Marqueteiro revela estrutura sofisticada em campanha de Bolsonaro
O publicitário Fernando Barros ri da própria imodéstia ao anunciar, duas vezes em menos de uma hora, seu currículo vitorioso. Desde que elegeu seu amigo Antônio Carlos Magalhães governador da Bahia no primeiro turno em 1990, Barros disputou mais de 30 eleições no país e perdeu apenas seis. “Contando com essa inacreditável de agora”, em referência ao inesperado fracasso do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia (DEM), derrotado na disputa para o Senado por apenas 54 mil votos por seu ex-secretário, Arolde de Oliveira (PSD).
Precursor da dinastia baiana no marketing político brasileiro — como nove entre dez colegas, proclama ojeriza ao termo “marqueteiro” —, ele é bem mais do que um estrategista de campanha. Íntimo de ACM e de outros caciques históricos da política nacional, é uma voz à qual os mais experimentados políticos recorrem para entender o que está acontecendo. Dono da Propeg, uma gigante do setor publicitário com contratos com as principais estatais do país, ele circula há décadas pelo Congresso e por palácios de diferentes governos. E reconhece que nunca foi tão difícil entender o que está acontecendo na política, referência à onda protagonizada por Jair Bolsonaro (PSL), que varreu alguns dos principais líderes partidários e mudou consensos sobre eleições no Brasil.
Barros, além da mala de mão, carregava uma apostila onde se lia, na capa, House of cards — referência à série americana —, ao lado de uma bandeira do Brasil. Era uma análise do resultado eleitoral, a ser exposta a quem o procura pedindo conselhos ou explicações. Permitiu que a reportagem ficasse com o exemplar, desde que não publicasse seu conteúdo. Além de uma análise dos resultados das urnas, contém uma radiografia completa do Congresso na próxima legislatura — todos os eleitos, seus partidos, profissões e a estimativa de bancadas temáticas.
O orgulho pela extensa lista de vitórias eleitorais não o impede de admitir que também duvidou de uma vitória de Bolsonaro. “Eles ( os marqueteiros políticos ) estão até hoje tentando entender. Cada dia acordam de um jeito e falam uma coisa. ‘Foi a facada!’. ‘Não, foi o WhatsApp, botaram milhares de minions espalhando coisas nas redes!’, foi isso, foi aquilo. Ainda estão perdidos”, contou. “Eu mesmo só fui acreditar na vitória dele a uma semana da eleição. Estava na ( rede de lojas de cuidados ortopédicos ) Dr. Scholl, no Recife, e perguntei à moça que estava fazendo meu pé. Ela respondeu: ‘Bolsonaro, claro’.”
Farejar poder e prever resultados eleitorais, para pular com antecedência no barco vitorioso, sempre foi um inegável atributo dos líderes partidários no Brasil — entra governo, sai governo, todos sempre com seu espaço na Esplanada. Em 2018, o MDB lançou Henrique Meirelles sem qualquer expectativa de vitória, e o centrão quebrou a cara com Geraldo Alckmin (PSDB). Para Barros é preciso fazer justiça e admitir que uma das raposas teve a visão mais aguçada que as outras: “Eles erraram a análise. E feio. Só o PR previu. Só o Valdemar ( da Costa Neto, presidente do Partido da República ) acertou. Ele dizia ‘Quem ganhará esta eleição é Bolsonaro’. Os outros desdenhavam”, lembrou. “Era como se esperassem a salvação. Como se viesse o Exército, os confederados, o que seja, para botar tudo na ordem, só por causa dos dez minutos de TV do Geraldo. E qual foi o problema de Geraldo? Falta de estratégia, de identidade. Foi direto no Bolsonaro, uma tolice. Tinha de ir ( atacar ) no PT.”
Admitir que a vitória de Bolsonaro passou uma rasteira nos maiores entendidos em política no país não abala o dogma de Barros sobre a ciência eleitoral. Seu mantra é uma frase sintética como slogan publicitário desde que o mundo é mundo: “Só existem dois jeitos de fazer campanha, ou você é situação ou oposição. O resto não existe”.
Ele referenda a avaliação geral de que Bolsonaro foi o mais competente em explorar o antipetismo dominante e foi “um fenômeno” no uso das redes sociais, principalmente do WhatsApp. Mas combate com fervor duas conclusões que têm sido apresentadas como “novidades” da eleição de 2018 — e que relativizam a relevância do marketing político tradicional.
“Você acha que Bolsonaro não queria tempo de TV? Ele não conseguiu, é diferente. E a facada deu isso a ele: oito minutos no Jornal Nacional só no primeiro dia. Isso de dizer que não teve marketing profissional é só marketing dele. Quer vender que fez uma campanha simples, ‘autêntica’. Marketing político virou sinônimo de embuste. Vai lá na casa de Paulo Marinho ver quantos garotos ficavam o dia inteiro nas redes. Um negócio sofisticado, que ninguém soube fazer.”
O segundo ponto é um suposto barateamento das campanhas. Sem revelar números, Barros garante que os marqueteiros continuam ganhando muito bem, obrigado. “Todos os partidos ficaram devendo ( nas eleições ). Essa onda de ‘ah, foi mais barato’. Não foi, não. É que antes as campanhas custavam mais do que valiam. Virava uma grande oportunidade para uma montanha de gente ganhar dinheiro. Houve as restrições legais, não pode bandeirinha, não pode isso, não pode aquilo, diminuiu ( o custo ). Mas a quantidade de comerciais a fazer aumentou, com a internet. A diferença é que antes você tinha filmagens espetaculares, tomadas aéreas, dois helicópteros, a era João Santana. Isso não tem mais.”
João Santana virou o mais famoso marqueteiro baiano da linhagem iniciada por Barros. Depois de fazer ACM governador eleito, ele conduziu a primeira campanha presidencial de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, abrindo caminho na política nacional para conterrâneos como Nizan Guanaes e Duda Mendonça.
O uso da publicidade para lavar dinheiro trouxe problemas na Justiça para muitos deles. Barros passou à margem. Em 2005, enquanto Duda Mendonça admitia ter recebido ilegalmente do PT no exterior, Barros era um dos alvos de um pedido de CPI na Assembleia Legislativa da Bahia para apurar pagamentos suspeitos de R$ 48 milhões da empresa de turismo do governo baiano para uma empresa sua. Foi acusado de atuar por anos como testa de ferro de ACM. A CPI foi enterrada pela base aliada do governador carlista Paulo Souto.
Apanhado em meio à “montanha de gente ganhando dinheiro” em eleições, João Santana cumpre prisão domiciliar desde março de 2017 em sua mansão em Camaçari, perto de Salvador. Além de parentes, tem direito a receber a visita de 15 amigos inscritos numa lista entregue à Justiça. Está proibido de manter relações de trabalho, mas o assunto é inevitável. Barros não está na lista de visitantes, mas revela que Santana conta os dias para voltar às campanhas. Pela progressão da pena, estará liberado para retomar as atividades a partir de março de 2020.
“João Santana fica se contorcendo em casa, doido para que o prazo dele acabe, para voltar. E vai ser um dos mais requisitados, tenha certeza”, contou. “Dez entre dez que falaram com ele contam que disse estar se sentindo como um jogador com a perna quebrada. Doido para voltar.”
Quando voltar, Santana provavelmente encontrará clientes em desespero. A vitória de Bolsonaro e, principalmente, as arrancadas de outsiders que se ligaram a ele, como os governadores eleitos Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e Romeu Zema (Minas Gerais), abalaram convicções dos políticos. No último mês, a ficha começou a cair para prefeitos que pretendem se reeleger daqui a dois anos. Além do choro de quem perdeu mandato no vendaval de 2018 e dos pedidos para entender o que houve, marqueteiros têm sido solicitados a apresentar soluções preventivas para quem ainda está no poder.
Barros resumiu a aflição irrestrita:
“O político tradicional vive hoje uma situação de pânico. Sabe que pode ser atravessado por uma novidade em dois, três dias. Isso não é uma coisa só do Brasil. No mundo todo está assim, o pessoal temendo o estrago que um fato bem trabalhado na rede pode causar. Qualquer fato, qualquer coisa do dia a dia, um vídeo, pode desencadear um movimento, pode virar uma eleição”, avaliou. “A angústia de quem é prefeito, de quem quer se reeleger, é essa. Agora, você conversa com um político e ele diz ‘Quero uma campanha igual à de Bolsonaro’. Não é assim que funciona. Eleição municipal é outra história, é eleição de síndico. Quem fizer agora previsão para 2020 está sendo soberbo, irresponsável ou os dois.”
Barros não atuava na linha de frente de uma campanha desde a eleição de Agnelo Queiroz (PT) ao governo do Distrito Federal, em 2010. Neste ano, ajudou a eleger dois governadores antípodas: Ratinho Jr. (PSD), com discurso bolsonarista e oposicionista, no Paraná; e o reeleito Paulo Câmara (PSB), em Pernambuco, uma candidatura lulista.
Nos últimos anos, ele expandiu os negócios da Propeg, mas nunca deixou de lado a política. É dos mais influentes conselheiros de ACM Neto, herdeiro político de seu velho amigo. Foi o prefeito de Salvador quem aproximou Barros do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), hoje em campanha pela reeleição e, também por isso, um dos destinatários da versão brasileira de House of cards feita pelo publicitário. Para Fernando Barros, qualquer que seja o presidente da Câmara, Bolsonaro terá de rever o tom antipolítica com que ganhou a eleição. “Sem o Congresso, não faz nada. Ele sabe disso. Dentro do Congresso, ele ( Bolsonaro ) vai ter de dizer ‘Sou desta Casa, esta Casa é soberana, respeito etc.’. Se ele estiver bem aprovado na rua, os caras vão junto.”
Se o faro político dos líderes partidários brasileiros se mostrou falho em 2018, Barros identifica outros derrotados. “As pesquisas estão superadas. Tem alguma coisa faltando aí. Enquanto não colocar a informação vinda daqui ( aponta o celular ), das redes, para fazer um blend ( mistura ) com a informação que é buscada na rua, você não terá um resultado mais aproximado do que está acontecendo. Aí na eleição você via todo dia a mulher do Ibope, o cara do Datafolha na TV tentando explicar e não conseguindo explicar nada.”