Os desafios de Bolsonaro no Nordeste
Era um agradável dia de sol em Pesqueira, no agreste pernambucano. Até por isso, a professora Bernardina Araújo imaginou que fosse ironia o agradecimento de uma aluna por ter uma aula do Instituto Federal de Pernambuco reposta num sábado. Mas ela logo entendeu. “Se não fosse isso, eu estaria colhendo palma no roçado de meu pai”, justificou a então estudante de Licenciatura em Física.
A região Nordeste tem peculiaridades como essa e grandes desafios em comum, apesar de sua diversidade e de seus contrastes. Suas questões fundamentais atualmente, como violência, desemprego, saúde, educação e renda, vão além de seu potencial e para sua resolução dependem diretamente do governo federal.
Mas essa não é uma parte do Brasil que tenha se aproximado do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Os governadores (re)eleitos que apoiaram seu adversário, o candidato derrotado Fernando Haddad (PT), estão todos no Nordeste, que foi a única região onde o petista venceu em todos os Estados, com votações que variaram de 59,9% a 77% no segundo turno das eleições de outubro.
Diante de incertezas políticas, a BBC News Brasil conversou com especialistas para mostrar como a União pode ajudar os nove Estados nordestinos a superar suas principais dificuldades.
Investimentos do governo federal em milhares de obras – hoje paradas por diferentes motivos – têm a capacidade de gerar empregos, alimentar a cadeia produtiva em diversos níveis, dar retorno em tributos e movimentar a economia.
A Confederação Nacional de Municípios, com dados de abril de 2017 da Caixa Econômica Federal, informa que o Nordeste, com 32,9%, é a região com mais obras interrompidas ou não iniciadas. Na Bahia, havia 1.525 das 6.734 operações nordestinas com essas características. Já foram executados R$ 1,4 bilhão pela União, porém faltavam R$ 1 bilhão para obras iniciadas e R$ 1,7 bilhão para as que ainda não tinham saído do papel.
O esquema de corrupção apontado pela Operação Lava Jato tornou-se uma trava para a conclusão da Refinaria Abreu e Lima, que funciona parcialmente desde seu início, em 2014, em Ipojuca, na Grande Recife. Estaleiros que prestam serviços à Petrobras sentiram o forte impacto. Aproximadamente 20.000 metalúrgicos acabaram demitidos, calcula o presidente do sindicato estadual, Henrique Gomes.
“Fecharam umas 20 empresas ligadas ao setor naval. O Estaleiro Atlântico Sul deixou de fazer sete navios. O governo federal alegou que era mais barato encomendá-los na China. Ele precisa fazer novos investimentos na Petrobras e comprar produtos com mão de obra e maquinaria brasileira. Os bancos têm que financiar créditos para manterem os estaleiros existindo”, afirma Gomes.
O barbeiro André Felipe da Silva, de 36 anos, que complementa a renda como pedreiro, afastou-se do trabalho regular e gastou mais de R$ 10.500 em cursos para a indústria naval. Porém, só conseguiu vagas temporárias em funções com menos qualificação do que ele tinha. “Na refinaria, me colocaram na construção civil, para cavar buraco. Muita gente formada em faculdade estava lá comigo, na lama, sob chuva. Todo mundo foi naquela corrida do ouro”, lamenta.
“Eu ia a feiras de tecnologia, estava muito estimulado a continuar estudando, com perspectiva de vida melhor. Tenho três filhos, não posso investir dinheiro assim em vão”, diz Silva, que ainda sonha com a área naval. “Mas só escuto falar que estão demitindo”, desanima-se.
“No Nordeste, o número de desempregados cresceu 68,6% entre junho de 2014 e junho de 2018. A taxa de desocupação passou de 8,7% para 14,8%, um aumento de 6,1 pontos percentuais”, detalha o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.
Na metade deste ano, dos 4,8 milhões de brasileiros sem ocupação que já não buscavam emprego, 2,9 milhões, 60% portanto, estavam em cidades nordestinas. “Em momentos de crise, economias mais dinâmicas como as do Sul e do Sudeste conseguem absorver o desempregado que opte por abrir um negócio ou se virar com algum bico. No Nordeste, o número de posições precárias é muito mais elevado e costuma ser a única opção de emprego para muitas pessoas. Quando o trabalhador perde essa posição, não há nada mais que ele possa fazer para se recolocar, e por isso vira desalentado mais facilmente”, explica Donato.
“Enquanto na média nacional a renda per capita caiu 0,7%, no Nordeste a queda foi de 5,1% entre junho de 2014 e junho de 2018”, afirma o consultor. De 2016 para 2017, a pobreza extrema aumentou 10,8% na região, que abrigava 55% dos brasileiros nesta situação no ano passado.
O emprego de 13 anos aflige o porteiro José (nome fictício), que, há dois, sofre com as inevitáveis lembranças do pai, que trabalhou durante mais de três décadas no mesmo condomínio e também na função dele. “É um horror vir todo dia. Tudo isso aqui me lembra ele. Desde criança, eu vinha para cá. A gente era muito próximo, parecia irmão na verdade”, afirma, pouco antes de começar a chorar.
Seu pai, de 62 anos, foi assassinado a facadas na casa onde morava sozinho, num bairro popular de Salvador. Foram roubados TV, celular, dinheiro, roupas e perfumes. Antes, acompanhado de um homem, havia comprado comida e cerveja num mercadinho próximo. Ambos inevitavelmente passaram por algumas das duas câmeras de vigilância pública e 12 de residências e comércio da sua rua. Uma testemunha ajudou a produzir um retrato falado. Havia indícios e suspeito. “Um crime muito fácil de se resolver”, avalia José. Entretanto, as investigações não andaram.
É um dos casos que elevaram em 97,8% a taxa oficial de homicídios na Bahia entre 2006 e 2016, um crescimento sete vezes maior do que o registrado no Brasil, na mesma época, conforme mostra o Anuário Especial de 2018 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Não estão aí incluídas as mortes violentas com causa indeterminada, que deram ao Estado o maior índice do país no ano retrasado: 9,7 por 100 mil habitantes.
A publicação assinala que a Polícia Civil da Bahia contesta os dados e aponta subnotificação. Também podem aumentar essas estatísticas as pessoas desaparecidas, cuja taxa por 100 mil habitantes aumentou 519,6%, nos últimos três anos. Só em 2017, sumiram 2.068. E 668 foram mortos pelas polícias baianas, “o que implica um crescimento de 137% nos últimos três anos”, aponta o Anuário.
Contribuição do erário não faltou. Aplicaram-se R$ 4,1 bilhões em segurança pública na Bahia, somente no ano passado.
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea), Daniel Cerqueira constata que todo o Nordeste vem enfrentando sérias dificuldades nessa área. “O único Estado que melhorou nesse aspecto foi a Paraíba. De terceiro mais violento, passou a 14º. A Paraíba adotou, por exemplo, a repressão qualificada e a prevenção social para evitar que jovens fossem cooptados pelo crime”, atesta.
No país inteiro, somente a Paraíba reduziu a quantidade de mortes violentas intencionais há seis anos, mostra o Anuário. Em 2011, o Estado iniciou um programa inspirado no bem-sucedido “Pacto pela Vida” do seu vizinho ao sul, Pernambuco. “Mas o de Pernambuco se perdeu nos últimos anos, e a situação piorou”, ressalva Cerqueira.
Agora em quarto lugar, Pernambuco é um dos seis Estados nordestinos entre os nove mais violentos do país, de acordo com o Anuário. O Rio Grande do Norte aparece em primeiro, com o Ceará em terceiro, Alagoas em quinto, Sergipe em sétimo e a Bahia em nono.
Cerqueira acredita que o governo federal pode auxiliar de quatro maneiras os Estados: induzir políticas de segurança; financiá-las; investir em capacitação; e ordenar o sistema carcerário.
“É preciso um controle responsável da arma de fogo, uma polícia baseada em provas, com método científico, gestão eficiente, operações de inteligência, integração, diagnóstico, monitoramento e avaliação de ações. Não dá espetáculo, mas é isso que vai conquistar a paz”, opina o especialista em Economia do Crime e Segurança Pública.
Ele rejeita propostas de armamento da população civil e de autorização para policiais matarem suspeitos. “Vão na direção contrária da história dos países que diminuíram a violência. Não foi com mais armas e endurecimento punitivo”, argumenta.
A maior parte da verba de segurança pública, relata Cerqueira, destina-se a gastos com pessoal e aposentadorias, por isso sobra pouco para investimentos. “A União deve ajudar, pois os Estados estão sufocados financeiramente”, alega.
Ele defende a qualificação não apenas dos policiais com padrões e protocolos, mas também de seus gestores. “Algo quase inexistente no país”, pontua.
Na sua avaliação, os problemas carcerários carecem de projetos, financiamento e método. “O Brasil tem 79 facções nascidas em prisões. Há uma guerra em presídios do Norte e do Nordeste. Grupos brigam para manter domínio em logística e mercados de drogas. É preciso um trabalho de inteligência nas fronteiras, combate à lavagem de dinheiro”, analisa.
Médica e pesquisadora da Fiocruz de Pernambuco, Tereza Lyra chama a atenção para a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) em relação às principais demandas da população. Destaca a necessidade de mais investimentos do governo federal para manter o que ela considera conquistas realizadas ao longo dos anos.
Seu temor é que a limitação de recursos cause retrocessos e comprometa os atendimentos. Ela defende o aumento da cobertura e da capilaridade, e para isso enumera os serviços.
“A imunização (com vacinas) é exemplar e impactou na queda da mortalidade. O Programa Saúde da Família tem sido essencial para a população mais vulnerável. O modelo brasileiro para HIV e Aids tornou-se espelho para o mundo. O SUS trata de questões de altíssima complexidade, como transplantes, reimplantes, quimioterapia, radioterapia, hemodiálise, medicamentos. O Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) salva vidas todos os dias. É preciso responder também aos resultados da violência urbana. Grande porcentagem dos atendimentos emergenciais se devem ao aumento do número de acidentes de moto, que têm custo de internação e reabilitação”, afirma Tereza Lyra.
Doutora em Saúde Coletiva, ela mantém o alerta para os perigos de dengue, chikungunya e zika no Nordeste devido à ligação dos vetores de transmissão com a falta de saneamento básico. Casos de vigilância epidemiológica como esses, com mobilização de recursos humanos e materiais para investigações e tratamento, assim como os recentes de febre amarela, requerem um SUS capacitado, ressalta a pesquisadora.
E, ela acrescenta, se as doenças infecciosas têm sido mais controladas, o envelhecimento populacional exige o desenvolvimento de outras linhas de cuidado, como assistência a enfermidades degenerativas e cardíacas.
Se o Maranhão amarga alguns dos piores indicadores educacionais do país, os do quase vizinho Ceará situam-se entre os mais altos.
“A grande questão para a educação no Nordeste é um problema grave de desigualdade na distribuição de recursos. Por haver diversos municípios muito pobres, isso naturalmente se reflete tanto no nível socioeconômico dos alunos quanto no valor gasto por esses municípios em educação”, diagnostica a professora Tassia Cruz, da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas.
Doutora em Economia da Educação pela Universidade Stanford, na Califórnia, ela destaca o papel essencial do governo federal para reduzir essas desigualdades porque ele coordena a distribuição de verba de estados e municípios para a educação, complementa o valor por aluno onde as cifras estão abaixo do patamar mínimo nacional e influencia políticas educacionais com outros aportes financeiros.
Uma iniciativa que vem frutificando, há uma década, em todo o Nordeste é a Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica. “Um modelo que deu certo. É extremamente eficiente e atende a populações muito pobres. Nas avaliações, nossos números estão bem próximos aos dos países que são referência”, orgulha-se a reitora do Instituto Federal de Pernambuco, Anália Ribeiro.
Nos nove Estados da região, encontram-se 11 institutos federais, o equivalente a 26,8% da rede. Em 2017, seus quase 310.000 alunos matriculados representavam 30% do total.
Em áreas com histórico de emigração, as pessoas não precisam mais se deslocar para outras cidades em busca de ensino médio, técnico e superior. “Jovens e adultos acabam tendo empregabilidade quase imediata. E, em qualquer instituto federal, temos várias histórias de experiências transformadoras para alunos e suas famílias”, testemunha a reitora.
Também são formados professores que elevarão o nível da educação básica, ela ressalta. O corpo docente, acrescenta, tem plano de carreira e remuneração que permite um único emprego, qualidade de vida e tempo para estudar, com incentivo a mestrado e doutorado.
Tudo fundamenta-se no dinheiro oriundo do governo federal. “Educação de qualidade depende de aporte financeiro compatível. Tem sido uma preocupação manter o que temos, tanto do custeio – como salário, energia elétrica, limpeza, segurança, material – quanto de investimento em formação continuada de professores, visitas técnicas ao campo, a indústrias e a usinas, infraestrutura, laboratórios, biblioteca com acervo para estudo e de cultura geral, atividades esportivas e culturais”, descreve Anália Ribeiro.
Além da imersão da escolaridade no Brasil profundo, ela sublinha o acesso aberto a minorias e grupos étnicos, como quilombolas e indígenas. Para isso, estabeleceram-se cotas no processo seletivo sem nota de corte, isenção de taxa de matrícula, programas preparatórios com conteúdos das provas, minimização de documentos exigidos, articulação com a comunidade e bolsas.
A experiência acadêmica e prática circula em redes de pesquisa e caravanas com ações formativas a partir das necessidades locais. “Os professores se debruçam sobre problemas do lugar, unem-se ao setor produtivo para desenvolver a economia e gerar inovação tecnológica. São jovens pobres do interior exportando conhecimento, ao produzir ciência e propriedade intelectual, com inúmeros registros de patentes e software”, valoriza a reitora.
Exemplos disso são os primos Helyson Lucas, 22, e Myllena Crystina, 19, premiados internacionalmente por trabalhos científicos e convertidos nos maiores orgulhos do distrito de Ema, que reúne cerca de 300 habitantes no Ceará. Eles sempre estudaram em instituições de ensino gratuito.
“Quando chega a um evento como a maior feira de ciências do mundo, de que participei duas vezes, você lembra de onde veio e não acredita no que está vivendo naquele momento, parece sonho, algo totalmente diferente da realidade. Ao mesmo tempo, você percebe o quanto se dedicou para chegar até ali”, relata Myllena, que virou personagem de um documentário em Hollywood sobre jovens pesquisadores.
Três bolsas de estudos nos Estados Unidos lhe foram oferecidas. Com uma vaquinha, ela tenta tirar visto de estudante e pagar as passagens aéreas.
Myllena e Helyson, seu coorientador no Instituto Federal do Ceará, estudaram no mesmo colégio estadual. “Foi de grande importância para uma série de pensamentos e objetivos. Ele não prioriza os vestibulares, possibilita que o aluno desenvolva pensamento científico, político e social. De uma forma que posso agir e trabalhar essas diversas áreas durante o período de Ensino Médio”, diz o técnico em Meio Ambiente e graduando em Química pela Universidade Estadual do Ceará.
Para reduzir as desigualdades entre o Nordeste e outras regiões do país, é necessário elevar sua produtividade e sua renda per capita, propõe Luiz Alberto Esteves, economista-chefe do Banco do Nordeste. Crescimento a taxas maiores por longo prazo, ele diz, depende de investimento para acumular capital físico e humano, inovação, infraestrutura e instituições.
O grande trunfo nordestino, na sua opinião, é apostar em energia eólica e solar, deixando para trás o flagelo da carência de água em larga área do território. “Conseguimos vislumbrar uma política para recursos abundantes, e não um recurso escasso, como tem acontecido”, afirma, comparando essa oportunidade à iniciativa da produção de soja que conduziu o Centro-Oeste a um nível econômico superior.
A Associação Brasileira de Energia Eólica divulgou que a contribuição dos ventos chega a representar mais de 70% da produção energética no Nordeste. A região, historicamente importadora de energia, agora tem se tornado autossuficiente e até exporta. Rio Grande do Norte, com 146 usinas, Bahia, com 133, e Ceará, com 80, encabeçam a lista de maiores produtores de energia eólica do país.
Para Esteves, o atraso regional em alguns setores significa grande potencial de avanço. “É trabalhoso, mas dá para tirar rapidamente essa diferença. Até com pequenas coisas do dia a dia, treinamento, melhores práticas, coisas triviais, é barato e acessível a uma grande quantidade de pequenas e médias empresas”, observa.
Ele considera urgente recuperar a capacidade de investimentos das administrações públicas. Ao contrário do Sudeste, o Nordeste possui movimentação financeira inferior ao seu Produto Interno Bruto, o que resulta em racionamento do crédito, explica o economista.
A isso se junta uma dificuldade institucional. “Em grande parte do Nordeste, não se consegue empreender por falta de garantia para obter financiamento. A estrutura de propriedade de terras é um entrave, pois a falta de registros e escrituras incide numa insegurança jurídica que encarece o negócio”, conta Esteves.
Outro grande problema que ele assinala é de infraestrutura. “Para solucioná-lo, precisa-se de investimentos públicos e privados em obras que dialogam entre si. Mas o Brasil possui pouca capacidade de gerar projetos de qualidade”, avalia.
Sua perspectiva, no entanto, guarda certo otimismo. “Entre 2003 e 2017, aplicou-se, em média anual, R$ 1,67 bilhão em infraestrutura na região. Só neste ano, já foram R$ 12 bilhões, e a meta é de R$ 15 bilhões. Isso é inédito. Falamos em outros termos, será outro Nordeste”, vaticina, se referindo, por exemplo, a empreendimentos em energias renováveis, saneamento e recursos hídricos, logística e transportes.
Da BBC