Antropóloga brasileira teve que se exilar por ameaças de bolsonaristas
Reconhecida pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100 maiores pensadores globais, a pesquisadora, escritora e documentarista Débora Diniz já era nome consolidado no meio acadêmico quando, há 14 anos, tornou-se, também, popular fora da cátedra. Foi ela que, em 2004, trouxe à luz uma questão de direitos reprodutivos praticamente desconhecida por quem jamais viveu o drama de gestar um feto sem cérebro: o aborto de anencéfalos.
A Anis, instituto de bioética fundado por ela em Brasília, comprou a briga que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e culminou em um dos mais polêmicos julgamentos da Corte. A luta da antropóloga resultou no direito de retirada do feto sem chance de sobrevivência fora do útero. De lá para cá, Débora tem amplificado a voz de minorias e denunciado situações como o abandono de famílias pobres cujos filhos nasceram com síndrome da infecção congênita pelo vírus zika. Autora do primeiro livro sobre a descoberta da doença no Brasil, ela venceu a categoria ciências da saúde do Prêmio Jabuti com Zika: do sertão nordestino à ameaça global.
Em julho, a carreira da pesquisadora como professora do curso de Direito na Universidade de Brasília (UnB) foi pausada à força por grupos fundamentalistas que a ameaçaram de morte devido à militância dela nas questões de gênero. O caso foi tão grave que ela se licenciou da instituição, foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal e, atualmente, vive em outro país — por motivos de segurança, ela não revela onde está. “Mas eles nunca vão me calar”, avisa.
Por telefone, Débora Diniz, 48 anos, conversou sobre eleições, militarismo, direitos civis e o ressurgimento do conservadorismo na sociedade brasileira. “Não há politização nos quartéis; há uma politização de ressentidos da história que, como Jair Bolsonaro, entraram na academia militar numa expectativa de que comporiam o poder político e viram a redemocratização”, acredita.
Para ela, nos próximos anos, o Supremo terá de se dedicar mais às pautas dos direitos fundamentais, uma função que ficou ofuscada por julgamentos criminais, como os da Lava-Jato. O protagonista da operação e futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, também poderá surpreender, acredita. “Ele pode ser alguém perturbador para a política bolsonarista no campo dos direitos fundamentais.”
É possível identificar o início dessa onda conservadora ou o brasileiro, na verdade, sempre foi conservador?
São as duas coisas juntas. Toda a nossa história política é de dificuldade de incorporação de alguns princípios fundamentais, como a igualdade. O que nós tivemos foi um período em que os nossos ranços dos privilégios, sejam da casa grande, sejam dos produtores de café, ficaram presos à sala de jantar, no almoço de domingo. A gente teve um momento em que a igualdade como valor passou a ser uma exigência da vida pública, fosse nas universidades com as cotas, fosse na existência de uma nova paisagem política com mulheres, com negros; fosse por mudarmos o vocabulário sobre como se referir aos grupos que são discriminados socialmente. A gente passou a falar em raça, em gênero. Então, o que nós tivemos foi a incorporação de um novo vocabulário político com algumas conquistas. Mas as gerações que viveram os privilégios ainda coexistem no tempo histórico. Esse período de trégua provocou uma perda de privilégio. Por que ele volta com tanta força? Porque nunca deixou de existir, nunca deixou de existir como ressentimento daqueles que perderam suas posições, e ele volta como uma onda mundial de países muito importantes economicamente, como os Estados Unidos. Volta em um bloco de países conservadores do Leste Europeu, mas volta também dentro de 30 anos de uma abertura democrática em que nós não conseguimos solucionar de uma maneira histórica o que foi o nosso período ditatorial.
O escritor israelense Amós Os diz que o nazismo na Alemanha ressurge quando o tempo passa, fazendo as pessoas esquecerem e perderem a vergonha do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. No caso brasileiro, 30 anos é suficiente para o esquecimento?
Acho que há duas coisas aqui. A primeira é que a geração imediatamente seguinte ao que foi a ditadura teve, inclusive entre os militares, esse silenciamento imposto pela vergonha de quando há uma transição. Seja uma autocensura, de que esse assunto a pessoa não vai contestar, seja uma vergonha para as pessoas de bem. Se nós formos olhar qual é a geração dos generais que está voltando ao poder, que é a geração do (presidente eleito Jair) Bolsonaro, é uma geração que, na época da ditadura, estava entrando na academia militar. É uma geração de jovens homens que estava entrando na expectativa de participar de um governo militar. E eles tiveram de viver 30 anos o ressentimento de não fazer parte dos privilégios do poder militar. Não é à toa que são generais aposentados. Se for para a geração hoje de 40, 50 anos, isso está muito bem resolvido, de que os militares não tinham de estar na política. Se olhar a entrevista do (general e comandante do Exército) Villas-Boas, que diz que não há politização nos quartéis, ele não está dizendo uma mentira. Há uma politização desses ressentidos da história que, como Bolsonaro, entraram na academia numa expectativa de que comporiam o poder político e viram a redemocratização. Esse é o lado pelo qual eu tentaria compreender quem são esses militares, agora ávidos pela tomada do poder, o poder democrático.
Mesmo se o Escola sem Partido for aprovado?
Mesmo com o Escola sem Partido tentando ser aprovado, até porque vai ser questionada a constitucionalidade no Supremo. O Congresso Nacional pode fazer o que quiser no campo de ameaça de direitos fundamentais, como Estatuto do Nascituro, revisar o casamento gay, Escola sem Partido. Tudo vai continuar no Supremo para revisão de constitucionalidade. Um outro espaço que vamos ter de acompanhar para descobrir: quem é esse personagem, o (Sérgio) Moro no Ministério da Justiça? Uma coisa é ele investigando a Lava-Jato. Outra é ele atuando em direitos fundamentais. Nem nós nem Bolsonaro sabemos quem é ele. Não acho que vai ser um personagem fácil como se imagina que ele foi em política criminal. Ele pode pensar diferente de uma criminalização de movimentos sociais, por exemplo. Uma coisa é o Judiciário no campo da política criminal, nisso nós sabemos exatamente quem foi o Moro. Outra coisa é quem é esse novo ministro da Justiça no campo dos direitos fundamentais, e isso nem os bolsonaristas sabem. Moro é quase um ministro impossível de ser demitido. Lembra daquele ditado de que você não pode botar na política quem não pode demitir? Aí, o Bolsonaro terá uma grande dificuldade de demitir uma figura como o Moro, sem causar uma comoção naqueles que votaram anti-PT, acreditando na “Liga da Justiça”. Ele pode ser alguém perturbador para a política bolsonarista no campo dos direitos fundamentais.