Justiça Militar considera “erro escusável” assassinato de jovem pelo Exército
Pouco depois de completar 17 anos, Matheus estava sentado na sala da casa da sua mãe em Vitória, capital do Espírito Santo. Ela, de pé, estranhou quando o filho disse: “Mãe, a gente vai ficar junto para sempre. Ninguém vai separar a gente”.
É a primeira coisa que ela conta quando indagada sobre a morte do filho. Para ela, esse é o começo da história. Dois meses depois, no dia 11 de fevereiro de 2017, ele seria assassinado pelas Forças Armadas.
Matheus era o filho caçula de Cristiane Martins da Silva, de 44 anos. Desde a sua morte, ela não “deixou” o filho um segundo. Além de cuidar dos detalhes práticos, encara a missão de limpar o seu nome. “Eles falaram que meu filho era vagabundo, criminoso”, diz. “Foi uma covardia.”
Naquela madrugada, uma bala de fuzil calibre 762 o acertou na cabeça. O menino morreu na hora. Por causa de uma greve da Polícia Militar do Estado, o Exército fora empregado para atuar nas ruas na área metropolitana quatro dias antes. Ficaria em atuação na Operação Capixaba, de Garantia da Lei e da Ordem, até 8 de março. A patrulha do Exército foi chamada para o bairro de São João Batista, em Cariacica, município vizinho a Vitória, por funcionários da Unidade de Internação Provisória (Unip) no bairro, voltada para adolescentes em conflito com a lei. A unidade sofreu um ataque de cinco adolescentes armados que tentavam abrir um buraco no muro, e os funcionários detectaram risco de fuga dos internos. Como a PM estava em greve, quem veio acudi-los foi uma patrulha do Exército. Quando chegaram, não encontraram ninguém diante da Unidade e resolveram fazer patrulha pra dentro do bairro onde Matheus morava. E foi um tiro dos soldados do Exército que matou Matheus, segundo concluiu a Polícia Civil e o Inquérito Policial Militar feito pelo Exército.
Tímido, caladão, desde os oito anos Matheus vivia com o pai e os dois irmãos mais velhos em São João Batista. Após a separação, a mãe mudou-se para Vitória, e o filho permaneceu no bairro onde nasceu, cuidando do pai, que tem esclerose múltipla. “O Matheus parecia enfermeiro: dava banho, comida, sonda. Em tudo o pai depende dos outros”, diz a mãe. Antes de adoecer, o pai vendia mel na feira e desde pequenos Matheus e os irmãos ajudavam.
“Ele vinha almoçar comigo no restaurante que eu tinha todos os dias.” O sonho do menino era ganhar uma moto para entregar marmitex para o comércio da mãe, um self-service no bairro de Andorinhas, em Vitória. “Eu dizia a ele: assim que você completar 18 anos”, lembra Cristiane.
Na madrugada de quinta para sexta-feira, dia 10 de fevereiro, ele estava saindo da casa de uns primos, no seu bairro. O tiro apanhou-o a um quarteirão da sua casa. O estampido foi ouvido pelos irmãos, por vizinhos e por primos – toda a família do pai dele mora na vizinhança. Os soldados do Exército também foram vistos pelos moradores. No sábado a história já estava em todos os jornais. “Quando ouvi os tiros, saí de casa e já encontrei minha prima gritando. Isso acabou a minha vida. Ele era tudo pra gente”, contou Tatiane, prima de Matheus, ao jornal Notícia Agora. Nas fotos da imprensa, os familiares exibiam algumas cápsulas de fuzil que recolheram no local. “Um menino inocente, tinha vergonha de falar com as pessoas”, disse a prima. “A gente é pobre, mas não é bandido, não é cachorro.”
Para o G1, Tatiane descreveu que os soldados viram que o primo morrera “com a roupa do corpo”, a um minuto de chegar em casa. “Quando o Exército viu que a família dele correu para a rua gritando, que era um menino de família, eles subiram no carro e foram embora.”
Procurada pela imprensa local, a Força-tarefa Conjunta Capixaba afirmou que houve um tiroteio entre criminosos e uma patrulha de soldados. “Durante a troca de tiros, foi constatado que um dos transgressores foi atingido e veio a óbito”, diz a nota. A versão é a mesma que aparece no IPM aberto na manhã seguinte aos eventos.
O inquérito conclui que não houve crime porque os soldados agiram em “legitima defesa” e “em estrito cumprimento do dever legal”, configurando assim um “excludente de ilicitude”.
O IPM foi encerrado um mês e meio depois e só ouviu dez militares envolvidos na operação e quatro funcionários da Unip. Nenhum vizinho ou familiar foi ouvido.
O relatório final descreve como, após a chegada do Exército, os jovens armados já não estavam diante da Unip, mas haviam supostamente entrado no bairro São João Batista. Os soldados decidiram, então, entrar em patrulha para persegui-los.
A roupa que Matheus usava, uma camiseta branca com uma estampa, bermuda e chinelos, é apontada como um indício de que ele seria um dos jovens que ameaçaram a Unip. Ele “vestia uma camisa clara muito parecida com a camisa de um dos marginais que apareceram nas gravações portando armas”, afirma o relatório do inquérito.
Matheus jamais cometeu algum crime, segundo mostram cristalinamente os registros de antecedentes criminais. Mesmo assim, o IPM descreve como ele foi “abordado em pelo menos duas ocasiões pela Polícia Militar e em ambas as abordagens ele confessou ser usuário de drogas”. Mas quem lê os registros encontra uma história bem mais prosaica. Houve duas abordagens policiais, feitas no mesmo quarteirão onde ele morava; em ambos os casos, Matheus, então com 15 anos, estava com amigos. Ninguém portava nenhuma droga. Questionados pelos policiais, confirmaram ter fumado maconha. Nas duas vezes, os PMs deram uma bronca nos adolescentes e foram embora.
O IPM descreve ainda que há indícios de que os disparos foram dados pelo capitão Thiago Moacyr Pinto da Silva, auxiliar da 3Q, seção do 38° Batalhão de Infantaria, que naquela noite decidiu liderar a incursão dos militares pelo bairro. O depoimento do capitão relatado no IPM versa que “quando estava realizando a segurança da praça na direção oeste na rua Amélio Barcelos observou três APOP [agentes perturbadores da ordem] armados. Um deles, ao ver o militar, gritou para o outro ‘olha eles ali’. O outro APOP virou-se em direção à posição do pelotão e apontou uma arma em direção ao capitão. Neste momento, o capitão realizou dois disparos de FAL e não observou se havia ferido o APOP. Ouviu dois sons que julgou ser de disparos e realizou mais dois disparos”.
Após o que “julgou” serem disparos, o capitão orientou os demais militares a evacuar o local, por considerar que não era seguro permanecer ali. Nenhum dos soldados foi ferido ou atingido; não há nenhum vestígio material de que tiros tenham sido disparados contra os militares.
Outro depoimento importante é o do sargento Affonso Belenda Netto, que se manteve ao lado do capitão Moacyr enquanto eles entraram no bairro, fazendo sua proteção. No entanto, o IPM elucida que ele não chegou a ver os tais criminosos. “Após chegarem novamente à praça o capitão Moacyr estava à frente do pelotão seguido do sargento Belenda. Decidiram realizar segurança em todas as vias de acesso à praça e, em determinado momento, quando deslocava-se para realizar a segurança do capitão, ouviu os disparos de fuzil realizados em direção aos APOP. Neste momento correu para tomar posição de tiro ao lado do capitão e reforçar os fogos na direção da rua de onde vinha a ameaça. Sargento Belenda afirma que não conseguiu ver os marginais porque quando tomou a posição ao lado do capitão eles haviam fugido, porém, pode ouvir vários gritos de xingamentos vindos da direção.”
Referendando a conclusão do IPM, no dia 17 de abril o general de brigada Adilson Carlos Katibe, comandante da Operação Capixaba, escreveu: “Concordo com o parecer do Encarregado no sentido de que não há indícios de crime por parte de nenhum militar que esteve envolvido naquela ocorrência uma vez que o único militar que efetuou disparos na direção dos APOP foi o Capitão Moacyr, que agiu em legítima defesa e de acordo com o previsto nas Regras de Engajamento da Operação Capixaba”. E assim terminou a investigação realizada pelo próprio Exército.
Analisando o inquérito militar, o Ministério Público Militar concordou em gênero, número e grau. E ainda colocou em dúvida a autoria do crime, negando a própria nota do Comando publicada na imprensa no dia 10. “Em que pese a Polícia Civil do Espírito Santo ter constatado que Matheus foi alvejado por um projétil do tipo 7.62 mm, de uso das Forças Armadas, não há como precisar de quem partiu o disparo que o atingiu. Se de militar do Exército, de pessoa não identificada, ou dos próprios comparsas do falecido, não se vislumbrando qualquer diligência capaz de elucidar tal ponto”, afirma o documento assinado pelo promotor Ednilson Pires.
Para elucidar tal ponto, no entanto, era simples. Bastava cotejar a arma do capitão Moacyr com os projéteis recolhidos pela família. Isso não foi feito.
Finalmente, no topo das decisões quanto a um processo criminal dentro da Justiça Militar, a juíza Maria Placidina de Azevedo Barbosa Araújo concordou com promotor e com o general e arquivou o caso. Ela menciona a falta do exame de balística – mas não comenta que o próprio Exército, ou o Ministério Público Militar, poderia tê-lo providenciado. “Diante disso, pela falta de mínimos indícios de autoria, já haveria subsídios para acolher um pedido de arquivamento”, escreve.
A juíza, porém, vai mais longe na sua justificativa. “E, ainda, caso a pretensa vítima fosse um inocente, pelo contexto fático, estaríamos diante de erro de fato (CPM, art. 36), eis que, repita-se, até um inocente vitimado nas referidas condições seria um erro plenamente escusável, fincado na admissível suposição de existência de situação de fato que tornaria a ação legítima, dando-se as justificantes (seja a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal) de forma putativa, o que leva à isenção de pena, por exclusão da culpabilidade”.
Não houve de fato laudo pericial nos armamentos utilizados pelo capitão Moacyr naquele dia. Por um lado, o IPM, conduzido pelos próprios militares, não buscou essa averiguação; por outro, a investigação da Polícia Civil foi bruscamente interrompida um mês depois do crime, justamente quando o delegado Franco Quedevez Malini concluiu que os tiros partiram do Exército. Desse modo, a competência para investigar seria da Justiça federal. “Logo, a investigação criminal não cabe à Polícia Civil”, escreveu o delegado.
Mas antes disso o rápido inquérito jogou luz sobre algumas questões importantes. Primeiro, ele mostra que por volta da 1 hora da madrugada os serviços de emergência receberam diversas chamadas de São João Batista. Em nenhuma delas há a descrição de troca de tiros. Uma delas, de um anônimo que ligou para o 190 à 1h14, descreve: “Indivíduo portando arma de fogo efetuou disparos contra um rapaz que já está caído na via. Ressalta que o indivíduo que efetuou os disparos está na pracinha e continua efetuando disparos, pede apoio”.
Atendendo aos chamados, a Polícia Civil chegou ao local por volta de 1h50 e encontrou o bairro em polvorosa, com dezenas de vizinhos rodeando o corpo de Matheus, que fora coberto com uma manta florida. Havia escarificações pelas balas em um poste, a 3,5 metros de altura do chão, em um muro de chapisco e em um caminhão-baú.
“No local, quando chegamos, encontrava-se bastante aglomeração de populares que estavam exaltados com a situação dizendo que a vítima foi morta pelo Exército e observando que no momento da ação todos os componentes da equipe estavam com camuflagens de guerra”, descreveram os policiais. Eles anotam também que não encontraram “nenhum tipo de arma, drogas ou objetos de qualificação” próximo ao corpo. Mas receberam dos moradores “dois estojos de calibre 7,62 com uma marca verde em sua base”.
Nenhum exame aponta resquício de pólvora nas mãos do adolescente.
Os policiais conseguiram registrar naquele momento o testemunho do irmão mais velho de Matheus. “Everton, irmão da vítima, estava muito alterado e nervoso, dizendo a todo momento que foi o Exército em patrulhamento que matou seu irmão, que, segundo ele, era um menino bom e não fazia nada de errado. Everton ainda completou a sua entrevista dizendo que foram quatro que estavam na equipe a uns 50 metros da equipe, que então disparou contra a vítima, que, segundo ele, levantou a mão, mas houve mais disparos, então a vítima correu e foi atingida, vindo a óbito ali no local.”
Chama atenção, no inquérito, uma segunda diligência realizada no bairro. Dessa vez, os policiais anotam que “o local é conhecido pelo intenso tráfico de drogas” – e encontraram: três cápsulas calibre 28 deflagradas; uma cápsula de pistola 380 deflagrada; uma cápsula de fuzil 762 deflagrada; quatro embalagens vazias de munições; uma touca ninja preta.
No entanto, não há informação sobre em que dia foi realizada essa diligência. O primeiro relatório que faz referência a elas é datado de 14 de fevereiro, e o laudo de apreensão dos materiais colhidos foi registrado apenas no dia 16 de fevereiro, quase uma semana depois do homicídio.
No relatório que acompanha essa segunda diligência, os policiais civis trazem uma versão diferente: “No local do fato tivemos a informação que a vítima era sempre vista no bairro e, segundo relatos dos próprios moradores, está sempre em companhia de outras pessoas envolvidas no tráfico de drogas, sendo que por diversas vezes já sofrera abordagens da Polícia Militar e também é usuário de drogas. Nos parece que Matheus estava em companhia de outras pessoas que evadiram-se quando viram que ele morrera, mas não confirmamos tal fato, bem como não achamos nenhuma arma no local”. O relatório não explica quem afirmou isso nem traz nenhuma evidência. Mas foi usado na conclusão do IPM e como argumento para o pedido de arquivamento pelo Ministério Público Militar.
Como em outros casos apurados pela Pública para a série de reportagens Efeito Colateral, diante da impossibilidade de obter justiça pelas vias criminais, a família recorreu à Justiça Civil por uma reparação.
“O Exército já entrou com um inquérito nem 24 horas depois, meu filho ainda sendo enterrado. Falando que ele era criminoso. Mas eu tenho todas as provas de que ele não era”, diz Cristiane. Sozinha, a mãe reuniu fotos, recortes de jornal, relatos, testemunhas. “A roupa do meu filho eu guardo até hoje”, diz. Com tudo o que reuniu, ela entrou na Justiça no começo do ano, em uma ação por danos morais e materiais contra a União. O valor da ação é de R$ 500 mil.
O caso foi aceito na 3ª Vara Federal Cível do Espírito Santo – o Estado é representado pela Advocacia-Geral da União –, e o juiz determinou que, se o principal argumento é autodefesa, o ônus da prova é do Exército. “O que ocasionou a legítima defesa? Qual era a conduta do falecido? Houve confronto entre o Exército e o filho dos autores?”, questiona o juiz.
“Vamos tentar provar o óbvio, que é um rapaz que jamais tinha se envolvido com absolutamente nada, nunca teve passagem pela polícia, nunca teve nenhum ânimo criminal, e toda essa fala do Exército é fruto de uma desculpa esfarrapada”, avalia o advogado Leonardo Tovar, que representa a família.
A mãe apresenta a mesma obstinação. “Eu sei o que eu estou fazendo. Eu sei por que eu estou lutando. Porque que achei uma covardia. Foram cem metros de distância. Por que não abordou? Um adolescente vindo sozinho na rua, vindo da casa do primo, um bairro que ele foi feito ali, fiquei nove meses com ele na minha barriga ali, nasceu ali no bairro, nasceu no hospital do bairro, cresceu ali.”
Para Cristiane, o valor da causa é o da reparação. Enquanto o filho estava vivo, ela mantinha, além do restaurante na hora do almoço, um ponto de churrasquinho no centro da cidade à noite. Teve que fechar o restaurante. Emagreceu. Adquiriu câncer. Entrou em depressão. “Eu estava ficando paranoica, meu marido ia me buscar de madrugada lá dentro do cemitério. Eu endoidei praticamente”, diz. “O Matheus era tudo pra mim.”
Do El País