A medida de uma nação
Dei-me a escrever enquanto a madrugada já ia alta. Tentara dormir, mas uma muralha de sentimentos e reflexões restava interposta entre o sono e a vigília – até porque, uma dezena de horas antes só havia rancor. O tribunal em que julgamos nossos contrários já julgara e condenara os que não se adaptaram às idiossincrasias do que ora escreve.
Dos últimos embates políticos em que a nação mergulhou nos últimos dias – sendo que mergulha em algum, de porte, toda semana –, talvez o que se referiu ao leilão do campo petrolífero de Libra tenha sido o mais aguerrido, menos racional e impressionantemente “plural”, se é que cabe o termo para o que virou uma virtual carnificina retórica.
Rancor. Esse foi o saldo do que deveria ter sido um processo cidadão, democrático, republicano de discussões sobre passo tão largo e profundo que o Brasil daria, como de fato deu.
E quando se pensa em rancor ele se torna mais doloroso quando se instala inclusive entre aqueles que, até aquela divergência, sempre se respeitaram. Ora, quando três lados se engalfinham em uma luta sem regras, limites e juiz, em um vale-tudo em que o objetivo nunca é menos do que a destruição completa da honra do adversário, nada de bom pode suceder.
Eis que, na primeira da dezena de horas que antecederam o pincelar destas palavras, o rancor cede espaço ao júbilo por uma filha que, após meia década de labuta estafante, naquele momento estava recebendo seu diploma de graduação em Análise de Sistemas lá do outro lado do mundo, na Oceania australiana.
Tecnologia maravilhosa, a deste mundo progressivamente louco. Tecnologia que tanto mal faz, também faz o bem – une um pai a um dos momentos mais importantes da vida de uma filha expatriada que acabara de alcançar o sonho que perseguia.
Gabriela, minha Gabriela… Quanto orgulho.
Coração mais leve, o fígado vai adormecendo e o cérebro, despertando.
O que é melhor para todos os brasileiros, sejamos de direita, de esquerda, do centro, da periferia, do Norte, do Sul, evangélicos, católicos, corintianos, palmeirenses, idosos, adolescentes, ricos ou pobres?
Serão os nossos interesses tão díspares quanto, ainda que inconscientemente, fazemos parecer? Ou não será que, no ocaso dos casos, todos acabamos submetidos aos mesmos riscos que corre qualquer nação que não sabe convergir e, muito menos, divergir?
Todavia, se acharmos que, no Brasil, a luta política é desproporcionalmente renhida, não estaremos certos, ainda que não tão longe da verdade. Há nações em que compatriota extermina compatriota, muitas vezes com requintes de crueldade.
Então, por isso, nossa luta política, nos termos em que vem se dando, é suave até demais? Não, não é. Não chegamos ao ponto da guerra civil, mas ela já se ensaia entre os que não lhe sabem a razão, vendados que estão pela pobreza, pela ignorância e pela injustiça social. E acontece na retórica da elite intelectual e política, onde talvez seja mais perigosa…
Outro dia, dei-me a ler comentários de leitores em um dos sites que publicam meus textos. Como todos sabem, há os que amam e os que odeiam quem expõe suas opiniões e preferências ou antagonismos. Mas foi nos que odeiam que encontrei um ponto crucial de reflexão.
Um homem, não parecendo um adolescente, não parecendo um iletrado, dizia que o que eu escrevera – e ele acabara de ler – denotava a causa da paralisia cerebral de uma minha filha, pois ela seria tão “doente” quanto o pai.
Não me chocou. Fez-me pensar: quem pode me odiar tanto a ponto de não respeitar limite algum? O que fiz para esse que guarda dentro de si tanto rancor? Até que ponto esse ser iria em busca de vingança contra o que formulei em palavras escritas ou proferidas? Matar-me-ia, talvez? Não duvidei.
Mas não houve ódio, em reação. Houve tristeza e, de certa forma, um tipo de remorso. Alguma coisa eu fiz àquele ser, é claro. E fiz porque, como tantos outros temos feito, muitas vezes me entrego à tentação de não valorizar o direito do outro ao contraditório.
Mas não pense, leitor, que isto é um mea-culpa. Quando uso a primeira pessoa do singular, na verdade quero usar a do plural. Porque não há lordes ingleses – se essa pode ser uma medida de civilidade, o que para qualquer historiador seria questionável – entre qualquer um dos que fazem política nua e crua – clichês à parte.
Eis-me, pois, em uma crise de identidade. Sou o mocinho e meu contrário é o vilão? Ou você, meu contrário, é que é o mocinho e o vilão sou eu?
Podemos ser imparciais, em tal impasse?
Não seria lucidez de nossa parte – minha e sua, que de mim diverge – se concluíssemos que não há vilões nem mocinhos nessa luta, mas compatriotas em busca de uma solução que seja minimamente aceitável por todos? Esse não deveria ser o sentido da política, a busca de um consenso mínimo que permita manter a disputa dentro de limites razoáveis?
Deixo-o com essa reflexão, leitor que concorda, discorda ou que está entre os extremos. Uma nação se mede pela forma mais ou menos civilizada como converge ou diverge. Civilidade, pois, é capacidade de um lado aceitar que divergência, em certas questões, é razoável, mas do outro lado igualmente entender que divergência tem limites, pois não basta a si mesma.
Continuemos a luta, pois. Critiquemo-nos, ataquemo-nos duramente, sim, mas não selvagemente. Tenhamos em mente, por isso, que a forma como empreendemos a inevitável disputa de interesses dos diversos segmentos da sociedade é, também, a medida de nosso estágio civilizatório, pelo qual todos nós, sempre, teremos total responsabilidade.
Todos, sem exceções.