Jurista diz que prisão em 2ª instância deve ser exceção não regra
“Matem-nos todos. Deus saberá reconhecer os seus!” Diz-se que estas foram as palavras ditas pelo abade Arnoldo de Amaury, determinando a aniquilação total dos cátaros que se escondiam na fortaleza de Béziers, no Languedoc, em julho de 1209.
É que dentre eles havia cristãos. Eram as cruzadas do papa Inocêncio 3º (1161-1216). Os cátaros eram dissidentes. Considerados hereges, não “rezavam” pela cartilha da Igreja.
Pois hoje parece que a defesa da presunção da inocência, claramente constante na “bíblia da democracia”, a Constituição (“Livro Defesas”, 5, 57 e em “Processus” 283,1), parece ter transformado seus adeptos em hereges jurídicos.
A tese defendida pela mídia e por tribunais como o TRF-4 é a seguinte: é automática a prisão após condenação em segundo grau. E se alguém pergunta: “Mas, se o réu tiver bons antecedentes e respondeu ao processo em liberdade?” A resposta —punitivista— é: “Não importa. Deve ser preso. Temos de acabar com a impunidade. A Constituição é leniente”. Por isso, o TRF-4 até elaborou a súmula 122, pela qual qual várias pessoas já foram presas.
O que poucos se deram conta é que nem o Supremo Tribunal Federal concorda com essa automaticidade. Só dois ministros (Luiz Fux e Luís Roberto Barroso) votaram pela solução radical.
Desde o ministro Teori Zavascki (1948-2017) e até mesmo pelo voto do mais conservador dos ministros, hoje, Edson Fachin, essa solução foi apresentada. Eles falaram “possibilidade” de prisão. Isso quer dizer que a prisão em segundo grau não decorre simplesmente da decisão condenatória.
Tem-se, assim, um impasse: dos cinco ministros que desconsideram a presunção da inocência (atenção: a ministra Rosa Weber disse ser a favor da presunção), três admitem que ela é apenas possível (Cármen Lúcia, Fachin e Alexandre de Moraes).
Logo, a ADC 54 colocou o STF em uma sinuca de bico. Se todos confirmarem seus votos (mesmo que a ministra Rosa vote contra a presunção), as prisões automáticas são todas inconstitucionais e ilegais.
Raciocinemos: se a prisão após decisão de segundo grau é possível, então, por lógica, há casos em que ela não ocorrerá, porque não necessária. Logo, para ela acontecer, devem estar presentes os requisitos que permitem a prisão antes do julgamento. Se o réu não os tiver e ingressar com recurso especial e/ou extraordinário, então poderá aguardar em liberdade. Simples assim.
Isso está implícito no voto do ministro Teori no HC 126.292 e no voto do ministro Fachin, que aponta, inclusive, para o efeito suspensivo que pode ser dado ao recurso especial ou até mesmo ao extraordinário, tudo previsto no Código de Processo Civil de 2015.Na medida em que só os ministros Fux e Barroso querem a automaticidade —eu levantei essa questão e foi repetida no voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC de Lula— , tem-se que, para vingarem as prisões determinadas sem fundamentação, será necessário que o STF construa nova maioria, obrigando o próprio ministro Fachin a endurecer ainda mais o seu voto.
Somente se o Supremo Tribunal tiver seis votos pela automaticidade é que, por exemplo, a prisão de Lula poderá ser mantida. Só que disso surge um problema. Se o STF assim decidir, qualquer decisão de segundo grau ou decisões em instância única (prefeitos, deputados) acarretarão —sempre— prisão direta, sem choro nem vela. Esses são os danos colaterais. Todos serão presos.
Restará, então, o consolo, recordando o abade Arnoldo de Amaury: “Prendam-nos todos; a deusa da Justiça saberá cuidar dos seus”. Afinal, todo condenado é um herege jurídico. A Constituição, a bíblia do Direito, já não o protege.