Porto Alegre volta a homenagear ditador com nome de avenida
Os funcionários da prefeitura começaram pelo sentido capital-interior. Estacionaram o caminhão, bloquearam uma das três pistas e se puseram a trabalhar apressadamente. A trégua dada pela chuva permitiu o último ato de uma disputa que se arrastava havia anos: a substituição das placas que nomeiam a principal via de acesso a Porto Alegre. Naquela tarde de terça-feira, a avenida da Legalidade e da Democracia retornava à nomenclatura anterior, avenida Presidente Castello Branco.
Os operários usaram um braço hidráulico acoplado ao caminhão para desinstalar uma das placas de aço galvanizado. Com 34 quilos, 2 metros de largura e 1 de altura, a chapa tinha uma película azul que, em letras brancas, identificava o logradouro. Fabricada do zero, cada placa custa 1 001,20 reais ao município. Mas se a estrutura for reciclada – como era o caso – o valor cai para 250 reais (paga-se apenas o adesivo). Os trabalhadores removeram a placa antiga e a substituíram pela nova, que fica a cerca de 4 metros do solo.
Enquanto se preparavam para repetir a operação no sentido inverso da avenida, a vereadora Mônica Leal, do PP, e três oficiais aposentados do Exército se reuniram embaixo da chapa recém-instalada. Os quatro, sorridentes e abraçados, posaram para uma foto que acabou parando no Facebook. A postagem incluía um trecho do slogan que Jair Bolsonaro adotou durante a última campanha eleitoral: “Brasil acima de tudo.” Homenageado na placa, o general cearense Humberto de Alencar Castello Branco assumiu a Presidência da República logo após o golpe de 1964, que ajudou a articular. Ao longo de seu governo, encerrado em março de 1967, aboliu o pluripartidarismo e cassou parlamentares da oposição.
Um dos oficiais que posou para a foto do Facebook é o coronel e advogado Hegel Pereira Britto. Ele representou a bancada municipal do PP num recurso que pedia à Justiça a anulação da lei responsável por transformar a avenida Castello Branco em avenida da Legalidade e da Democracia. O processo de Britto apontava três problemas na legislação. Primeiro: a existência de um largo da Legalidade em Porto Alegre. O espaço, minúsculo, se localiza numa praça em frente ao Palácio Piratini, sede do governo estadual. O segundo problema dizia respeito ao fato de a avenida ter sido renomeada sem que se consultassem os moradores da área. Por fim, o coronel refutou o quórum da sessão que, em 2014, aprovou a mudança por 21 votos a 5. Alegava que, para se rebatizar um logradouro na capital gaúcha, seria preciso o aval de pelo menos 24 dos 36 vereadores.
Em abril passado, o Tribunal de Justiça acatou o recurso e determinou que a avenida assumisse novamente o nome do ditador. “Eu não acreditava que o Judiciário pudesse nos dar ganho de causa. Mas, graças a Deus, as instituições ainda funcionam neste país. Sinto-me honrado em resgatar a memória de um herói nacional”, festejou Britto. O Ministério Público do estado tentou reverter a determinação, mas não teve sucesso. Assim, em setembro, lá estavam os funcionários da prefeitura trocando as placas.
O deputado Pedro Ruas, do PSOL, se diz decepcionado com a Justiça. “Isso é a prova do retrocesso que assombra o Brasil”, desabafou em seu gabinete na Assembleia Legislativa. Foi ele quem apresentou, em 2011, como vereador, o projeto de lei que deletava Castello Branco e criava a avenida da Legalidade para marcar o cinquentenário de um episódio muito conhecido no Rio Grande do Sul. Tão logo o presidente Jânio Quadros renunciou, em agosto de 1961, as Forças Armadas quiseram impedir que o vice, João Goulart, ascendesse. Cunhado de Jango, o governador gaúcho Leonel Brizola se opôs à quartelada e liderou a resistência que exigia a posse do parente, como mandava a lei.
Nem a prefeitura, nem a Câmara guardam documentos que reconstituem a história da avenida. Segundo Ruas, a via adotou o nome do general em 1973 por ordem dos militares. Eles avaliavam que Porto Alegre não honrava suficientemente o regime. O parlamentar discorda do coronel Britto em relação à necessidade de consultar moradores para rebatizar a avenida. Oficialmente, ninguém vive nela – seus 3 quilômetros de extensão reservam-se ao tráfego de alta velocidade. À esquerda do logradouro, há o muro do metrô de superfície. E à direita, fábricas e armazéns.
Rejeitado em 2011, o projeto do vereador voltou à carga três anos depois, com o acréscimo da palavra “democracia”. Dessa vez, a Câmara o aprovou. O então prefeito, José Fortunati, se eximiu de sancioná-lo ou mesmo vetá-lo, cabendo ao Legislativo oficializar a nova denominação. Revisionismo semelhante se deu tanto em outras cidades brasileiras, como São Paulo, quanto em outros países, a exemplo da Alemanha, do Chile e da Argentina. Recentemente, em Madri, os nomes de 49 ruas que homenageavam pessoas ligadas à Guerra Civil Espanhola (1936-39) ou ao governo autoritário de Francisco Franco (1936-75) foram substituídos pelas identificações anteriores ou por tributos a mulheres ilustres, instituições de ensino e políticos.
Um levantamento dos Correios em 367 municípios do Brasil, incluindo todas as capitais, demonstra que pelo menos 365 logradouros reverenciam Castello Branco. Duzentos e trinta e sete celebram Artur da Costa e Silva, o segundo presidente da ditadura, e 88 cultuam o terceiro, Emílio Garrastazu Médici.
A Rádio Gaúcha, emissora de maior audiência no estado, decidiu continuar se referindo à via como avenida da Legalidade e da Democracia até que ocorresse a substituição das placas. “Durante um mês, muitos ouvintes me atacaram no Twitter. Diziam que sou comunista ou do PSOL”, lembra a repórter de trânsito Marina Pagno.
Nove dias após a troca, a jornalista noticiou que uma das placas amanhecera pichada. Na semana seguinte, outro ato de vandalismo cobriu parcialmente um dos letreiros. O substantivo “vergonha” aparecia em cima do nome de Castello Branco.
Da Piauí.