Bolsonaro terá muita dificuldade pra censurar Enem
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) terá que mudar normas administrativas para conseguir acesso antecipado ao conteúdo do Enem a partir do ano que vem. E, se quiser evitar eventuais questionamentos judiciais, deverá fazer até mesmo ajustes da legislação.
Crítico de perguntas feitas no exame deste ano, como uma menção a linguagem da comunidade LGBT, Bolsonaro disse que pretende “tomar conhecimento” das questões com antecipação, para privilegiar “questões realmente voltadas ao que interessa”.
A intenção provocou reação de educadores, para quem há risco à credibilidade técnica e ao sigilo do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que neste ano teve 5,5 milhões de alunos inscritos.
Segundo especialistas ouvidos pela Folha, é preciso que Bolsonaro faça mudanças nas regras atuais para atenuar possíveis contestações judiciais. Mas isso poderá ser feito pelo futuro presidente sem muita dificuldade.
O Inep, ligado ao Ministério da Educação e responsável pela prova, diz que, atualmente, só parte da equipe do instituto e da gráfica contratada podem ter acesso à prova, em ambientes restritos.
Segundo Floriano Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito da USP , um questionamento que Bolsonaro poderá enfrentar se deve à Lei do Processo Administrativo da União.
O texto da lei trata, entre outros pontos, da competência na administração pública, que “é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída”. Ou seja, a responsabilidade do Enem cabe ao Inep, ligado ao MEC, não ao presidente da República.
A competência, porém, pode ser chamada em caráter excepcional e temporário. Em geral, isso ocorre em situações de emergência ou simbólicas. “Ele pode, por exemplo, assinar um contrato de obra ou concessão no lugar de um ministro [responsável pelo contrato em questão], como uma solenidade”, explica Floriano.
“Mas é algo circunstancial. Não é como colocar essa atribuição em que ele [presidente] vira um revisor como uma etapa necessária do processo de elaboração de uma prova.” Para isso, diz Floriano, Bolsonaro teria que editar uma medida provisória que alterasse a lei.
Outra restrição pode ser a própria regra do Inep, mas, para isso, bastaria uma orientação de mudança normativa.
A ingerência do presidente da República sobre uma prova de seleção universitária levanta questões também acerca de arbitrariedades do chefe de Estado.
“O presidente não é autoridade moderadora da área da educação”, afirma Victor Henrique Grampa, presidente da comissão de direito educacional e políticas públicas da OAB-SP. “A prova [Enem] é um procedimento complexo, feita por especialistas. Qual a necessidade de que um presidente tome conhecimento prévio? Não tem cabimento.”
Grampa avalia, porém, que em termos hierárquicos não seria uma questão grave, uma vez que a composição do Inep está sob a administração do Ministério da Educação. O titular da pasta é indicado pelo presidente e, portanto, alinhado com suas propostas —o futuro ministro Ricardo Vélez Rodriguez afirmou na segunda-feira (26) que “se o presidente se interessar, ninguém vai impedir” que ele conheça o conteúdo do exame.
O grande problema, para Grampa, se dá na questão de “ofender princípios” da administração pública. “Ele [Bolsonaro] não é autoridade educacional. Vetar uma questão sem motivo específico seria um ato arbitrário e sobretudo demonstra grande desconhecimento da estrutura pública.”
Para Thiago Matsushita, professor de direito da PUC-SP, a sinalização de Bolsonaro referendada por Vélez é muito mais uma figura de linguagem. “Acredito ser mais um argumento retórico desse período de transição do que algo que vá ocorrer na prática. A realidade do exercício [da Presidência] deve trazer outras consequências”, afirma.
Segundo Matsushita, o presidente eleito deve exercer influência sobre o conteúdo do exame de modo menos direto. “Ele provavelmente vai estabelecer diretrizes para o Inep mudar o cunho de determinadas perguntas. Agora, perder horas para revisar a prova… Tem questões mais delicadas que o presidente tem para lidar”, diz o professor, que também é conselheiro estadual de educação.
O tema gera questionamentos também em relação à inviolabilidade do sigilo da prova. Atualmente, apenas os técnicos convocados para a formulação das questões tem acesso a elas, que formam um banco de dados de perguntas a serem selecionadas para o exame. E os professores não têm acesso a todas. Além deles, um número limitado de profissionais do Inep tem acesso controlado e monitorado às provas, bem como os profissionais da gráfica que imprime as avaliações.
O acesso prévio do presidente poderia criar um problema de confidencialidade, com risco de vazamentos. “É um conteúdo técnico, de acesso restrito”, afirma Floriano. Para Matsushita, essa é uma questão menor. “É algo muito hipotético. Existem outras questões nacionais a que o presidente tem acesso e isso não necessariamente quebrou uma estrutura já firmada, não necessariamente vem a causar uma falha de segurança.”
Segundo o Inep, “todo processo de produção da prova conta com consultoria especializada de empresas de gestão de riscos que atestam a conformidade das etapas e indicam procedimentos que devem ser seguidos com vistas à manutenção do sigilo”.
Da FSP