Humor que, para fazer rir, faz chorar, não é humor, é sadismo
Então quer dizer que “em nome do humor” vale tudo? Colunistas da grande imprensa garantem que humor existe “para incomodar, para criar polêmica”, e que tem que “escrachar a tudo e a todos”. Sem complacência. Sem limites. Sem trégua.
Deficiente? Só se for agora. Fé? É a primeira da fila. Minorias (homossexuais, negros)? Sem dó nem piedade. Vítimas de estupro? Ora, tenham senso de humor, suas mal-amadas – a menos que sejam mãe, esposa ou filha do “humorista”.
Não sei se é bem assim. Porém, é claro que não adianta explodir ou metralhar cretinos que debocham do sofrimento de alguém que não pode usar as pernas ou de uma mulher que acaba de ser estuprada porque sempre haverá idiotas iguais para fazer a mesma coisa. E, acima de tudo, porque violência não resolve conflitos, agrava-os.
Apesar dessa linha tão original de defesa da falta de escrúpulos dos que exploram a insensibilidade de certo público, recentemente uma autoproclamada “humorista” conseguiu provar que esse tipo de “humor” não passa de conduta antissocial.
Texto de uma certa Silvia Pilz, colunista de O Globo, revoltou legiões nos últimos dias. O texto ridiculariza uma legião de pessoas pobres que, ao longo dos últimos anos, conseguiram comprar plano de saúde. E, juntando ignorância ao que chama de “humor”, debochou da taxa de natalidade dos pobres, que, no Brasil, vem caindo vertiginosamente.
Se alguém, por acaso, não leu, eis a oportunidade. Não é um texto que eu leria – eis que agride idioma e bom gosto tanto quanto pessoas –, mas, no âmbito desta reflexão, sua leitura torna-se imperativa.
Quem não é pobre e tem seu plano de saúde “top de linha” desde que nasceu certamente pode até achar engraçado a ideia de que pobre “gosta de ficar doente”, mas qualquer pessoa que conheça minimamente o país em que vive sabe que ficar doente é o que mais apavora o pobre.
Primeiro, porque pobre que é pobre precisa trabalhar e teme perder o emprego se fica doente. Segundo, porque os planos de saúde “populares” – ou, como diria Silvia, “de pobre” – são uma merda, com filas quilométricas e esperas imensas para marcar consultas, exames, razão pela qual estão sendo multados ou proibidos para comercialização.
Mas a peça de “humor” de Silvia foi escrita por seus preconceitos e informações distorcidas, de modo que seria muito exigir que se baseasse na realidade da saúde “para pobre” que vige no país desde sempre – seja a saúde pública, seja a privada.
Não achou engraçado o texto de Silvia? Então você não é Charlie. Ainda bem, aliás, porque se ser Charlie é sinônimo de apoiar que escrevam uma estupidez como essa, sê-lo é um demérito.
Contudo, fica difícil proibir que escrevam, declamem ou encenem lixo como esse porque o censor que for coibir esse tipo de barbaridade pode começar a enxergar “barbaridades” onde não existem…
Nesse aspecto, as redes sociais, os blogs e até a imprensa vêm contribuindo para que esse tipo de conduta antissocial não fique impune. A sociedade, sem legislar sobre o pensamento, vem achando caminhos para impor limites aos que lucram com o sofrimento alheio.
Note, leitor, que a tal Silvia colocou uma nota (posterior) no começo e no fim de seu texto asqueroso. Fez isso porque foi alvo de uma monumental execração em blogs, redes sociais e até na imprensa. Chegou a ser entrevistada pela BBC. Um jornalista chamado Ricardo Senra fez uma excelente entrevista, na qual captou toda degenerescência moral da “colunista-humorista”.
Outro espertinho que enche os bolsos afrontando pessoas que sofrem, em artigo publicado nesta sexta (16) na Folha de São Paulo informa que suas ações igualmente asquerosas tiveram consequência.
Rafinha Bastos, apesar do que diz no texto em questão, deu-se muito bem. Conseguiu ser apresentador de programas de televisão, até. Suas agressões a mulheres estupradas e a deficientes o tiraram de teatros obscuros em que dava seus shows e o levaram à mídia eletrônica.
Porém, seu texto absurdo, onde se compara às vítimas do semanário Charlie Hebdo apesar de não ter sofrido repressão violenta ao seu comportamento antissocial, mostra que, de alguma forma, ele pagou um preço pela própria falta de caráter.
Que bom que houve um preço a pagar pela quantidade de excrementos que esse sujeito espalhou pelo país. Que bom que aqueles que passaram a imitar esse comportamento em seus círculos de relações sociais possam saber que tudo que se faz de errado na vida, tem preço.
Se é que alguma coisa do que esse sujeito disse é verdade, claro…
Moral da história? Infelizmente não se pode impor pré-censura a supostas criações artísticas, intelectuais etc. O risco de haver exagero por algum censor de plantão é bem conhecido dos brasileiros que viveram a ditadura militar. Não dá para arriscar de novo.
Porém, é um alento saber que a sociedade vai achando um caminho para punir o uso degenerado da comunicação. Milhares de pessoas em todo país, hoje, estão atentas aos que não respeitam limites e acham que podem agredir grupos sociais sem consequência alguma.
É preciso intensificar esse processo. Não se trata de propor linchamentos morais. Muito pelo contrário. Trata-se de impor um preço àqueles que cometem atos que, sob o pretexto de fazer sorrir, fazem muitos chorar, contradizendo a razão de ser do verdadeiro humor.