Bolsonaro não entende as implicações de sua ascensão
Jair Bolsonaro saiu de dentro do Congresso, mas o Congresso não saiu de dentro de Jair Bolsonaro. Nem dele nem da família dele. (E termos de nos preocupar com ela é a pior parte desse começo de história.)
“Menos Brasília e mais Brasil” é tudo o que ele próprio não tem feito. “Dar a conhecer ao povo a verdade que o libertará”, menos ainda. O presidente recebeu do Sergio Moro juiz e dos eleitores um Congresso posto no seu devido lugar, mas parece não se ter dado conta do valor da graça alcançada. Está aceitando o estilo de jogo dele, em vez de impor-lhe o seu. A falta de uma reação proporcional ao tamanho da ignomínia dos 16,38% que os eunícios e STFs, mancomunados, atiraram abaixo da linha d’água do casco do Brasil deu o sinal. Pode até ter sido o efeito surpresa, pois mesmo nestes calejados trópicos é difícil não se embasbacar com tamanha cara de pau. Mas sentindo o espaço a canalha se agrandou.
Na sequência Bolsonaro abriu mão do seu compromisso solene com fichas-limpas e aceitou “fichas + ou -” como ministros, ficando o Brasil com aquela pergunta incômoda. Que argumento das “bancadas” o teria levado a concessão tão perigosa senão os daquele tipo que a Justiça tornou crime e o eleitor mandou revogar para sempre?
Em seguida aceitou um veto a uma escolha anunciada em nome de quase ideologias tão distorcidas quanto as que jurou de morte. Não se perca um minuto com os argumentos dos fariseus que “não enxergam desvio nenhum na educação” e insistem no blá-blá-blá sobre o salário que o professor deve ganhar e fazer crescer sem ler nem suar e, pior, sem fazer ler nem fazer suar, mas apenas com as “conquistas” que obtiver no vão do Masp ou nos cercos a palácios estaduais sob o escudo dessa indemissibilidade do funcionalismo que é a mãe de toda a corrupção. Eles valem tanto quanto os da camarilha do STF para expor suas partes pudendas na cara de um país em choque por hemorragia desatada de um Tesouro Nacional que tá feito “tauba de tiro ao álvaro” de tanto “levá frechada” das corporações de sanguessugas. Mas esse negócio de “Escola sem Partido” é um erro tão grande quanto o que pretende corrigir porque, ao focar naquilo que “deve ser dito e estudado”, acaba, inescapavelmente, numa “Escola com o meu Partido”, e não numa “Escola sem Censura”, com mandato para punir aquilo que hoje a patrulha proíbe que seja dito e estudado. Esta, sim, é a escola que tanto o ideal acadêmico quanto o ideal democrático exigem.
Por trás dessas capitulações estariam “as reformas”. De fato, este governo e o Brasil serão o que ele conseguir na reforma das previdências, nem um tostão de investimento a mais, nem um cadáver produzido pela miséria e pela desesperança no fim da miséria a menos. Sem o fim da desigualdade perante a lei ao menos nas aposentadorias num horizonte visível, ainda que longínquo, o Brasil definitivamente não voa. Mas o apego das corporações militar e política, das quais faz parte o presidente, aos seus direitos adquiridos tem conseguido mantê-lo num obsequioso silêncio. Ninguém sabe qual a reforma da previdência que ele quer. Evita até mesmo esse plural no qual deveria estar insistindo obsessivamente. É das previdências que o governo eleito deveria estar falando sem parar. Muito na pública, dos ricos, e quase nada na privada, dos pobres, contra cuja reforma não “emana” resistência alguma, ao contrário do que afirma a falsificação pacificamente aceita pela situação e pela oposição de hoje e de amanhã. “Impopular” certamente não é cessar a exploração de 99,5% da população brasileira pelo 0,5% que é parte da corte, é misturar os alhos com os bugalhos como todos os que não querem que nada mude têm feito.
São, enfim, muitas novidades para muito pouco tempo e o trauma do atentado também pode estar contribuindo para esse efeito, mas Jair Bolsonaro dá frequentemente a impressão de não compreender a força do fenômeno que ele próprio traduz. É a rua que pauta o Congresso. Quem vive de voto sente a rua até por debaixo do asfalto. Qualquer vontade manifestada por ela o Congresso arranja meios de satisfazer, nem que seja a de derrubar governos inderrubáveis. É à rua, portanto, que Bolsonaro se deveria estar dirigindo. Não necessariamente num tom de desafio. Para manter o Congresso literalmente em estado de sítio bastaria honrar o mote da campanha que o elegeu, cuidando de informar a Nação dos dados do problema das previdências, no plural, da sua gravidade explosiva e das alternativas que não há, que o resto aconteceria sozinho por esse subterrâneo que conecta a Câmara e o Senado à vontade popular.
Tem salvado a pátria e o humor do mercado o rigor do critério técnico nas escolhas da área econômica. Mesmo na de Joaquim Levy, na qual a capacidade técnica ultrapassou a medida da conveniência política ao criar uma atrapalhação séria para a obrigatória devassa no BNDES, sem a qual não se porá a pedra definitiva por cima do crime organizado na política.
O outro grande ausente do discurso do governo eleito é, aliás, a reforma política, aquela que abre o caminho e dá consistência a todas as outras. De Bolsonaro ao PT e aos PTs em volta do PT, dos juízes honestos aos juízes ladrões, dos brasileiros sem vergonha aos indignados, todos atribuem a nossa desgraça aos defeitos pessoais dos indivíduos que já passaram ou estão por passar pelo poder, apesar de estarmos iniciando a segunda volta na roda completa das ideologias no comando do País colhendo sempre o mesmo fruto podre. Ninguém vê defeitos no “sistema”. Quem tem falhado são só os seus operadores. Tudo vai ser diferente quando as pessoas certas chegarem “lá”, diz-se de norte a sul e de leste a oeste, embora já seja óbvio, desde pelo menos 1776, que o problema está em de onde “emana” o poder no Brasil, que é de todo mundo menos do povo. A desconfiança no povo, que neste país tem de ser “guiado” até para dar um passeiozinho no parque, é uma unanimidade que transcende todas as ideologias.
Do Estadão