A lambança do STF no julgamento sobre o indulto
Em dois dias, o Supremo Tribunal Federal praticamente terminou de julgar o decreto de indulto de 2017. Votos muitos longos atrasaram o resultado. Terminou, provisoriamente, com maioria absoluta já formada, faltando dizer se a cautelar da ministra Carmen Lúcia – os acréscimos do ministro Roberto Barroso – se sustentam ou não. Houve um pedido de vista do ministro Fux. E, ao final, outro pedido de “vista institucional”, feito pelo presidente.
Com o devido respeito que a Corte merece, é bizarro discutir se uma cautelar, cujo mérito foi derrotado, cai ou não cai. Por qual a razão, motivo ou circunstância a cautelar se manteria, se o decreto foi considerado constitucional? Aliás, supondo, ad argumentandum tantum, que a cautelar se mantenha, cabe a pergunta: até quando? Até o dia seguinte? Até o ano que vem? Mas, se o decreto é constitucional e a cautelar disse que era inconstitucional, por qual razão a cautelar se manteria? É como se alguém estivesse preso por prisão cautelar e o Plenário julgasse procedente o pedido de habeas corpus… e ainda assim a prisão cautelar se mantivesse.
No mais, embora tardiamente — afinal, a liminar da ministra Carmen deveria ter sido apreciada pelo Plenário no prazo fixado na Lei 9.868 —, o STF, com seus seis votos já bem demarcados pela improcedência da ADI, houve-se bem, explicitando os limites do indulto e o caráter soberano, nessa matéria, que tem o presidente da República. Certo ou errado, it is the law, como diria o médico em House of Cards ao se negar a furar a fila de transplantes de fígado. Claro que o presidente não pode tudo; há limites materiais constantes na própria Constituição. Mas o STF não pode se substituir ao presidente.
Além dessa lição acerca dos limites do Judiciário, duas outras lições podem ser tiradas. Primeiro, a urgente necessidade de dar um basta à concessão de cautelares sem a imediata submissão ao Plenário. É ilegal e inconstitucional que cautelares se mantenham de forma monocrática.
A segunda lição é a de como é bizarro tentar fazer pressão sobre o Supremo Tribunal a partir de dados capciosos. Campanhas por vídeo tipo “o indulto será o caos!”, “o indulto é o dilúvio jurídico!”, “o indulto acabará com a Lava-Jato!” e quejandos, não fazem bem à democracia. Nesse sentido, o ministro Gilmar pegou bem o bicho pelas aspas, em seu voto:
“Contudo, há questões importantes que são ignoradas ou distorcidas. Primeiramente, a tabela divulgada [por setores do MP] considera o tempo de pena que estaria cumprido ao final deste ano de 2018, caso em que poderiam ser impactados por eventual novo decreto de indulto natalino a ser concedido neste ano, supondo que o presidente fizesse um decalque deste decreto anterior. Presume-se, em exercício de futurologia, a aplicação de indulto ainda inexistente com critérios ainda não definidos a condenados que ainda não cumpriram os estimados lapsos temporais das penas mencionadas. Portanto, os termos do indulto de 2017, discutidos neste momento, não têm qualquer impacto, nos termos divulgados. Por outro lado, […] que dos 21 condenados elencados 14 são delatores que foram beneficiados, […] que já estavam livres do cárcere […] em acordos de colaboração premiada […], ademais, percebe-se, que grande maioria já teria cumprido ¼, ou até 1/3 da pena, de modo que o indulto seria aplicável mesmo se consideradas as frações de decretos anteriores, sugeridos pelo relator em seu voto”.
Enfim, a questão que resta é: qual é o dia em que procuradores como Dallagnol entenderão que o Direito se aplica mediante o devido processo legal, e que não se combate o crime arranhando direitos fundamentais? E que não se deve pressionar o STF desse modo? Será tão difícil entender isso? Aliás, procuradores não deveriam falar sobre processos em que não são protagonistas. Parece que a Lomin veda isso, pois não? Veja-se a frase de efeito de Dallagnol: a decisão do STF é a maior da história da “lava jato”. Ou indulto será a ruína da “lava jato” (o voto do ministro Gilmar enfrentou bem isso). E o voto do ministro Alexandre de Morais, também.
Tem gente que recorre à religião até mesmo quando se fala de Direito. Para facilitar a compreensão daqueles que se recusam a compreender, também o farei. Para ver se me entendem. Cai como uma luva.
Em Gênesis, Abraão discute com Deus o destino de Sodoma. Quantos justos lá haveriam? Cinquenta? Vinte? Dez? Quando se percebe que não havia nem mesmo cinco justos em Sodoma, Abraão, em vez de pedir perdão, com os olhos voltados aos céus, pergunta ao Pai: “Não agirá com justiça o Juiz de toda a Terra?”
Amós Oz — escritor israelense, fundador de um movimento pacifista em favor da solução de dois Estados — faz uma leitura muito bonita dessa passagem e do significado subjacente ao “atrevimento” de Abraão:
“Em outras palavras: você é realmente o juiz de toda a Terra, mas não está acima da lei. Você é realmente o legislador, mas não está acima da lei. Você é o senhor de todo o universo, mas não está acima da lei.”
Oz segue: “Não sabemos de nenhum raio que tenha fulminado Abraão como castigo por insolência ou ofensa aos céus”. Por que Deus não o fulminou? Simples: porque ninguém está acima da lei.
Quantos injustos serão beneficiados pelo indulto? Cinquenta? Dez? Vinte e cinco? Nenhum? Todos? Não sei. E não importa. Porque não é essa a questão. O Direito existe justamente para substituir esse tipo de raciocínio que dá margem a todo tipo de subjetivismo, que dá margem ao império dos homens substituindo-se ao império da lei.
Repito: o presidente não pode tudo, mas seu limite não é o STF enquanto STF; seu limite é o mesmo da corte: o Direito. O Direito que interdita.
Você é realmente o ministro, o procurador, o agente público… Ora, é preciso ter claro que todos têm uma função constitucional essencial à democracia e suas atribuições são parte daquilo que nos faz democratas.
Mas você (procurador, juiz, ministro, presidente, deputado), não está acima da lei. Ninguém está. Portanto, vamos obedecer a Constituição. E não ficar de nariz torcido, reclamando pelas redes sociais. E nem inventando números. Goste-se ou não, o Direito continua.
A “lava jato” continua. O indulto não é a ruína. O Sol nascerá amanhã. E os alarmistas que fiquem tranquilos: Deus prometeu que não mandaria outro dilúvio! E palavra de Deus é lei.
Do ConJur