Lula fez ajuste fiscal em 2003 e foi acusado de “estelionato eleitoral”

Reportagem

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Já em meados da quinta década de vida, formei uma certeza inabalável: as pessoas não gostam de ser lembradas de tudo aquilo que não concorda com suas convicções conjunturais e vigentes no momento da lembrança; aliás, tendem a sentir-se ofendidas quando lembradas de que estão caindo em contradição.

Em 15 de março deste ano, na avenida Paulista, no limiar de uma grande manifestação contra o governo Dilma, eu perscrutava a opinião daqueles que para lá acorriam; estava em busca de entender o que movia aquela gente.

Lá pelas tantas, parei um daqueles indivíduos vestindo camiseta da Seleção brasileira na larga calçada da avenida apenas porque seus cabelos grisalhos me sugeriam que tinha idade suficiente para dar uma resposta coerente para a razão de seu protesto.

O sujeito, pinta de “bacana”, se disse industrial do setor de placas de sinalização de trânsito. Após desfiar um rosário de ataques a Dilma, Lula e ao PT, perguntei-lhe se, como empresário, estava lembrado da taxa de inflação, de desemprego e do número de falências em 2002, quando Lula se elegeu.

A resposta me desconcertou: disse que, até ali, quando FHC governava, estava “tudo ótimo” no país. Disse isso, aliás, após franzir o cenho, demonstrando, claramente, que minha pergunta o enfurecera.

Na verdade, a reação do industrial teve uma razão: segundo o IBGE, o país teve desemprego de 12,6% em 2002 – contra 4,8% em 2014 -, inflação de 12,53% – contra 6,41% em 2014 – e, segundo o Serasa, em 2002 houve 19.891 falências requeridas e 4.774 decretas – contra 1.661 requeridas e 700 decretadas em 2014.

Fica claro por que o sujeito não gostou da pergunta. Ela o lembrava de que as críticas que fora à avenida Paulista fazer eram absurdas. Ainda assim, disse que, em 2002, estava “tudo ótimo”, pois Fernando Henrique Cardoso teria “consertado o Brasil”.

Prefiro chamar de preâmbulo o que vai acima, e que a norma de redação jornalística chama de “nariz de cera” (parágrafo introdutório que retarda a entrada no assunto específico do texto; sinal de prolixidade incompatível com jornalismo), pois dar tais informações previamente se mostrará relevante para compor a ideia força do texto.

O que se pretende, aqui, é refrescar memórias e mostrar uma postura inexplicável da sociedade em relação ao governo Dilma Rousseff. Para tanto, basta lembrar que no primeiro ano do primeiro governo Lula não se falava de outra coisa, no país, a não ser em “ajuste fiscal” e “estelionato eleitoral”.

Quando se ouve e lê o que está sendo dito sobre o ajuste fiscal que o governo tenta aplicar, parece que o PT chegou ao poder ontem e que Dilma Rousseff está fazendo alguma coisa diferente do que Lula fizera quando chegou ao poder.

Poucos se lembram de que, em 2003, foi implantado um ajuste fiscal muito mais duro do que o atual, e de que aquela medida foi considerada “estelionato eleitoral”, assim como hoje.

A menos de um mês de mandato de Lula, a Folha de São Paulo já começava a atacar. Em 26 de janeiro de 2003, publicou o editorial “Remédio Errado”, no qual exigia ajuste fiscal:

Em vez de colocar o ajuste fiscal como prioridade absoluta e assim abrir caminho para a queda dos juros, o governo Lula repete o círculo vicioso em que, sem um ajuste estrutural, é a alta dos juros que o obriga a cortes de gastos e casuísmos na arrecadação, correndo atrás do desequilíbrio

Curiosamente, menos de três meses depois – em 13 de abril de 2003 – o mesmo jornal criticava o governo porque só falava e se preocupava com o ajuste fiscal que lhe havia sido cobrado em janeiro:

O mantra do ajuste fiscal é repetido à exaustão, sem convencer aqueles que observam a realidade com os olhos da razão

Enquanto isso, a banca internacional começava a rever a opinião de que o governo Lula enterraria o país. O Banco de Investimentos norte-americano Goldman Sachs elogiava a disposição do governo Lula para tomar medidas duras na economia. Disse o banco em nota:

O novo governo está concentrado em políticas corretas, como o ajuste fiscal e o aperto da política monetária. Exemplo disso foi a elevação da taxa básica de juros da economia, no último dia 22, de 25% para 25,5% anuais

À esquerda, a gritaria contra o ajuste fiscal de Lula era tão ou mais alta do que a de hoje. O então deputado federal petista Ivan Valente – hoje no PSOL – criticava duramente a austeridade do governo de seu partido.

Na oposição, o recém-eleito governador de Minas Gerais, Aécio Neves, comentava, no programa Roda Viva, que Lula estava surpreendendo ao repetir a política econômica de FHC:

O que nós estamos vendo, na verdade, é uma certa sequência daquilo que vinha sendo feito pelo governo Fernando Henrique, sobretudo na questão do ajuste fiscal

E o PSTU tratava de chamar o ajuste fiscal de Lula de “arrocho fiscal”.

Mas a reação mais veemente pela esquerda fora da economista Maria da Conceição Tavares, que perdeu a calma e mandou às favas o tom moderado que vinha usando diante da imprensa. “Quase tive um ataque quando li aquilo”, disse ela. “Aquilo” era o documento em que a equipe econômica anunciava o duro ajuste fiscal que viria.

Por outro lado, as acusações de “estelionato eleitoral” se amontoavam.

José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), por exemplo, foi um dos primeiros a dizer que Lula cometera “estelionato eleitoral” por estar promovendo ajuste fiscal.

Em editorial, a Folha de São Paulo foi na mesma linha.

Na oposição formal, em agosto de 2003, o então presidente nacional do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), acusou o PT de “estelionato eleitoral” e disse que o governo Lula era o responsável pela “penúria” dos Estados e dos municípios. “Falta ética a quem cometeu um vergonhoso estelionato eleitoral. Prometeu, em campanha, grandes mudanças, mas jogou o discurso na lata do lixo”, atacou o pefelê.

No Roda Viva, em junho de 2003, o então presidente do PT, José Genoino, defendia o governo Lula das sucessivas acusações de “estelionato eleitoral” que o ajuste fiscal em curso lhe estava rendendo.

Como se sabe, o aperto que o governo Lula impôs em seu primeiro ano resultou em uma década e pouco de bonança econômica. Porém, apesar das acusações de estelionato eleitoral por ter aplicado política econômica ainda mais restritiva que a de Dilma, com taxa de juros que chegou a 25% ao ano e cortes de gastos draconianos, Lula não perdeu a governabilidade.

Por que? Porque o Brasil vinha de uma situação econômica muito pior, enquanto que, agora, vem de uma situação econômica muito melhor, pois, até o fim do ano passado, o salário médio do Trabalhador e a taxa de desemprego vinham melhorando ano a ano.

Mas não é só. O país era presidido por uma poderosa liderança política com uma bagagem imensa e o apreço de muitos setores da esquerda que não simpatizam com Dilma Rousseff.

Além disso, há um outro fator: o eterno machismo da sociedade brasileira. Sobretudo na política. Dilma sofre com isso. Ela não está fazendo nada mais do que fez Lula. Ele se elegeu prometendo mais empregos, menos juros, melhores salários, mas chegou ao poder e teve que adotar uma política econômica que ia na contramão de suas promessas.

E todo mundo aplaudia.

Porém, Lula não havia mentido. Quatro anos depois, reelegeu-se com relativa facilidade, porque sua promessa não era para o primeiro ano, mas para um mandato inteiro.

Se houvesse racionalidade no Brasil, hoje, Dilma estaria sendo apoiada nas medidas de austeridade para que a partir dos próximos anos pudéssemos colher os frutos tanto quanto foi com Lula em seu primeiro mandato, mas de 2002 para cá ascendeu à idade adulta uma geração que não conheceu a penúria da era FHC e que liderou a derrocada da popularidade de Dilma.

Covardemente, lideranças políticas que deveriam estar apoiando as medidas econômicas conjunturalmente duras de Dilma assim como apoiaram as de Lula, encolheram-se ante a garotada ignorante do passado e tratam de pôr lenha na fogueira da direita, cometendo um suicídio político espantoso.

Porém, se Dilma conseguir se manter no cargo e aprovar as medidas de austeridade que o antecessor também adotou, assim como no passado o país irá colher os frutos lá na frente. Nesse momento, formar-se-á uma fila de caras-de-pau a cumprimentá-la pela coragem e a condenar as injustiças que sofreu.