Ex-metalúrgico e ator cria editora em Heliópolis
Quando Paulo César Marciano, já casado e com filho, contou ao pai que estava largando uma carreira estabelecida na área de gerenciamento de risco para trabalhar com cultura, a desaprovação foi instantânea. Ele tinha criado os meninos para seguir sua profissão, de metalúrgico, e não a do tio, ator torturado na ditadura militar. Tinha o medo de que tudo se repetisse, e tinha também a ideia de que as pessoas que trabalhavam com arte eram desocupadas.
Mas a decisão estava tomada, as reservas garantidas e a vontade de escrever seu livro mais viva do que nunca. Não foi fácil, porém, bancar o sonho e transformar seu hobby em profissão. Ele estava com 30 anos. “Fiquei meio perdido no começo.” E lá foi ele estudar Letras na Universidade São Marcos, fazer formação de técnico de ator e escrever Melissa.
“Quando saí desse sistema, fui fazer coisas que eu não fazia há tempos. E fui aproveitando todas as ferramentas que eu tinha, e que eram consideradas hobby, para tentar ganhar dinheiro e me profissionalizar. Voltei para o teatro, fui para o cinema. Fui me enquadrando. E me voltei para o social, trabalhando com leis de fomento. Desde 2009, eu vivo assim: ora estou ministrando oficina de literatura ou de cinema, ora estou numa peça de teatro ou fazendo filmes. Eu vivo da arte”, resume, e diz que hoje é muito mais feliz do que antes. “O tempo de viver é agora.”
PC tem mais motivos para estar contente. Recentemente, ele teve um projeto selecionado pelo edital Rumos Itaú Cultural que viabilizou, agora, a inauguração da Editora e Gráfica Heliópolis. A ideia é editar e imprimir, de forma colaborativa e como em uma cooperativa, livros de autores do bairro.
E aí voltamos à história do romance de PC, que ficou na gaveta por 10 anos até sua editora sair do papel. Nesse período, ele conseguiu contato numa editora, apresentou seu livro e a negociação começou e parou em 2015. PC até achou que tinham se esquecido dele, mas o editor reapareceu. Muita coisa, porém, tinha acontecido nesse um ano e meio de silêncio. “Foi uma fase em que eu saí da minha tranquilidade e me revoltei muito”, conta. Ele começou a fazer uma pesquisa informal para descobrir se ele estava sozinho no barco, se era o único que escrevia em Heliópolis e o único que estava tentando lançar seu livro.
“Ouvi muitas histórias – de gente que vendeu o carro para fazer seu livro, de pessoas que tinham terminado até o casamento porque a mulher queria reformar a casa e ele queria publicar o livro, de escritores que tinham quatro, cinco obras na gaveta. Só histórias tristes”, conta.
Isso tudo mexeu muito com ele e a ilusão de que uma editora o bancaria e distribuiria seu livro foi minando. “Eu me desiludi com o mercado e com tudo. Sempre que me perguntavam do meu livro eu me irritava. A ideia de publicá-lo já estava significando sofrimento para mim.”
Nessa época, ele seguia firme no teatro. Foi com um diretor, aliás, que aprendeu a escrever projetos. Dele, costumava ouvir que o artista não pode esperar as coisas acontecerem, que ele tem que saber se prover e usar as leis de incentivo. Escreveu vários projetos, ganhou alguns fomentos da Prefeitura e foi tocando a vida.
Quando a editora o chamou de novo para conversar, ela estava falando com esse PC “mais revoltado”, tocado pela história de outros que, como ele, gostariam de ver seus escritos publicados, e com um maior conhecimento sobre as leis de incentivo cultural. “Agradeci a oportunidade e fechei a porta. Pensei: temos que criar uma solução para que todas essas pessoas possam publicar seus livros. Não adianta resolver o problema só de um. Eu estaria sendo egoísta se publicasse meu livro por essa editora.” Melissa acaba de ser lançado ao lado de obras de outros 10 escritores de Heliópolis.
É nos fundos da biblioteca do CEU Heliópolis, bem ao lado do Instituto Baccarelli, projeto de formação de músicos, que funciona a recém-inaugurada Editora e Gráfica de Heliópolis. Idealizador do projeto, PC Marciano nasceu em São João Clímaco, bairro vizinho, há 40 anos, mas conhece bem a região. Estudou na Emef Campos Salles, conhecida escola de Heliópolis, também do lado da biblioteca, e mora ali desde que se casou. Profissionalmente, diz que sempre foi mais aceito lá do que fora. “Heliópolis é minha residência artística desde que me entendo por gente”, conta PC, que faz teatro desde os 7.
Foi em teatro, aliás, que ele pensou quando considerou se inscrever no Rumos. Estava discutindo o projeto com um amigo quando falou sobre a vontade de publicar livros. Na hora, ouviu que tinha que esquecer o teatro e pensar nisso, que o apoio era certo. “Aí mudou tudo. Não era nossa área e fomos estudar, fizemos cursos e descobrimos pessoas que conheciam as etapas de produção.” Montaram a equipe, fizeram o projeto e levaram R$ 99.981,05 para estruturar a editora e comprar os equipamentos para a gráfica.
A editora vai publicar, em princípio, 50 títulos. Mas se aparecerem outros livros e houver dinheiro, ok. Não há uma linha editorial definida de propósito. “Não queremos excluir ninguém”, diz PC. A ideia inicial era que o autor participasse de toda a etapa de produção de seu livro. Como alguns equipamentos requerem experiência, a ideia agora, para evitar desperdício de material, é que eles participem de alguma forma do processo.
“Ele vai ficar como assistente nas máquinas mais difíceis de serem operadas. Nas outras, ele acaba trabalhando no processo dele. E um escritor vai ajudando o outro. É como se fosse um sistema de cooperativa”.
Os autores pagam o preço de custo, que deve ficar entre R$ 4 e R$ 6 a unidade, muito abaixo do cobrado por gráficas que fazem esse tipo de serviço. E a sugestão é que eles vendam a preço popular também, para fazer a obra circular. O lucro é do próprio escritor, e o valor pago à editora é para comprar matéria-prima – para começar, eles conseguiram a doação de 30 mil folhas – e para a manutenção.
As tiragens iniciais são pequenas, de no máximo 50 exemplares. PC conta que durante sua pesquisa identificou que a venda e distribuição eram as que causavam maior frustração nos escritores. “Não quero que ele fique com 400 exemplares encalhados em casa. Se conseguir vender os 50, fazemos mais.” A editora vai dar uma mão nesse processo também, orientando sobre como vender pela internet e se promover. “Vamos fazer uma livraria de sovaco”, brinca. “Com o livro debaixo do braço, vamos de porta em porta, sem vergonha, e vamos montar tenda na rua, vamos ajudá-los a entrar em contato com estabelecimentos”, diz. A contrapartida do autor é promover oficinas e saraus, contar histórias, o que quiser – porque o projeto prevê essa movimentação literária no bairro. Autores já consagrados também serão convidados a conhecer o espaço e conversar com o público.
O romance escrito por PC Marciano há 10 anos é um dos 10 títulos que abrem o catálogo da Editora e Gráfica Heliópolis. É a história de uma garota que deixa o interior para morar com parentes no Rio, se apaixona pelo primo e, juntos, eles têm uma filha com síndrome de Rett. Há como pano de fundo uma intervenção militar, mortes, droga e prostituição. “Mas é um livro sobre amizade, sobre como um bom sentimento pode influenciar uma pessoa que passa por dramas da vida”, revela.
Paulo Rams, do Fundão do Ipiranga, que há anos adia o lançamento de seu primeiro livro, apresenta Meu Canto em 83 poemas. São textos sobre lutas, amores e espiritualidade.
Rubé Limeira, que fez uma rifa para pagar seu primeiro livro e com o que ganhou da venda dele pagou a faculdade de Filosofia na Paraíba, lança agora Imagine Como É, com poesias e crônicas. Alunos da ETEC Heliópolis apresentam uma antologia de cordel. Edson Fernandes da Costa, que pagou R$ 1.400 para publicar seu primeiro livro (poderia ter saído R$ 5 mil se os amigos não tivessem ajudado com capa, revisão, etc. ), é quem está dando mais trabalho para a editora. Sua fantasia Existência Ilimitada tem 600 páginas, enquanto os outros são mais enxutos – mas ele topou transformá-la numa série.
“Posso dizer que estou muito mais realizado com essa galera aqui do que sozinho numa editora grande. Hoje eu comecei a entender que cobramos tanta resposta da vida e não entendemos que todos os nãos que ouvimos são para chegarmos em algum lugar melhor. Era para eu chegar aqui”, conclui.
Do Estadão