Estudo mostra como o Mais Médicos diminuiu custos e melhorou o atendimento
Mais consultas, relação mais próxima entre médicos e pacientes e economia de dinheiro público ao diminuir o número de internações: essas são algumas das principais conclusões apontadas pelos mais de 200 estudos que se dedicaram a entender e mapear o programa Mais Médicos desde a sua criação, em 2013.
Um dos trabalhos mais recentes, de agosto deste ano, destaca também o aspecto positivo do Mais Médicos sob a ótica fiscal – isso porque a ampliação do número de médicos no atendimento básico de saúde evitou 521 mil internações em 2015, gerando uma economia em internações hospitalares equivalente a um terço do orçamento do programa naquele ano.
Os economistas Débora Mazetto, que desenvolveu o estudo durante o mestrado na Fundação Getulio Vargas (FGV), e Enlinson Mattos, professor e orientador dela, compararam dados de 2.940 municípios antes e depois do Mais Médicos. Desse total, 2.210 receberam profissionais do Mais Médicos e 730, não.
Segundo o estudo, houve uma redução consistente de 4,6% nas internações em geral e 5,9% nas relacionadas a doenças infecto-parasitárias em 2015. Naquele ano, as 11,3 milhões de internações custaram R$ 18,2 bilhões (R$ 1.612, em média, cada uma), e a economia de quase R$ 840 milhões corresponde a cerca de 33% dos R$ 2,6 bilhões destinados ao Mais Médicos no período – em 2017, foram gastos R$ 3 bilhões.
“Houve uma melhora na qualidade do atendimento à população. Imagine uma comunidade que não tinha médicos? Com o aumento das consultas em áreas desassistidas, foi possível identificar e tratar doenças com agilidade, evitando internações que poderiam ser de fato evitáveis”, afirmou Mazetto, que hoje trabalha na Tendências Consultoria Integrada.
Eles não identificaram, porém, nenhum impacto significativo em indicadores de mortalidade infantil ou da população em geral, por exemplo. Segundo Mazetto, não é possível afirmar ainda se o programa não tem capacidade de um impacto mais duradouro ou se não teve tempo de surtir efeito. O número de internações já vinha em queda antes do Mais Médicos, ainda que em ritmo mais moderado (7,9% no intervalo entre 2009 e 2012).
O estudo acima é um dentre os quase 200 trabalhos acadêmicos produzidos sobre o programa desde a sua criação pelo governo Dilma Rousseff (PT) em 2013, na esteira das manifestações de rua em junho daquele ano. Órgãos públicos, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria Geral da União (CGU), também avaliaram o programa.
Ao menos 65 instituições, dentre elas 54 universidades, esmiuçaram a tentativa do governo federal de resolver um problema comum a diversos países: como atrair e fixar médicos em regiões remotas, pobres, violentas, sem infraestrutura adequada ao atendimento da população?
As análises atravessam os três pilares do programa. Os profissionais atuaram nos locais que mais precisavam e fizeram diferença, ou se priorizou quantidade em vez de qualidade? O governo federal criou vagas em universidades e residências médicas fora dos grandes centros e voltadas à atenção básica para não precisar recorrer a profissionais estrangeiros? Houve investimento em infraestrutura, equipamentos e medicamentos no sistema público de saúde, considerados precários na maior parte do país?
Em resumo, a maioria dos trabalhos e relatórios identificou avanços sociais em diversas dessas áreas, como o aumento do número de consultas e exames, a redução das chamadas internações hospitalares evitáveis de parte da população, a saída de quase 500 cidades do estado de escassez médica, um atendimento mais humanizado a pacientes e a ampliação das vagas para estudantes e médicos em regiões sem instituições de ensino de Medicina.
Um grupo de oito pesquisadores do Ceará publicou em junho deste ano uma revisão crítica de 35 trabalhos dentre 1.482 textos encontrados sobre o tema em sites acadêmicos. A partir da leitura da amostra, eles afirmam que o Mais Médicos “contribuiu de forma significativa para a saúde brasileira, uma vez que reduziu a escassez de médicos na atenção primária à saúde, impulsionou a expansão do número de vagas de graduação e residência em Medicina e foi responsável pela mobilização de recursos financeiros para melhorar a estrutura das unidades básicas de saúde”.
Os estudiosos identificaram falhas em todas as etapas envolvidas no programa, resultando em recomendações de melhorias. Os problemas identificados em geral se assemelham àqueles enfrentados por profissionais que atuam no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
A exemplo, falta de equipamentos e medicamentos, falhas na formação e escolha de gestores, desvio de recursos, descumprimento de carga horária, excesso de demanda, falta de transparência, soluções temporárias que acabam permanentes, além de problemas nos contratos de trabalho dos médicos de Cuba.
O programa hoje vive um impasse. Críticas e exigências do presidente eleito, Jair Bolsonaro, relacionadas ao contrato com Cuba levaram o país caribenho a deixar o Mais Médicos. Segundo o governo federal, será lançado neste mês um edital para a substituição desses profissionais.
Atualmente, o programa tem 18.240 vagas, preenchidas por 8.332 cubanos, 4.525 brasileiros formados no Brasil, outros 2.824 brasileiros que estudaram no exterior e 451 médicos intercambistas de outras nacionalidades. Cerca de 2 mil postos não foram preenchidos.
Um levantamento produzido pelos pesquisadores David Ramos da Silva Rios e Carmen Teixeira, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), identificou 137 trabalhos acadêmicos de 65 instituições diferentes ao longo dos três primeiros anos do Mais Médicos. Do total, 80 eram artigos (58,4%). O mapeamento foi publicado no último volume da revista científica Saúde e Sociedade, da Universidade de São Paulo (USP).
A Universidade de Brasília (UnB), com 23 trabalhos (16,8%), aparece à frente da produção e sugere duas hipóteses: a localização no Distrito Federal, próxima dos responsáveis pelo programa no âmbito federal, e a formação de rede de pesquisas sobre o tema com outras universidades.
O auge produtivo (22) do mapeamento desse período, em julho de 2016, tem relação com as diversas chamadas públicas de revistas do campo de saúde coletiva por estudos sobre o tema. Um dos objetivos do Mais Médicos, inclusive, era incentivar e ampliar o número de pesquisas acadêmicas sobre a saúde pública do país.
A partir da amostra analisada, os pesquisadores responsáveis pelo mapeamento da UFBA concluem que os resultados iniciais do Mais Médicos indicam que o programa “tem reduzido iniquidades em saúde, aumentado a proporção médico/habitante e melhorado a qualidade da relação médico-paciente, propiciando atendimentos mais humanizados, ao mesmo tempo em que tem favorecido a integração das práticas dos diferentes profissionais das equipes de saúde e aumentado a efetividade das ações nas UBS (Unidades Básicas de Saúde)”.
Um dos principais estudos produzidos sobre o tema até 2016, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), indicou que o Mais Médicos atacou de fato parte significativa da demanda reprimida. De março de 2013 a setembro de 2015, o número de municípios com escassez de atendimento em saúde caiu de 35,2%, 1,2 mil para 777, segundo índice calculado a partir de variáveis como proporção de médicos, o nível de pobreza extrema e os índices de mortalidade infantil.
“O programa foi um avanço em todos os sentidos. Houve um esforço muito grande do país inteiro, envolvendo governos das três esferas, sociedade e órgãos de controle interno e externo. Municípios com escassez foram beneficiados, além da mexida importante na formação médica”, afirmou o médico Sábado Nicolau Girardi. Ele é pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da UFMG e coordenador do Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado – Observatório de Recursos Humanos da mesma universidade.
Não houve ainda uma mapeamento nos mesmos moldes acerca dos estudos acadêmicos em 2017 e 2018.
O TCU (Tribunal de Contas da União) divulgou no início de 2017 uma avaliação positiva dos resultados do Mais Médicos. Para o órgão de controle, o programa tem eficácia comprovada na ampliação e melhoria da cobertura médica de 63 milhões de beneficiários nas duas primeiras fases do programa, que foi renovado por mais três anos em 2016.
À época, além de destacar o impacto positivo da iniciativa, o tribunal determinou ao Ministério da Saúde que exigisse mais transparência na gestão dos recursos por parte da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), operadora financeira do programa que integra a Organização Mundial da Saúde (OMS). No julgamento do acórdão, ministros do TCU criticaram a fatia transferida para os médicos cubanos.
Segundo termo técnico assinado entre o Ministério da Saúde e a Opas, o governo brasileiro paga uma bolsa de R$ 10 mil mensais por cada profissional. A organização intermedeia o repasse para Cuba. Este, por sua vez, retém a maior parte do valor da bolsa e paga o restante aos médicos que estão fora do país.
Não há, no entanto, números oficiais sobre o quanto é repassado de fato aos profissionais. A carga horária acertada é de 40 horas semanais, por um período de três anos, que poderia ser renovado uma única vez. O TCU recomendou ao governo que buscasse soluções para reduzir a dependência de profissionais estrangeiros.
Em sua tese de doutorado em saúde global e sustentabilidade, apresentada na USP em 2017, a pesquisadora Juliana Braga de Paula analisa o acordo de cooperação assinado entre os governos cubano e brasileiro, intermediado pela Opas, braço da Organização Mundial da Saúde.
De acordo com o governo federal, foram gastos cerca de R$ 13 bilhões com o programa entre 2013 e 2017, sendo quase R$ 7 bilhões destinados ao convênio de contratação dos médicos cubanos.
A política de exportação de profissionais da área de saúde serve hoje como moeda de troca para a subsistência do país caribenho. Em 2014, estimava-se que Cuba dispunha de cerca de 38 mil profissionais de saúde ligados à política de acordos de cooperação internacional com mais de 60 países (em casos humanitários ou de desastres, o envio é voluntário).
A formação massiva de médicos foi adotada pela ditadura liderada por Fidel Castro na esteira da fuga de profissionais decorrente do golpe revolucionário que derrubou o também ditador Fulgêncio Batista, em 1959. O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos deixou o país com poucas opções de geração de receita, além do turismo e do apoio que recebia de aliados como a União Soviética.
A partir dos anos 1960, a diplomacia cubana passou a usar a estratégia de enviar equipes para vizinhos com necessidades emergenciais, com efeito positivo sobre o “soft power” (exercício de influência de forma indireta) na comunidade internacional e sobre a balança comercial.
O envio de profissionais de saúde para o exterior responde por US$ 11 bilhões dos US$ 14 bilhões que Havana arrecada por ano com exportações de bens e serviços, segundo dados da OMC (Organização Mundial do Comércio) e da imprensa estatal cubana.
Mas a saída deles do país não os afasta das restrições à liberdade de expressão e circulação, dentre outras imposições da ditadura cubana, hoje comandada oficialmente por Miguel Díaz-Canel. Mesmo no Brasil, os profissionais cubanos não podem viajar livremente, trazer familiares e não recebem a integralidade das bolsas pagas pelo governo brasileiro no âmbito do acordo de cooperação.
Não há informações oficiais sobre os custos e os repasses do lado cubano envolvidos com o Mais Médicos. Pesquisadores estimam, a partir de entrevistas realizadas com profissionais do país caribenho, que o governo cubano repasse a eles cerca de 25% dos R$ 11.865,60 (valor atual) pagos pelo Brasil por cada médico. A prática é comum em acordos firmados por Cuba.
As bolsas destinadas a profissionais de outras nacionalidades são pagas pelo governo brasileiro individualmente a eles, diferentemente do modelo cubano, coletivo com intermediários. Esse é um dos principais pontos de conflito, em um primeiro momento, entre associações da classe médica e a gestão Dilma Rousseff; agora, entre o presidente eleito, Jair Bolsonaro, e o governo cubano.
O brasileiro condicionou a continuidade do acordo a fatores como a mudança para o regime de contratação individual e a revalidação do título de médico no Brasil. Hoje, a legislação (avalizada pelo Supremo Tribunal Federal) determina que médicos formados no exterior, de qualquer nacionalidade, podem atuar com uma autorização provisória de trabalho por até três anos pelo Mais Médicos sem precisar revalidar seu diploma, processo conhecido como Revalida (uma fase teórica e outra prática). Caso tentem renovar a permanência, precisam se submeter à revalidação.
No início do programa, em 2013, o Ministério da Saúde afirmava que não usaria o Revalida para evitar que, com a revalidação plena da atividade profissional, os médicos pudessem atuar no setor privado e dispersassem pelo país, e não somente nos locais determinados pelo programa.
Segundo a Confederação Nacional de Municípios, 1.478 cidades possuem somente médicos cubanos em suas equipes do Mais Médicos. De acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, com a saída dos cubanos, 611 cidades dependem exclusivamente desses profissionais e podem sofrer apagão na rede pública.
As regras do programa colocam os cubanos no fim da lista de prioridade para preenchimento de vagas. Em geral, seguem para localidades as quais não tiveram interessados, como lugares fronteiriços e municípios sem infraestrutura adequada.
No Mais Médicos, todos os profissionais, brasileiros e estrangeiros, têm direito a alimentação e moradia bancadas pelas prefeituras das localidades onde atuam.
O programa Mais Médicos prevê que os profissionais envolvidos passem por um curso de especialização na área de saúde da família e sejam supervisionados e orientados por instituições de ensino superior do país.
Mas pesquisadores identificaram falhas e lacunas na supervisão dos bolsistas e posições diversas acerca das condições contratuais envolvendo os governos brasileiro e cubano.
Houve reações negativas, em menor escala, às condições, e médicos acabaram desertando e foram para outros países que firmaram acordos parecidos. No Brasil, cerca de 200 profissionais entraram na Justiça para receber integralmente a bolsa paga pelo governo brasileiro.
Segundo dados do governo cubano, o salário médio no país gira em torno de US$ 30, a renda mensal de um médico em Cuba é estimada entre US$ 25 e US$ 40, ou o equivalente a R$ 94 e R$ 150. Os setores de açúcar e minério costumam pagar 50% a mais que o de saúde e assistência social.
Outra parte dos médicos cubanos ouvida por pesquisadores defende publicamente a política internacionalista e a destinação interna dos recursos gerados pela política internacionalista.
“Em grande parte, o país fica com o dinheiro. Por quê? Porque em nosso país quase tudo é subsidiado. A saúde é gratuita, a educação é gratuita, esse dinheiro (dos acordos de cooperação internacional) é para subsidiar nossas coisas. Eu tô aqui e tô despreocupado com a saúde da minha família”, afirmou um médico cubano que atuou no Brasil pelo programa e foi entrevistado pela pesquisadora Juliana Braga de Paula, da USP.
Em seu estudo de caso, ela conversou com 14 profissionais do país caribenho que trabalhavam nos municípios cearenses de Caucaia e Parambu. Nesta, localizada no sertão, 32% dos cerca de 31 mil habitantes viviam em condições de pobreza extrema.
Pesquisadores se debruçaram também sobre a relação médico-paciente no âmbito do Mais Médicos, a exemplo da satisfação dos usuários com os serviços prestados e das principais dificuldades no diálogo entre profissional e paciente.
Segundo um estudo da UnB de 2014, pessoas atendidas pelo programa em Ceilândia (DF) afirmaram que os profissionais, principalmente os estrangeiros, “têm mais atenção, interesse, interação, paciência, dão mais espaço, olham, ouvem e conversam com o paciente”.
A mesma percepção foi identificada em estudos. “Chama atenção o fato de que alguns trabalhos destacam que os usuários percebem o atendimento realizado pelos profissionais cubanos como superior ao desenvolvido pelos seus pares brasileiros, destacando como principal diferencial o olhar, a escuta, a atenção e o respeito”, afirma o mapeamento do artigo, citando quatro trabalhos sobre o tema.
Segundo levantamento realizado pela UFMG e pelo Instituto de Pesquisa Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) com 14.179 usuários, 227 gestores e 391 médicos em 699 municípios, 87% dos beneficiários afirmaram que os médicos do projeto foram mais atenciosos que profissionais que os atenderam anteriormente.
A grande maioria dos problemas relatados a pesquisadores pelos médicos brasileiros e estrangeiros que atuam no programa é parecida com os já enfrentados pelos profissionais no SUS, sendo a falta de infraestrutura o mais grave deles. Verbas para compra de equipamentos e melhorias são anunciadas por governantes, mas diversas vezes parecem não chegar à ponta do sistema.
“Às vezes não temos material para fazer os curativos, não temos um aparelho inalador para os asmáticos. Não temos material de sutura. E aí, na atenção primária em nosso país, fazemos todas essas coisas”, relata um médico cubano à pesquisadora.
Ele também faz críticas às indicações políticas e à falta de formação técnica dos gestores brasileiros na área de saúde. “Aqui o gestor pode ser qualquer um. Não conhece de saúde, nem de nada.”
Segundo o governo federal, o programa previu mais de R$ 5 bilhões para o financiamento de 26 mil obras em quase 5 mil municípios, das quais quase 10,5 mil foram entregues e outras 10 mil encontram-se em fase de execução.
Diversos estudos identificaram falhas no controle das verbas destinadas aos programas (obras e custeio), prefeituras que não cumpriam parte das contrapartidas previstas no programa, falta de medicamentos e equipamentos e problemas na gestão de verbas e recursos humanos.
Em artigo publicado em 2016, um grupo de oito pesquisadores ligados à Fiocruz, UFF, USP, ao Dieese e ao Ministério da Saúde analisou a qualidade da estrutura das unidades básicas de saúde.
Segundo eles, é preciso investir ainda mais em infraestrutura porque esse problema afeta a diretamente satisfação dos médicos e está associada à rotatividade desses profissionais, o que gera ainda mais custos e afeta o atendimento à sociedade. O grupo afirma ainda que o programa não havia conseguido chegar às unidades de saúde que estavam nas piores condições.
Em auditoria divulgada em março deste ano, a CGU (Controladoria Geral da União) identificou uma série de falhas de monitoramento e implementação do programa, a exemplo dos profissionais que não cumpriam a carga horária completa e a troca irregular de equipes que algumas prefeituras realizaram de olho nos recursos federais.
“Verificações realizadas em 222 equipes de saúde da família instaladas em 198 municípios brasileiros apontaram que em 44 (20%) delas, vinculadas a 32 municípios, houve substituição de médicos por participantes do programa Mais Médicos.”
A principal bandeira do programa Mais Médicos era uma distribuição mais equilibrada dos médicos pelo país, principalmente em municípios pobres e remotos. Os habitantes que vivem em qualquer capital tinham, em média, duas vezes mais médicos atuando ali que aqueles que vivem em outras regiões do mesmo Estado.
A atração de profissionais estrangeiros é uma das principais ações emergenciais e temporárias do programa, que atacaria problemas estruturais em outra frente. Afinal, como atrair médicos para os locais que mais precisam deles?
Dados do governo federal indicam um déficit na relação formação/demanda de médicos no país. De 2003 a 2011, surgiram 147 mil vagas de primeiro emprego formal para esses profissionais, mas só 93 mil (66%) se formaram no período.
As associações que representam a categoria médica, no entanto, rebatem os dados do governo e os estudos que indicam um déficit nacional. Em nota publicada no último dia 17, a Associação Médica Brasileira afirmou que “não faltam médicos no Brasil. Hoje, somos 458.624 médicos. Essa crise será resolvida com os médicos brasileiros.”
Para atrair e reter profissionais brasileiros nas áreas com baixa proporção de médicos por mil habitantes, a entidade afirma que “a solução definitiva passa pela criação de uma carreira médica de Estado que valorize o médico brasileiro e que dê a ele perspectivas seguras e condições de planejar sua vida num horizonte de longo prazo.”
A entidade defende também o uso e ampliação do efetivo de médicos das Forças Armadas, subsídios como moradia e desconto em dívida de financiamento estudantil.
Diversos países enfrentam dificuldades de atração e fixação de médicos em áreas remotas ou de risco, em razão de fatores como localização, remuneração, tipo de vínculo empregatício, carga horária e infraestrutura.
Em 2012, o médico e pesquisador Sábado Girardi, da UFMG, liderou um levantamento com 277 dos 1.834 estudantes matriculados no último ano dos cursos de medicina no Estado de MG a fim de medir a propensão deles a atuarem nessas regiões e circunstâncias.
Quatro em dez aceitariam atuar no cenário mais atraente aferido, com salário de quase R$ 18 mil (valor corrigido e inviável para a grande maioria dos sistemas municipais de saúde), carga de 20 a 30 horas, condições de trabalho adequadas, vínculo estável e acesso garantido à residência médica.
No ano seguinte, a UFMG realizou um levantamento com questões parecidas, desta vez com médicos já formados e inscritos no Provab, programa do governo federal no qual médicos formados passavam pelo menos um ano atuando em programas de saúde da família.
Em troca, caso fossem bem avaliados, recebiam benefícios como um bônus de 10% na nota em seleções de residência médica. Para 82% dos entrevistados, esse foi o maior fator de motivação para a atuar no Provab; em segundo, para 38% dos profissionais, o salário de R$ 11.200 (valores atuais).
A experiência profissional em localidades escolhidas pelos médicos dentre as consideradas prioritárias pelo governo federal afeta a pretensão de eles voltarem a atuar em áreas remotas, passando de 38%, antes de atuarem no programa de saúde na família, para 27%. As condições de trabalho pesam: metade dos entrevistados avaliou como ruins ou péssimos os equipamentos da unidade de saúde na qual atuaram.
Uma alta rotatividade de profissionais afeta o progresso dos programas ligados à atenção básica, baseados em contato mais próximo com a comunidade.
Outra ação do Mais Médicos passa pela redistribuição de novos cursos e vagas de residência, antes concentrada nas capitais. O programa estabeleceu regras para novas autorizações, como o número de habitantes do município e a oferta de cursos na região.
Segundo o governo federal, desde 2013 foram criados 117 cursos e cerca de 13,6 mil vagas (a meta era 11,4 mil), voltadas à interiorização do ensino: 73% do total não estão em capitais.
Hoje, são quase 290 cursos na área, com cerca de 30 mil vagas. Do total, 12.589 estão nas capitais (43%) e 16.682 (57%), em outras áreas. A expansão foi catalisada pelo setor privado, com quase 80% das novas vagas e mensalidades em torno de R$ 7 mil. Hoje, 10.237 estão em escolas públicas (35%) e 19.034 (65%), no setor privado.
“Não seria mais sensato investir nas universidades públicas, que ainda congregam um corpo docente de excelência, recuperar seus hospitais universitários, reforçar o seu corpo técnico-administrativo, dar-lhes um salário digno, viabilizando a expansão de vagas nos cursos de Medicina?”, questionou em artigo em 2014 o médico Alberto Schanaider, professor titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A forte expansão esbarrou em diversos gargalos, como avaliação e supervisão inadequada dos novos cursos e falta de estrutura, verba e professores, e em uma onda de críticas de entidades de classe. Em reação, o governo Michel Temer (MDB) decidiu em abril passado suspender a abertura de cursos e vagas por cinco anos.
Segundo o estudo Demografia Médica no Brasil, coordenado por Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o país formará 28.792 médicos em 2024, cerca de três vezes o saldo de 2004, então de 9.299.
O programa Mais Médicos foi alvo de intenso debate na mídia, envolvendo profissionais, pesquisadores, entidades de classes, políticos, gestores e governantes.
Segundo o mapeamento da UFBA sobre os estudos acadêmicos produzidos ao longo dos três primeiros anos do programa, sete trabalhos envolvem as discussões na mídia sobre o Mais Médicos.
Os críticos do programa abordam, principalmente, cinco aspectos: contratação em larga escala de profissionais estrangeiros (este o mais controverso), quantidade em detrimento da qualidade, infraestrutura precária das unidades de saúde e expansão desenfreada de cursos e residências de medicina. O último era político: era uma estratégia eleitoreira?
“É necessário destacar que as visões apresentadas pelas entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (ABM), são distintas dos posicionamentos de outras instituições, como o Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)”, afirma o levantamento, ao mostrar que não há consenso entre as entidades de classe.
Foram identificados também nos estudos ligação entre o discurso negativo acerca do programa e críticas políticas ao PT, além de uma forte visão corporativa, principalmente nos editoriais publicados pelo Conselho Federal de Medicina.
Produzido por cinco pesquisadores da UFBA, um trabalho publicado em meados deste ano na revista Saúde em Debate, do Cebes, identificou ainda o papel duplo exercido pelos veículos de comunicação.
“A mídia atua, simultaneamente, como espaço de reverberação do debate político e, também, como um ator político que influi na opinião pública acerca do programa.” Dando, por exemplo, pouca ou nenhuma voz ao usuário do sistema público de saúde e ao médico que não fosse por meio de entidade de classe.