O direito de greve e seu limite
A palavra greve deriva da equivalente francesa “grève” e se inspirou na Place de Grève, assim chamada até 1803, e que hoje se chama Place de l’Hôtel-de-Ville. A praça fica em Paris à margem do rio Sena, onde havia um porto que se tornou local de reuniões de desempregados e operários insatisfeitos com as condições de trabalho na França do século XIX.
A Constituição Federal, em seu artigo 9º, e a Lei Federal nº 7.783/89 asseguram o direito de greve a todo trabalhador brasileiro, inclusive dos setores considerados essenciais, sejam de gestão pública ou privada. Qualquer discussão sobre as greves de policiais militares que estão explodindo em diversos entes federativos obriga quem discute a conhecer a lei.
A redação do artigo 9º da Constituição de 1988 dispõe que:
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Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º – A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º – Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.
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Já a lei 7783/89 dispõe que:
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Art. 1º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.
Art. 3º Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho.
Art. 4º Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembléia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços.
Art. 5º A entidade sindical ou comissão especialmente eleita representará os interesses dos trabalhadores nas negociações ou na Justiça do Trabalho.
Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos:
I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve;
II – a arrecadação de fundos e a livre divulgação do movimento.
§ 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem.
§ 2º É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento.
§ 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.
Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.
Art. 8º A Justiça do Trabalho, por iniciativa de qualquer das partes ou do Ministério Público do Trabalho, decidirá sobre a procedência, total ou parcial, ou improcedência das reivindicações, cumprindo ao Tribunal publicar, de imediato, o competente acórdão.
Art. 9º Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.
Parágrafo único. Não havendo acordo, é assegurado ao empregador, enquanto perdurar a greve, o direito de contratar diretamente os serviços necessários a que se refere este artigo.
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Art. 12. No caso de inobservância do disposto no artigo anterior, o Poder Público assegurará a prestação dos serviços indispensáveis.
Art. 13 Na greve, em serviços ou atividades essenciais, ficam as entidades sindicais ou os trabalhadores, conforme o caso, obrigados a comunicar a decisão aos empregadores e aos usuários com antecedência mínima de 72 (setenta e duas) horas da paralisação.
Art. 14 Constitui abuso do direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho.
Art. 15 A responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal.
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O artigo 142, parágrafo 3º, inciso IV da Constituição veda a sindicalização e o direito de greve a militares (Forças Armadas, corpos de bombeiros), mas não faz referência à Polícia Militar, que tem como dever a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio enquanto que Exército, Marinha e Aeronáutica atuam em defesa da pátria.
O preceito constitucional sobre direito de greve e a lei que regulamentou a matéria seriam, portanto, aplicáveis à PM. A Emenda Constitucional nº 18 e 20 de 1998, porém, mudou o Art. 42 ao especificar que as Polícias Militares são militares e que a eles se aplicam as disposições do art. 142 § 3º (incluindo o inciso IV que veda a greve).
Confira:
Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
Apesar de a lei ter sido mudada, no entanto, ela vem sendo ignorada ao longo dos anos, na prática, pois sempre ocorrem greves de policiais militares.
Os textos legais são conquistas do povo brasileiro, ao menos para o setor civil. O arcabouço legal que precedeu a Constituição de 1988 dificultava ou vetava o exercício desse direito e havia sido feito para favorecer o capital, sobretudo na forma que tomou após o regime militar.
Toda essa parafernália legal, de qualquer forma, pode ser resumida assim: o direito de greve é legítimo contanto que não cause danos ao conjunto da sociedade, sendo proibido que uma categoria profissional prejudique toda a coletividade na ânsia de obter do patronato melhores condições de trabalho e remunerações.
Sob qualquer perspectiva legal e moral, portanto, a greve dos policiais militares baianos extrapolou o pacto social que ensejou a regulamentação do direito de greve. Ao longo dos 28 dias de fevereiro do ano passado, segundo dados da Secretaria de Segurança da Bahia ocorreram 137 assassinatos na região metropolitana de Salvador; em 2012, nos 10 primeiros dias de fevereiro ocorreram 159 assassinatos.
A greve da PM baiana custou muito caro à Região Metropolitana de Salvador, que, segundo o IBGE (2010), encerra uma população de 3.707.281 habitantes. Ou seja: cerca de três dezenas de milhares de trabalhadores submeteram quase quatro milhões de cidadãos aos seus interesses pessoais e os expuseram ao pior custo possível, a morte, sem falar nos feridos e nos danos patrimoniais.
A situação se agrava quando se sabe que políticos e sindicalistas estiveram usando a greve na Bahia para fomentá-la em outros Estados, tentando impedir que a categoria paralisada naquele Estado chegasse a um acordo com o governo baiano a fim de levantarem o movimento em outras regiões.
Nesse momento, percebe-se que alguns fomentaram a continuidade de um movimento que furtou a legitimidade a si mesmo sem mirar por um instante os anseios legítimos dos policiais militares baianos, mas tão-somente os próprios interesses políticos. Imagina-se que mesmo que o governador Jacques Wagner tivesse cedido os fomentadores da greve talvez tentassem impedir que acabasse a fim de que sua continuidade contaminasse outros Estados.
O movimento dos policiais militares baianos se perdeu nesse ponto. As vidas que foram ceifadas nesse período, os danos patrimoniais, a angústia da sociedade baiana, tudo isso não apenas retirou a legitimidade daquele movimento, mas tornou seus autores legítimos criminosos.
Quem responderá pelas vítimas fatais que foram produzidas por essa greve? O governo deveria ceder diante de uma paralisação que violou o arcabouço legal? Quem responderá pelos atos de policiais que agiram como bandidos, que cometeram atos de terrorismo como o que um dirigente afirma que seria cometido em gravação divulgada pela imprensa?
Os dirigentes do movimento baiano que foram objeto de gravação de conversa telefônica em que combinaram que carretas seriam incendiadas em estrada a fim de conter o avanço das forças federais acusam a Globo de ter “editado” o material, mas não há edição alguma da frase sobre incendiar carretas ou da frase em que uma parlamentar pregava que a solução da questão baiana inviabilizaria a produção de greve no Rio de Janeiro.
É absolutamente inaceitável. Essas condutas de líderes grevistas colocaram em segundo plano os anseios mais do que legítimos dos policiais militares baianos e a inabilidade e a inflexibilidade do governo do Estado. Quando a população tem que ser protegida da polícia que deveria protegê-la, o próprio conceito de direito de greve perde o sentido.