Especialista de Harvard prevê caos na saúde pública com cortes de Bolsonaro
Jair Bolsonaro ainda não assumiu a presidência, mas as possíveis ações do capitão reformado na área da saúde já preocupam especialistas no setor. Existe, entre pesquisadores, o temor de que uma guinada conservadora prejudique as ações do ministério da Saúde em áreas sensíveis como a de doenças sexualmente transmissíveis. E há o receio de que cortes de gastos, defendidos por Bolsonaro, enfraqueçam serviços de saúde essenciais, como os prestados na atenção primária.
Uma prévia da gestão Bolsonaro na saúde se manifestou em duas situações na última semana. A mais barulhenta delas, o fim do convênio com Cuba para o Mais Médicos, foi motivada por declarações do presidente eleito a respeito do preparo dos profissionais cubanos para exercer a medicina. Segundo estimativas do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, as posições do presidente podem custar caro às populações de mais de 600 cidades brasileiras, onde só havia cubanos trabalhando na atenção básica.
Antes disso, no entanto, uma outra declaração deixou observadores eriçados. Ao comentar a possível indicação do deputado Luiz Mandeta (DEM) para a pasta da saúde (ele foi confirmado no cargo na tarde desta terça-feira), Bolsonaro afirmou que o próximo ministro terá de “fazer economia”. “Declarações como essas nos deixam extremamente preocupados”, me disse Ronald Ferreira, presidente do Conselho Nacional de Saúde. “O SUS sofre com um problema de financiamento crônico. Diminuir recursos para o sistema pode ameaçar sua existência”.
A bandeira é defendida por Bolsonaro desde a campanha ao Planalto. No seu plano de governo, o então candidato do PSL apresentava um gráfico comparando o gasto total de saúde do Brasil aos de nações desenvolvidas. Concluía que, com 8, 9% do PIB empregado em saúde, o Brasil já investia o suficiente na área. Não muito menos que os 10% do PIB aplicados pelo Canadá, por exemplo. E algo muito perto dos 9,88% destinados pelo Reino Unido: “O problema desse cálculo é que ele é enganoso. É uma falácia”, me disse a professora Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O problema no Brasil é que o setor público gasta muito pouco em saúde”.
Números do Banco Mundial dão conta de que, dos 8,9% do PIB investido pelo Brasil em saúde, somente 46% vêm do setor público. O restante — a maior parte desse bolo — é resultante de investimentos privados, feito pelos cidadãos e empresas através da contratação de planos de saúde ou através do pagamento direto por serviços médicos. “Hoje, o SUS tem, na prática, cerca de R$3,40 para gastar por dia com cada habitante”, lembrou o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro. “É muito pouco, para cobrir da vacina ao transplante”.
Nenhum outro país no mundo, que conte com um sistema universal de saúde público, repete receita semelhante. A conclusão é do professor Adriano Massuda, pesquisador da escola de Saúde Pública da Universidade Harvard. Num trabalho publicado em março desse ano na revista BMJ, Massuda e seus colegas examinaram os avanços e problemas enfrentados pelo SUS desde o ano 2000, e quais os principais efeitos da crise econômica e do corte de gastos recentes para a saúde brasileira.
Sua conclusões reforçam a ideia de que faltam recursos para o sistema: “Nos países europeus, o gasto público em saúde gira em torno de 80% do gasto total”, explicou o professor. O estudo sugere também que, desde 2014, com o recrudescimento da crise econômica brasileira, os desafios enfrentados pelo sistema de saúde aumentaram, mas o SUS não conseguiu demonstrar “resiliência” adequada a eles, com consequências negativas para a saúde da população.
Sem emprego, mais pessoas passaram a depender do SUS. O Brasil também assistiu ao retorno de doenças infecciosas que antes declinavam, como a febre amarela e a sífilis. Nas ausência de financiamento adequado, o sistema não conseguiu evitar que a saúde no país se deteriorasse: “Você, antes, tinha uma curva decrescente em problemas como a mortalidade infantil. Hoje, essa curva se alterou — e dá sinais de crescimento do problema”, explicou Massuda. “Se reduzir ainda mais os gastos em saúde, as consequências serão catastróficas”.
A perspectiva de reduzir investimento em um sistema já subfinanciado preocupa especialmente porque uma falha pontual pode gerar um efeito cascata: problemas no programa de imunizações, por exemplo, podem deixar a população exposta a doenças. E uma população doente requer cuidados mais custosos. Segundo Massuda, se continuar reduzindo investimentos em saúde, o Brasil caminhará na contramão de uma tendência global, que envolve a busca por cobertura universal de saúde. Esses sinais do governo preocupam observadores internacionais: “Aqui em Harvard, estão todos atentos. Porque questões de saúde ultrapassam fronteiras locais”.
Segundo ele, não é possível estabelecer qual deve ser o investimento ideal em saúde para um país como o Brasil. Mas, diz a professora Lígia Bahia, nações com sistemas universais de saúde dão a pista de que o razoável é que o investimento público seja equivalente a, pelo menos, 60% do investimento total. Para os pesquisadores, é importante que o presidente, e seu recém-indicado ministro, se deem conta dessas questões. Ao longo dos últimos 30 anos, apesar dos muitos problemas enfrentados, o SUS permitiu que as estatísticas de saúde brasileiras melhorassem. Foi uma conquista difícil. Os últimos anos demonstraram que, muito rapidamente, esses avanços podem se perder.