A Verdade vos libertaria
No fim da noite de quarta-feira, 21 de setembro de 2011, a Câmara dos Deputados aprovou a criação da Comissão da Verdade, que pretende elucidar e registrar crimes contra os direitos humanos cometidos em um período que vai de 1946, primeiro ano do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946 a 1951), a 1988, um ano antes da primeira eleição direta após a ditadura militar instalada no Brasil em 1964.
A Comissão da Verdade terá sete membros para investigar todo esse período e essa é uma tarefa quase insana, não há dúvida. No período de 43 anos a ser investigado, é possível que tenham ocorrido no Brasil mais crimes contra direitos humanos por motivação política do que há de estrelas no céu.
A sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a Comissão da Verdade mostrou que a base aliada na Casa, por orientação do governo, fez seguidas concessões aos partidos identificados com os interesses de militares remanescentes da ditadura militar que temem ser atingidos pelas investigações, por mais que a Comissão em tela não venha a ter poderes para puni-los e que o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que a Lei da Anistia (que extingue punições para “os dois lados”) é, digamos assim, “imexível”, à diferença do que ocorre em países como Chile, Argentina ou Uruguai, que estão punindo os esbirros de ditaduras militares análogas à brasileira que se abateram sobre outras nações sul-americanas naquele período da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, “guerra” que foi a razão do surgimento de tais ditaduras nesta parte do mundo.
A impossibilidade de se fazer no Brasil o que se consegue fazer em países que sofreram ditaduras análogas à “nossa” mostra que grupos políticos e chefes militares a eles aliados ainda mantêm um tipo de poder que não é político, é de persuasão.
Na sessão da Câmara que aprovou a Comissão da Verdade, o deputado da bancada dos militares Jair Bolsonaro subiu à tribuna e como que conclamou chefes militares a tomarem uma providência contra o que estava acontecendo ali, dizendo que o objetivo da Comissão, na verdade, seria cassar aposentadorias e perseguir velhinhos ex-militares que possam vir a ser apresentados como torturadores ou assassinos ou cúmplices de torturas e assassinatos.
Na prática, no Brasil ainda há grupos sociais e ideológicos organizados (formal ou informalmente) que se acreditam acima das leis e, assim, com “direito” de praticar contra inimigos políticos e ideológicos de esquerda alguns tipos de ações que eram empreendidas nos idos de 1964 e durante todo o período autoritário. Posso garantir que sei do que estou falando…
Vige no Brasil também, portanto, uma espécie de chantagem desses grupos políticos e paramilitares contra os governos democráticos. Acredita-se que haja um limite para ações dos governos. Por exemplo: uma reforma agrária radical ou uma forte taxação dos muitos ricos poderia não ser aceita e desencadearia uma ofensiva da direita que começaria através da mídia e desembocaria em novo levante militar.
Muitos não acreditam nisso. Acham que o Brasil vive outro momento e que não haveria clima para um novo golpe devido à importância deste país no mundo. Pergunto, então, por que o governo fez tantas concessões para aprovar uma Comissão que, inclusive, não conseguirá punir ninguém, à diferença do que acontece em países vizinhos que estão passando a limpo suas ditaduras militares?
De onde vêm a grandiloqüência e a ousadia de Jair Bolsonaro se não das “costas quentes” que ele acredita – ou sabe – que tem? Os governos Lula e Dilma não ousaram avançar em propostas como a democratização da comunicação ou na reforma agrária e até em aprovar uma lei que proteja homossexuais que estão sendo chacinados quase que diariamente no Brasil, por quê?
Dirão que é porque não quiseram, mas acho que é porque tiveram medo.
Esses grupos de direita envolvem militares, grandes empresários e grandes meios de comunicação. Isso está claro. Essa é a força que vem mantendo este país preso a situações como a concentração da propriedade de terras ou de propriedade de meios de comunicação que inexistem em qualquer país democrático e desenvolvido.
Se essa Comissão da Verdade realmente chegasse a algum lugar, o Brasil estaria livre desse permanente estado de chantagem em que vive por ação dos mesmos grupos políticos, econômicos e ideológicos que implantaram uma ditadura militar que calou, perseguiu, prendeu, torturou e matou à vontade e que, ainda hoje, estende sua sombra sobre a nação.