Governo bate cabeça tentando substituir médicos cubanos
O anúncio da saída de cerca de 8.500 médicos cubanos do Mais Médicos, medida que pode afetar o atendimento de até 24 milhões de brasileiros, levou o governo a fazer um edital emergencial para selecionar profissionais para as vagas.
A resposta foi imediata. Na prática, porém, essa ampla adesão é vista com ressalvas.
Dados do Ministério da Saúde apontam que, apesar do aumento da procura aos editais do programa, cerca de 30% dos brasileiros desistem das vagas após um ano. Já entre os estrangeiros, esse índice é de menos de 3%.
E, embora o número de médicos no país tenha crescido recentemente, metade deles ainda se concentra nas capitais, segundo dados da pesquisa Demografia Médica, da USP.
O impasse em torno de um dos maiores programas federais na saúde acabou por reacender uma discussão antiga no setor: afinal, o que fazer para levar médicos ao interior?
Desde que foi anunciado como futuro ministro da Saúde, o deputado federal Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) tem dado sinais do que deve ser uma das bandeiras da próxima gestão: a carreira de Estado para médicos em áreas de difícil acesso ou com carência de profissionais.
A proposta, que já constava no plano de governo de Jair Bolsonaro (PSL), tem sido alvo de discussão entre membros da transição. A ideia é sugeri-la ao novo ministro como estratégia a médio prazo.
Neste caso, profissionais seriam deslocados para regiões mais remotas e, conforme a progressão na carreira, passariam a áreas mais próximas das capitais. A medida ocorreria em paralelo com o Mais Médicos, que poderá ser reformulado. “Vamos ter que discutir as bases. Será que vai continuar a se chamar Mais Médicos ou vai se chamar Mais Saúde?”, afirmou Mandetta à imprensa nesta semana.
Além de um plano de carreira, a exigência de revalidação do diploma para brasileiros formados no exterior e estrangeiros é outro ponto no centro das discussões.
Membros do grupo de transição afirmaram à Folha que planejam sugerir ao novo ministro que a medida seja obrigatória em novos contratos do programa já no ano que vem.
A ordem de seleção, neste caso, manteria a prioridade a brasileiros, seguida de brasileiros formados no exterior e estrangeiros. O problema é que, neste ano, o edital previsto para o exame, chamado de Revalida, nem chegou a ser lançado. Não há previsão do próximo.
Em meio a essa crise, o governo atual já negocia mudanças na periodicidade e na aplicação das provas, o que aumentaria as chances de entrada de novos profissionais.
Há também outras propostas na mesa. Uma delas é criar mecanismos para que médicos formados que tenham dívidas no Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) possam ter desconto nesse montante caso atuem por determinado período no interior, afirmou à Folha o atual ministro da Saúde, Gilberto Occhi.
Apesar de favorável à medida, Occhi diz que o avanço da discussão ainda nesta gestão deve ser condicionado ao índice de comparecimento de brasileiros às vagas do Mais Médicos. “Vamos esperar a próxima semana para decidir.”Enquanto isso, outras propostas também têm ganhado espaço nas discussões.
É o caso do serviço civil obrigatório para profissionais que recebem financiamento público para a formação. Atualmente, a sugestão consta em mais de 24 projetos de lei no Congresso e é alvo de análise por representantes dos ministérios da Saúde e da Educação.
Segundo Occhi, a medida poderia valer para qualquer um que faça uma faculdade pública federal –e não apenas para alunos de medicina.
A proposta, porém, pode gerar críticas quanto à constitucionalidade, em princípios como o direito à educação e liberdade, afirma Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do estudo Demografia Médica. Para ele, não há solução mágica. “Garantir médicos em áreas desassistidas é um problema em vários países do mundo. E o que estudos demonstram é que as respostas não são únicas, nem duráveis nem satisfatórias”, avalia.
Scheffer lembra que, nas últimas décadas, o Brasil já teve propostas para tentar levar profissionais ao interior, mas boa parte enfrentou impasses ou acabou abandonada.
É o caso, por exemplo, de discussões de carreira de estado para áreas de difícil acesso no SUS. “Há uma tradição de governos de não dar continuidade às discussões”, afirma.
Favorável à carreira de Estado para o SUS, Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, defende ainda que haja maior atenção na formação de médicos para tentar atraí-los à atenção básica e abertura ou deslocamento de faculdades públicas, e não particulares, no interior do país.”
Uma faculdade privada vai formar quadros para mercado pago. Temos que sair dessa armadilha”, avalia.
Já para Donizetti Dimer Giamberardino Filho, coordenador da comissão Pró-SUS do Conselho Federal de Medicina, a baixa remuneração e a falta de estrutura e condições de trabalho em algumas regiões colaboram para dificultar a ida de médicos ao interior.
Segundo ele, o ideal seria investir em políticas de estruturação do SUS e na carreira de Estado para médicos, mas em nível mais amplo. “Hoje, nas cidades pequenas, o futuro do médico termina na próxima eleição para prefeito. Defendo que a operação da atenção básica seja dos municípios, mas a organização ocorra a nível federal”, afirma.
Scheffer, no entanto, alerta que uma proposta de plano de carreira em nível mais amplo pode esbarrar em problemas devido ao alto custo.
Também poderia gerar críticas sobre a isonomia em relação a outras profissões, afirma. “Temos hoje múltiplos empregadores na rede pública. Seria impossível, por exemplo, fazer um plano de carreira para o SUS inteiro.”
Da FSP