Saída de cubanos do Mais Médicos deixa vácuo na saúde dos mais vulneráveis
Desde que Cuba decidiu encerrar o acordo com o Brasil para o programa Mais Médicos, pelo menos 1.307 profissionais cubanos retornaram à ilha, segundo a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), participante do convênio. O Ministério da Saúde tem agilizado a seleção de médicos para garantir a assistência de saúde aos usuários, mas até agora o número de médicos brasileiros que se apresentaram nos municípios corresponde a 17% das vagas deixadas pelos profissionais que retornaram à Cuba. A cifra dá uma ideia do vácuo deixado pelos cubanos neste momento de transição para a contratação de novos médicos, mas é difícil precisar um diagnóstico desse déficit, visto que não há informações de quantos cubanos estão efetivamente desligados dos postos de saúde em que trabalhavam. Nem todos os que foram desligados deixaram o país, mas nem o Ministério da Saúde nem a OPAS informaram as cifras ao EL PAÍS.
Ao todo, 224 médicos brasileiros já começaram a trabalhar ou pelo menos negociam diretamente com os gestores municipais quando começarão, metade deles (113) em municípios no Sudeste, região com a maior densidade médica por habitante do país. Outros 8.278 profissionais (97% das vagas abertas no edital, que segue até o dia 7 de dezembro) foram alocados nos municípios que escolheram e têm até o dia 14 de dezembro para se apresentarem aos gestores municipais. Apesar dos dados positivos apresentados nos últimos dias pelo Ministério da Saúde, não há garantias de que esses médicos de fato preencherão as vagas nem que serão fixados nos municípios, ainda que o programa Mais Médicos tenha duração de três anos e possa ser renovado por mais três anos. Não há impedimentos para desistências – e tanto o histórico do programa como especialistas do setor apontam que a fixação dos profissionais nas áreas mais vulneráveis como principal desafio. Em outras palavras, só será possível avaliar o sucesso de maneira relevante da nova etapa dos Mais Médicos nos primeiros meses do ano que vem.
Quando o programa Mais Médicos foi lançado, em 2013, apenas 6% dos 16.530 médicos brasileiros que se inscreveram no primeiro edital de fato decidiram ocupar as vagas. Na época, o número de profissionais do país interessados foi considerado um recorde, mas eles desistiram de ocupar as vagas por conta das áreas às quais foram alocados, principalmente em regiões mais pobres ou isoladas. O Ministério da Saúde deu então um novo prazo de dois dias para que os médicos brasileiros que chegaram a selecionar os municípios onde desejavam atuar, mas não finalizaram a homologação, indicassem outras seis opções de cidades. Com isso, o número de profissionais brasileiros no primeiro ano do programa, quando chegaram os primeiros médicos cubanos, aumentou de 938 para 1.096.
O edital lançado neste mês de novembro para suprir as vagas do fim da cooperação com Cuba também teve recorde de inscrições: foram efetivadas 21.407 postulações de um total de 30.734 tentativas. As vagas disponíveis por municípios são automaticamente preenchidas durante a inscrição no próprio sistema, conforme explica o Ministério da Saúde. É como se fosse por ordem de chegada: o médico seleciona o município onde quer atuar e já tem a vaga garantida, que por sua vez é subtraída das vagas disponíveis no sistema. A partir daí, os médicos devem se apresentar no município com CRM válido, documentos pessoais e termo de adesão assinado. Lá, eles conhecerão o posto de saúde onde vão trabalhar e acordarão com os gestores o dia de início das atividades.
Cabe ao próprio município informar ao governo federal sobre os profissionais que se apresentaram e a partir daí eles já podem começar a trabalhar, antes mesmo de enviar a documentação exigida pelo edital ao Ministério da Saúde e, de fato, se formalizar totalmente no programa. Segundo o edital, ainda que esteja em condição de participante do projeto, o candidato poderá ter a adesão invalidada ou ser desligado se constatadas inconsistências entre a inscrição e os documentos apresentados.
No município de Montes Claros (MG), por exemplo, todas as cinco vagas deixadas pelos médicos cubanos foram preenchidas por brasileiros naturais da cidade. Dessas, três foram oficialmente informadas ao Ministério da Saúde. “Dois médicos começaram a trabalhar ontem (segunda-feira). Os outros vão começar na próxima segunda porque estavam morando em cidades próximas e precisam se desligar dos seus empregos e fazer a mudança”, explica Nayara Teixeira, referência técnica do Mais Médicos no município. Ela diz que o perfil desses médicos é de graduados em 2016 ou 2017, com alguma experiência profissional. O Ministério da Saúde só informará o perfil de todos os médicos alocados para o programa no dia 18 de dezembro, quando o edital será finalizado.
Uma cartilha sobre o programa divulgada no ano passado pelo Governo federal aponta que o interesse dos médicos graduados no Brasil no Mais Médicos cresceu consideravelmente a partir de 2015 e que, no edital de 2016, por exemplo, eles chegaram a ocupar 89% das vagas. O mesmo relatório indica, porém, que a ocupação das vagas em municípios de maior vulnerabilidade e difícil acesso – a maioria deles antes ocupadas pelos cubanos, que não podiam escolher seu local de atuação – ainda é muito baixa. Além disso, o próprio governo brasileiro estima nesse documento que o tempo de permanência dos médicos com CRM Brasil nestes municípios é inferior a 90 dias.
O edital em aberto não traz garantias de permanências dos médicos nesses municípios, pois eles podem abdicar das vagas que ocupam em qualquer momento. O ministro da Saúde, Gilberto Occhi, declarou que os médicos que se inscreverem no programa, mas que não forem efetivados por falta de vaga no local escolhido, poderão ser acionados para preencher vagas que sejam alvo de desistência. O ministro também estuda a possibilidade de realocar profissionais que já atuam no programa para vagas que porventura fiquem ociosas, garantindo assim a assistência à população.
Segundo dados da Democracia Médica no Brasil 2018, uma pesquisa do professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer, 84% dos recém-formados em medicina têm nas condições de trabalho o principal fator determinante para fixação em uma instituição ou cidade após a graduação ou residência. A segunda condição mais apontada foi a qualidade de vida, seguida pela remuneração. Por isso, as vagas em locais mais distantes do país ou municípios menores, geralmente com estrutura mais precária, costumam interessar menos estes profissionais.
Conforme a pesquisa, apesar do crescimento do número de médicos no Brasil, a distribuição de profissionais no país – que atuam tanto no setor público quanto na iniciativa privada – ainda é muito desigual. “É ainda um grande problema nacional a escassez ou baixa presença de médicos no interior, nos locais de baixa densidade populacional e nas áreas suburbanas dos grandes centros”, destaca o estudo. Enquanto o Brasil tem 2,18 médicos por mil habitantes, há capitais com mais de 12 médicos por mil habitantes – como Vitória, no Espírito Santo. O Amazonas representa a outra extremidade dessa realidade: a capital Manaus concentra 93,1% dos médicos e pouco mais da metade dos cerca de 4 milhões de habitantes do estado.
Do El País