
PELA 1ª VEZ, MINISTRO CONHECIDO POR CITAÇÕES POÉTICAS E VOTOS PROGRESSISTAS NO STF DEFENDE PUBLICAMENTE A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA
FELIPE SELIGMAN
JOHANNA NUBLAT
DE BRASÍLIA
Conhecido por citações poéticas e votos progressistas, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto, 68, defende, pela primeira vez publicamente, a criminalização da homofobia, ao entender que quem a pratica “chafurda no lamaçal do ódio”.
Protestos de congressistas da bancada evangélica acabaram paralisando a tramitação do projeto de lei anti-homofobia, que está estacionado há dois meses no Senado.
Para o ministro, não são necessárias novas leis para garantir aos casais gays os mesmos direitos dos heterossexuais já que a Constituição é “autoaplicável”.
Em entrevista concedida à Folha na beira do lago Paranoá, em Brasília, Ayres Britto disse que vê o debate sobre as drogas como uma questão de “saúde pública”.
Afirmou ainda que “se nós, os homens, engravidássemos, a autorização para a interrupção da gravidez de feto anencéfalo estaria normatizada desde sempre”.
FOLHA – O STF tem sido acusado de usurpar a competência do Legislativo. O sr. concorda com essa afirmação?
CARLOS AYRES BRITTO – Não concordo. Veementemente respondo que o Supremo não tem usurpado função legislativa, principalmente do Congresso. O que o STF tem feito é interpretar a Constituição à luz da sua densa principiologia. O parágrafo 2º do artigo 5º autoriza o Judiciário a resolver controvérsias a partir de direitos e garantias implícitos.
FOLHA – E por que essa crítica ao STF?
CARLOS AYRES BRITTO – As pessoas não percebem que os princípios também são normas e com potencialidade de, por si mesmos, resolver casos concretos quando os princípios constitucionais têm os seus elementos conceituais lançados pela própria Constituição. O Judiciário está autorizado a dispensar a mediação do Legislativo, porque, na matéria, a Constituição se faz autoaplicável.
FOLHA – No caso das uniões estáveis homoafetivas isso aconteceu?
CARLOS AYRES BRITTO – Aconteceu, fizemos o saque de princípios constitucionais, tanto expressos quanto implícitos. Como fizemos quando proibimos o nepotismo no Judiciário e nos demais poderes. Porque o nepotismo é contrário a princípios constitucionais, até explícitos, como o princípio da moralidade. E cumprimos bem com o nosso dever: tiramos a Constituição do papel. Também no caso da homoafetividade, interpretamos os artigos da Constituição na matéria à luz de princípios como igualdade, liberdade, combate ao preconceito e pluralismo.
FOLHA – Qualquer nova lei virá confirmar o que foi decidido, mas nunca para criar regra diferente do que foi debatido?
CARLOS AYRES BRITTO – Exatamente. A isonomia entre uniões estáveis heteroafetivas e homoafetivas é para todos os fins e efeitos. Em linha de princípio, é isso. Assim foi pedido pela Procuradoria-Geral da República quando propôs a ação. Não pode haver legislação infraconstitucional, parece evidente, que amesquinhe ou nulifique essa isonomia.
FOLHA – O que exatamente o STF decidiu sobre homoafetividade?
CARLOS AYRES BRITTO – Pela possibilidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Possibilidade jurídica, lógico. Em igualdade de condições com as uniões estáveis dos casais heterossexuais. União estável com a força de constituir uma entidade familiar.
FOLHA – Qual a diferença entre a decisão que negou a união estável em Goiânia e a que permitiu o casamento civil em Jacareí?
CARLOS AYRES BRITTO – Como desfrutam de independência técnica, além da política, os magistrados são livres para equacionar juridicamente as controvérsias, desde que fundamentem tecnicamente suas decisões. Natural, portanto, que dois juízes projetem sobre a mesma causa um olhar interpretativo descoincidente, cabendo às partes insatisfeitas os devidos recursos ou, quem sabe, reclamações para o próprio Supremo.
FOLHA – Sem entrar no mérito de decisões específicas, qualquer decisão que diferencie a relação entre o homossexual e o heterossexual vai contra o STF?
CARLOS AYRES BRITTO – Sim. A decisão foi claramente no sentido da igualdade de situações entre os parceiros do mesmo sexo e casais de sexos diferentes.
FOLHA – O Congresso precisa fazer alguma lei complementar?
CARLOS AYRES BRITTO – Entendo que a Constituição é autoaplicável na matéria. Entretanto, há aspectos de minúcias que ficam à disposição da lei comum.
FOLHA – A questão deve voltar ao STF?
CARLOS AYRES BRITTO – A Constituição atual, caracterizando-se como redentora dos direitos e garantias, e não como redutora, estimulou muito a judicialização das controvérsias, inclusive as de natureza política. Daí a expectativa de que a matéria tem potencialidade para retornar ao tribunal.
FOLHA – O sr. é a favor de criminalizar a homofobia?
CARLOS AYRES BRITTO – Tenho [para mim] que sim. O homofóbico exacerba tanto o seu preconceito que o faz chafurdar no lamaçal do ódio. E o fato é que os crimes de ódio estão a meio palmo dos crimes de sangue.
FOLHA – Recentemente o STF decidiu sobre o direito de organização para a defesa da legalização da maconha. Será assim para todas as marchas?
CARLOS AYRES BRITTO – A decisão se circunscreveu à chamada Marcha da Maconha, mas os respectivos fundamentos se prestam para a discussão a céu aberto de toda e qualquer política de criminalização das demais substâncias entorpecentes.
FOLHA – O sr. tem opinião sobre o tema?
CARLOS AYRES BRITTO – Minha inclinação pessoal é para ver o tema como uma focada questão de saúde pública. Me inquieta o fato de que temos tantas leis de endurecimento da resposta punitiva do Estado e, no entanto, a produção, o tráfico e o uso de tais substâncias não param de crescer.
FOLHA – Outro tema polêmico é o do aborto em caso de feto anencéfalo. O sr. já expôs opinião favorável à prática, certo?
CARLOS AYRES BRITTO – No voto que proferi na discussão sobre o cabimento da ADPF [ação que trata do tema] manifestei opinião de que se nós, homens, engravidássemos, a autorização para a interrupção da gravidez de feto anencéfalo estaria normatizada desde sempre.