Acadêmica americana explica radicalização nas redes sociais
A radicalização política em plataformas como Facebook e YouTube é sintoma de algo muito maior, uma transformação social semelhante àquela causada pela Revolução Industrial.
É o que afirma Emily Bell, diretora do Centro Tow para o Jornalismo Digital, da Universidade Columbia, em Nova York, referência no estudo dos impactos das mudanças tecnológicas na mídia.
“É uma mudança, por exemplo, nos termos do emprego”, explica. “Está rompendo todos os tipos de indústria. E é nessas transformações sócio-demográficas que a radicalização acontece.”
Sobre as plataformas, propriamente, diz que as revelações sobre seu papel na eleição de Donald Trump e outras vêm sendo benéficas, por forçar o Facebook, por exemplo, a se abrir e mudar.
Quanto à crise no modelo de negócios do jornalismo, resultante da ascensão das plataformas, diz que “parte da equação foi resolvida” e que hoje “as pessoas entendem que tem que ser pago”.
Folha – Há dois anos, logo após a votação do “brexit” [desligamento do Reino Unido da União Europeia], você foi a primeira a escrever que não foram [o magnata] Rupert Murdoch e o [tabloide] Daily Mail, os vilões tradicionais, que afetaram o resultado, e sim a mídia social. Aquele foi um primeiro sinal do que estava por vir, nos EUA e noutros lugares?
Emily Bell – Os hábitos de consumo das pessoas vinham mudando drasticamente entre 2012 e 2016. O resultado do “brexit” foi certamente a primeira vez em que tivemos uma decisão tão próxima em que o papel da informação foi bastante significativo e diferente de como havia sido até então, mesmo na eleição imediatamente anterior. Essa mudança no comportamento do consumidor teve impacto marcante nas publicações individuais. As pessoas ainda estão lendo aqueles veículos “mainstream” mais que qualquer outra coisa. Mas é um tipo muito diferente de experiência, quando seu “feed” é dividido em publicações individuais, quando você está sendo segmentado de maneiras que desconhece, por anunciantes ou até por forças fora do ambiente de mídia normal.
Facebook e outras plataformas estão removendo perfis de extrema direita em massa, não só nos EUA, mas aqui no Brasil.
Sim.
Você acredita que é um movimento necessário, até urgente, ou que é movido pelo pânico das empresas de tecnologia, com eleições tão próximas?
Bem, elas foram ingênuas na forma como estavam policiando suas plataformas anteriormente. E muitas vezes isso não é só ideologia. No último ciclo eleitoral nos EUA, os sites partidários mais à direita tendiam a ter mais material inventado do que outros tipos de sites. Tenho certeza de que isso também é verdade para alguns sites da esquerda. Acho que as plataformas realmente acordaram para a ideia de que não se pode simplesmente deixar qualquer coisa circular. Mas você também tem veículos menores de notícias tentando influenciar o voto, que não são meios de comunicação estabelecidos, e suas vozes podem ser incrivelmente valiosas. Não devem ser erradicadas.
A extrema direita tem falado em censura.
As pessoas dizem que é uma forma de censura política, por causa da inerente tendência liberal das empresas baseadas no Vale do Silício. Mas também há questões de segurança da marca. O caso mais recente é o de Alex Jones, que é um teórico de conspiração –e é alguém que vende suplementos vitamínicos e equipamentos de sobrevivência, num negócio muito lucrativo. [risos] Sua maneira de levar as pessoas a comprar é fazendo afirmações completamente ultrajantes. O que descobrimos é que essas afirmações têm consequências muito desagradáveis para as pessoas do mundo real, particularmente para os pais de Sandy Hook [escola onde um atirador matou 20 estudantes, em 2012, em episódio que Jones afirmou não ter acontecido].
Se você é uma grande plataforma e está atingindo os pais de crianças assassinadas, isso vira um grande problema para a sua marca. Há pressão externa de usuários, campanhas, até ameaças legais. Nesse ponto, isso se torna tanto uma decisão empresarial quanto uma posição ideológica. É por isso que vamos ver cada vez mais esse estreitamento [de publicação nas plataformas] do que parece aceitável. Talvez seja por vezes conseqüência de consciência social, mas acredito que seja mais consequência de raciocinar sobre quais são os riscos para o negócio.
Mas você diria que existe risco de censura mais adiante?
Ah, sim, acho que já existe risco de censura. Bem, vamos ser claros quanto ao termo. Essas plataformas têm poder enorme, mas não são organizações governamentais, então censura é uma palavra pesada. É oficial? É algo que foi ordenado por governo ou entidade política? É um termo carregado, porque censura é um termo político. Mas existe o perigo de que as plataformas tomem decisões que tenham impacto profundo no nosso ambiente de notícias? Elas já estão tomando essas decisões. Decidem o que é direcionado, individualmente. Elas têm uma estrutura censora, que é financeiramente motivada e dirigida.
E elas têm os Termos de Serviço, os Padrões da Comunidade.
As plataformas durante muito tempo estabeleceram padrões e removeram material de maneira que não é fácil ou prontamente compreensível. Se você observar por que os vídeos são retirados do YouTube, em muitos casos é por violação de direitos autorais, mas eles também podem ser removidos porque alguém, como a polícia ou algo assim, pediu. Não há nenhum processo pelo qual nos digam por que aquilo que estava ali não está mais. Então, acho que sim, haverá mais curadoria ou edição ou censura ou como você quiser chamar. É absolutamente inevitável.
Mas você não tem se mostrado pessimista.
O que é, se você quiser, mais otimista é que começamos a conversar. Há projetos de pesquisa e monitoramento que agora estudam quais tipos de decisões são tomadas pelas plataformas. E elas estão sendo chamadas a mudar suas estruturas internas e seus mecanismos. Nós tivemos Jack Dorsey do Twitter e Mark Zuckerberg do Facebook, nos últimos meses, sendo mais explícitos publicamente sobre o que estão tentando fazer e como estão tomando essas decisões. Não há nada menos democrático que esse conjunto de mecanismos e remoções. O exercício do poder estava acontecendo, só que as pessoas não sabiam ou não compreendiam. Foi o que vimos no ciclo eleitoral de 2016. Na verdade, tem sido um conjunto de revelações incrivelmente benéfico, que forçou todos a reavaliar.
O foco é geralmente no Facebook e, em menor grau, no Twitter. Mas o Google, sobretudo o YouTube, também desempenha um papel. Como você avalia as mudanças que têm sido introduzidas no YouTube?
Isso é muito mais significativo do que se imagina. Quando se olha para mídia social, o Twitter é muito usado por jornalistas, políticos, mas não pela população em geral. O YouTube e o Facebook, certamente nos mercados americano e europeu, dominam. E o YouTube tem sido um problema fundamental, não apenas no próprio YouTube. Não se pode olhar para nenhuma dessas plataformas separadamente. Precisa ver o alto nível de “interruptibility” [capacidade de iniciar uma nova ação antes que a primeira ação tenha terminado] entre elas. Muitas pessoas no Facebook incorporam vídeos do YouTube. E alguém que vê uma teoria conspiratória no YouTube vai pesquisá-la no Google, e o resultado se tornará parte do contexto da história.
As mudanças que o YouTube vem fazendo chegam muito atrasadas, e alguns dirão que são realmente inadequadas. Esse YouTube, de certa forma, é um problema ainda não-analisado. Não sabemos o suficiente sobre os processos ou como um conteúdo é retirado.
Ele também acabou removendo Alex Jones.
Na verdade, outra coisa do YouTube que faz com que ele seja diferente é o papel ativo que desempenha na validação dos influenciadores ou curadores. Um canal como o de Alex Jones ganha um tipo de placa, dizendo: “Parabéns, Infowars, por seu milhão de assinantes”. [risos] É diferente de uma empresa de telefonia. As pessoas argumentam que as plataformas também são só dutos, ligações, mas a sua companhia telefônica nunca enviou um diploma dourado, dizendo: “Parabéns, você teve um milhão de chamadas”. [risos] O YouTube tem um relacionamento promocional com seus criadores. É uma das frentes em que esperamos ver mudança. Se não for assim, que pelo menos sejam abertos sobre os processos, reconhecendo que desempenham um papel tão importante nesse ecossistema.
O que faz as plataformas de mídia social, como Facebook ou YouTube, terem esse efeito de radicalização em tantas pessoas?
Eu penso que elas atraem e reforçam o extremismo como emoção. Moldam o entretenimento com uma indignação que envolve as pessoas. É a ideia de que o engajamento é a métrica mais importante: quanto mais você torna uma pessoa furiosa ou quanto mais deleite ela obtém, melhor. Mas eu penso também que existe algo aí que é bom. A participação política é alavancada pela conectividade. Duvido que teríamos tão rapidamente algo como a igualdade matrimonial, nos EUA, sem a visibilidade que os movimentos sociais obtêm nessas plataformas.
Por outro lado, a ruptura trazida pelas plataformas ao processo político e ao jornalismo é muito maior em outras partes. É uma mudança social, por exemplo, nos termos do emprego. Está rompendo todos os tipos de indústria, não só a mídia. E é nessas transformações mais significativas, sócio-demográficas, que a radicalização acontece. Estamos como que na próxima Revolução Industrial. No século 19 na Europa, nos EUA e noutros lugares, houve essa enorme mudança socioeconômica e, 50 anos depois, você tem a guerra. E tem movimentos sociais buscando endereçar alguns dos problemas e das oportunidades criados pela ruptura.
Daí também o extremismo?
Estamos passando pelo mesmo, agora. O extremismo que vimos no início do século 20 reemerge, porque não temos um ambiente econômico, político estável. A radicalização nas plataformas é com certeza um sintoma ou parte de algo que é muito maior.
O New York Times, com paywall e outras experiências, é visto como um farol para o jornalismo no mundo. Como você avalia as mudanças que o jornal tem feito em seu modelo de negócios nesta última década?
Seu modelo de negócios tem sido uma implementação admirável da ideia de que você pode traduzir o que é uma base de assinaturas impressas ainda extremamente sólida para assinaturas digitais. É algo de que eu duvidava profundamente em 2011, quando escrevemos [o relatório] “Post Industrial Journalism”, mas, à medida que a tecnologia mudou, os aparelhos móveis mudaram, os métodos de pagamento mudaram, tudo tem feito uma grande diferença. Mas o NYT também se beneficiou tremendamente dessa transformação dramática no ambiente político nos EUA. O “Trump bump” [salto nas assinaturas provocado pelo novo presidente] é real.
O teste de verdade para o modelo e o jornalismo será o que acontecer nos próximos três anos. Em outras palavras, o NYT pode transformar esse interesse e essa preocupação súbita que as pessoas têm pelas notícias, com apoio às organizações jornalísticas, em receitas sustentáveis e de longo prazo? O jornal está bem posicionado para isso, por causa de sua estrutura de propriedade, o fato de ter uma família comprometida com ele a longo prazo, e também pelo fato de que já passou pelo momento mais extremo de remodelação interna.
Você acredita que essas experiências podem ser replicadas?
O NYT não pode ser exemplo para tudo. Ele tem um público de elite, de pessoas ricas, em termos globais, que pagam muito para lê-lo. O mesmo vale para o Wall Street Journal e o Financial Times. E não se esqueça de que existem outros por aí, que estão se tornando também dependentes de receita dos leitores e que são promissores. Você pode olhar para os caminhos diferentes que o Guardian e a NPR estão desenvolvendo e que também se saem bem, voltados para um público politicamente consciente e motivado. E temos que falar, por outro lado, sobre como manter jornalismo de qualidade para as comunidades onde as informações precisam ser gratuitas, porque elas não vão necessariamente pagar. Eu acho que é um desafio maior. O modelo do NYT não vai funcionar lá.
Onde ele funciona?
Parte da equação foi resolvida para o que você poderia chamar de “Big J”, as grandes organizações jornalísticas, e para aquelas de nicho, altamente segmentadas. Os efeitos para elas são os mesmos, na economia da informação. Mas existe muita coisa entre esses pólos. É o que vemos nos diários de tamanho médio nos EUA, que estão sendo dizimados. Fizemos uma pesquisa desses jornais e você encontra histórias de esperança, só que muitas vezes os “publishers” são fundadores e têm motivações diferentes. Podem ser sustentáveis no curto prazo, mas enfrentam problemas quando, por exemplo, tentam obter escala. Mas o quadro é mais esperançoso do que já foi. As pessoas entendem que existe valor em ter jornalismo em todos os níveis da sociedade. E entendem que tem que ser pago.
Com novo dono, o LA Times vem investindo, contratando. Como você avalia as experiências com bilionários no Washington Post e outros?
Veja, eu venho do Reino Unido, onde temos uma tradição de imprensa diversificada e muito robusta construída em cima da fortuna de bilionários. Nos EUA agora há uma ansiedade compreensível de que o livre mercado não funciona para o jornalismo. Na verdade, não só não funciona, mas as metas que cobra e as grandes plataformas tecnológicas que projeta encorajam o oposto do jornalismo. Encorajam sensacionalismo, falsificação. Nos EUA, essa ascensão do bilionário interessado, com mentalidade filantropica ou cívica, colocando dinheiro no jornalismo, deixa as pessoas desconfortáveis. Mas é aquilo: um bilionário não é saudável, cem bilionários [risos] podem ser uma saída desta situação.
Sem brincar [risos], acredito que o que esta indústria realmente precisa é do que chamamos de capital paciente, que vem de pessoas ricas, organizações ricas. Pessoas que invistam sem esperar retorno no primeiro dia e que, mesmo no longo prazo, não esperem retorno muito alto sobre o investimento. E temos que manter um equilíbrio entre esses bilionários interessados, sejam eles bem-intencionados ou não, as grandes organizações de sucesso comercial e também aquilo que precisa estar disponível gratuitamente para todos, de forma regulada e transparente.
Emily Bell, 53, é desde 2010 a diretora do Centro Tow para o Jornalismo Digital, da Universidade Columbia, em Nova York. Antes, trabalhou por 20 anos nos jornais The Observer e The Guardian. A partir de 2000, comandou as inovações tecnológicas do grupo britânico, nas funções de editora-chefe do site e depois diretora de conteúdo digital. Mantém colunas no Guardian e na Columbia Journalism Review. Nascida em King’s Lynn, na Inglaterra, ela é formada pela Christ Church, da Universidade de Oxford.
Da FSP.