Fundamentalismo de Bolsonaro vai matar os indígenas, diz sertanista
Os indígenas, membros do povo Tsapanawa, contavam histórias de confrontos com o grupo inimigo Mashco Piro. Meirelles então mostrou a cicatriz de um ataque que ele próprio havia sofrido uma década antes naquela mesma área, perto da fronteira com o Peru. Uma flecha lhe atravessou o rosto da bochecha à nuca, encharcando sua roupa de sangue e quase lhe tirando a vida.
Um indígena riu ao ouvir o relato. “Ele apontou e falou: ‘lá está o cara que te flechou'”, conta Meirelles à BBC News Brasil.
A revelação poria fim a um período conturbado na relação dos Tsapanawa com servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) liderados por Meirelles e escalados proteger o território do grupo.
Também encerraria um capítulo nos quase 50 anos de carreira que o sertanista dedicou à proteção de indígenas isolados – experiência que lhe rendeu muitos ensinamentos sobre a vida nas matas, mas também momentos de pânico e dor, como quando diz ter “matado um índio para sobreviver”.
Emboscada no rio
Quando Meirelles foi flechado, em 2004, já fazia 15 anos que ele vivia na base da Funai na confluência do igarapé Xinane com o rio Envira, responsável por vigiar um vasto território onde se estima haver três ou quatro etnias jamais contatadas.
Ele saía de canoa para pescar quando um grupo de Tsapanawa, etnia ainda isolada naquela altura, armou-lhe uma emboscada. Depois da primeira flechada, certeira, Meirelles aportou o barco e fugiu pela margem, correndo em zigue-zague. Ouviu o zunido e sentiu o vento de uma segunda flecha passando por cima de sua cabeça. Desviou de outras flechadas, deu um tiro para o alto e gritou por ajuda. Só então foi resgatado e salvo por colegas da base.
Dez anos depois, os Tsapanawa buscaram o contato com o mundo exterior, passaram a viver perto da base da Funai e explicaram a Meirelles o motivo da emboscada.
Os índios lhe contaram ter sofrido um ataque de “uns caras assim que nem tu, meio vermelhão, de cabelo meio branco, barbudo”. “‘Quando a gente viu você, pensou: olha ali o parente do cara que matou a minha mulher’. Foi aí que eu peguei a flechada. Simples.”
Meirelles diz que os povos isolados da região lidam há vários anos com agressões de madeireiros e narcotraficantes que trazem cocaína do Peru para o Brasil. Quando levou a flechada, ele imaginou que o grupo estivesse encurralado e aproveitou o episódio para defender, em entrevistas à imprensa e em Brasília, a importância de proteger aquele território.
Depois do diálogo revelador, o sertanista foi procurado pelo autor da flechada. O homem “estava desconfiado, achando que eu ia querer vingar, perguntando se eu não ia matar ele”. Meirelles respondeu que não e o perdoou pelo ataque. “Eu disse: ‘esquece isso aí, foi sem querer’. Não sei se ele ficou envergonhado ou se ficou com medo.”
Marechal Rondon e irmãos Villas-Bôas
Incorporado pela Funai em 1970, quando abandonou a faculdade de engenharia para prestar um concurso público para a fundação, Meirelles segue uma tradição que teve entre seus expoentes o marechal Cândido Rondon (1865-1958) e os irmãos Villas-Bôas, personagens que procuraram mitigar o impacto das frentes de expansão econômica entre indígenas isolados.
Os sertanistas, como eles ficaram conhecidos, foram bastante requisitados pelo governo durante obras que cruzaram territórios desses povos, como as rodovias BR-163 (Cuiabá-Santarém) e Transamazônica. Em 2009, a Funai extinguiu o cargo de sertanista e delegou a função à Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, responsável por proteger as áreas dessas etnias. A fundação diz que hoje há 107 registros da presença de povos isolados em toda a Amazônia brasileira.
Também existem grupos nessa condição em outras partes do mundo, caso dos habitantes da ilha Sentinela do Norte, na Índia, onde o missionário americano John Allen Chau foi morto em novembro ao tentar evangelizá-los.
Meirelles diz não lamentar a morte do americano. “Acho que eles deviam é dar um curso para os índios do Brasil. Esse negócio de flechar missionário, eu acho ótimo”.
Para o sertanista, nascido em São Paulo há 70 anos e hoje morador da capital do Acre, Rio Branco, catequizar indígenas é “a maneira mais fácil de matar sua cultura”.
Ele conta que, quando chegou ao Acre, em 1976, havia missionários em todas as aldeias indígenas. Dez anos depois, todos foram expulsos pelas comunidades por não se alinharem com as novas ambições dos grupos. O expurgo ocorreu num momento em que os indígenas acreanos se mobilizavam para demarcar suas terras e revalorizar sua identidade, após serem explorados por donos de seringais por várias décadas.
“O SPI (Serviço de Proteção ao Índio, órgão antecessor da Funai) nunca chegou ao Acre, então os índios aqui viviam à própria sorte nos seringais, trabalhando para danar para comprar uma camisa e tal. Não tinha o paternalismo, e por conta disso eles conseguiram se organizar mais rapidamente.”
Com a queda no preço da borracha após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os índios acreanos passaram a abandonar os seringais e a retornar para as aldeias. Segundo Meirelles, até os anos 1970, muitos grupos tinham deixado de se assumir como indígenas, envergonhados de suas origens.
Trinta anos depois, quase todas as terras indígenas do Acre estavam demarcadas – e vários povos locais ganharam visibilidade internacional por realizar festivais xamânicos e receber turistas estrangeiros.
“Hoje os índios aqui (Acre) só precisam da gente como amigos, eles caminham com as próprias pernas. E apesar de estarem na universidade, fazendo filme, vendendo cultura, fazendo festivais, continuam tão ou mais índios do que eram quando cheguei.”
Madeireiros, garimpeiros e traficantes
Outro cenário se aplica aos povos não contatados do Acre, cada vez mais pressionados por invasões e ataques de madeireiros, garimpeiros e traficantes.
Muitos desses grupos fugiram para as cabeceiras dos rios, na fronteira com o Peru, no tempo das chamadas correrias – quando donos de seringais organizavam ataques para matar ou escravizar índios.
Permaneceram várias décadas nessas terras mais altas e inacessíveis, até que recentemente forasteiros começaram a dar as caras, principalmente do lado peruano da fronteira, forçando-os a buscar novos refúgios Brasil adentro.
“No Envira, não sei como esses índios conseguiram sobreviver. Tem relatos e relatos de mortes”, diz Meirelles.
Em 1990, quando sobrevoou aldeias do povo Tsapanawa, o sertanista calculou que eles tivessem cerca de 150 membros. Depois do contato, Meirelles os ouviu descrever um ataque que dizimou o grupo – e que ele acredita ter sido promovido por traficantes.
“Eles dizem que (o som do tiro) não foi ‘pããã’, foi ‘tá-tá-tá-tá-tá’. Arma automática, metralhadora, fuzil automático, entendeu? Daqueles 150 que calculamos no sobrevoo, sobraram 35. O resto foi morto.”
O relato deu tração a uma mudança na postura de Meirelles em relação a índios isolados. Até então, ele se alinhava à posição atual do governo brasileiro, segundo a qual qualquer iniciativa de contato com esses grupos deve partir deles. De acordo com essa orientação, adotada desde 1987, cabe ao Estado apenas demarcar e proteger os territórios desses povos.
Meirelles acha que a estratégia perdeu validade. “Naquela época (1987), o Brasil era outro, a Amazônia era outra, os índios eram outros.”
O sertanista diz que os povos não contatados estão cada vez mais próximos da sociedade envolvente – e que a política de mantê-los isolados pode fazer com que etnias inteiras sejam exterminadas.
Ele cita um diálogo com os Tsapanawa em que os índios lamentaram não ter feito contato antes. “Eles falaram: ‘p… merda, se a gente soubesse que vocês eram tão legais, a gente tinha vindo antes falar com vocês, e minha mulher estaria viva, meu filho estava vivo, não teriam matado não sei mais quem.'”
Meirelles diz que é possível evitar que os encontros resultem em conflitos ou epidemias que aniquilem os grupos, como ocorreu tantas vezes no passado.
No caso dos Tsapanawa, uma equipe da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) liderada pelo médico sanitarista Douglas Rodrigues vacinou todos os indígenas, prevenindo doenças que costumam ser mortíferas logo após o contato. “Faz quatro anos que eles estão contatados e não morreu nenhum índio de gripe, de coisa nenhuma. Se não tivessem feito contato, talvez o grupo já tivesse sido extinto pelos madeireiros lá no Peru e ninguém nem saberia.”
Conflitos étnicos
Outro ponto crucial para o sucesso do contato foi o emprego de intérpretes do povo Jaminawa, falantes de um idioma próximo da língua dos Tsapanawa, do mesmo tronco pano. A comunicação fluiu e arrefeceu os ânimos.
Meirelles diz que, mesmo que se saiba pouco de um povo isolado, é possível deduzir o grupo linguístico que ele integra, com base na região em que vive. No Acre, quase todos os povos pertencem ao tronco pano ou ao tronco aruak.
Outro motivo para rever a política atual, segundo ele, é frear conflitos étnicos entre povos isolados.
O sertanista diz que, no Alto Envira, “todo mundo é inimigo de todo mundo”. Os Tsapanawa têm entre seus adversários os Mashco Piro, um povo isolado que não vive em aldeias fixas e costuma se deslocar em grupos grandes pela fronteira Brasil-Peru.
Um dia, rapazes Tsapanawa foram caçar e voltaram à base da Funai com um colar e um arco Mashco Piro. “Só tem um jeito de você tomar um colar e um arco de um índio isolado. É matando ele.”
Em outra ocasião, há um ano e meio, um grupo Mashco Piro atacou uma aldeia Tsapanawa. Enquanto mulheres e crianças fugiam, o único homem presente, um velho, enfrentou os invasores e foi morto. Depois disso, todos os Tsapanawa passaram a viver perto da base da Funai, temendo novos confrontos.
Meirelles afirma que será preciso negociar um “armistício” entre os grupos, assim como os irmãos Villas-Bôas fizeram após contatar povos indígenas que viviam em guerra no Xingu, nos anos 1940.
“Vai ter que chegar uma hora, depois que fizerem o contato, de chamar todo mundo e falar: vamos acabar com esse negócio de se matar, porque o inimigo é outro.”
Para o sertanista, é inevitável que os grupos alterem sua cultura após o contato, mas ele não considera o processo necessariamente ruim. “Vai mudar muita coisa, vai perder muita coisa, vai índio ficar meio grilado, enlouquecido? Vai. Mas quem não se adapta morre, isso é Darwin.”
“Antigamente a gente curava gripe com ventosa e sanguessuga. Vamos voltar àquela época? Você acha que, se não tivesse aparecido nenhum português ainda na América, os Tupinambá de hoje seriam os mesmos de 1500? Eles mudam, mas se reinventam. A gente, no Renascimento, em 1500, não se reinventou?”
Primeira visita à cidade
Meirelles testemunhou o deslumbramento – e também as frustrações – experimentados por um grupo Tsapanawa na primeira vez que conheceram uma cidade, a pequena Feijó, no Acre.
Enquanto visitavam um mercado, um indígena “pegou um monte de macaxeira embaixo do sovaco e saiu”. Meirelles foi buscá-lo na rua e pagou pelos itens, enquanto explicava o que eram aqueles pedaços de papel que podiam ser trocados por comida. O índio quis saber como conseguir as notas.
“Eu falei: para arrumar isso aí, tá vendo aquele campo ali do outro lado? Tem que passar o dia todinho agachado, cortando o mato, para o dono do roçado no fim do dia te dar uma notinha dessas, que só dá para comprar três macaxeiras. Ele falou: ‘vixe maria, aqui é bonito, mas não vou ficar muito tempo, não’.”
Meirelles diz que, mesmo que sejam mantidos isolados, os indígenas farão contato com o mundo exterior para obter instrumentos metálicos – o que, aliás, já têm feito desde que os primeiros colonizadores chegaram à Amazônia.
Mesmo após o governo demarcar 627 mil hectares para os grupos isolados do Envira, os indígenas saíam do território para furtar terçados (facões) em comunidades vizinhas.
“Se demarcássemos um milhão de hectares, continuariam saindo. Se fossem 5 milhões, eles iriam buscar terçado em Rondônia. Porque, meu amigo, um machado, um terçado é uma espada jedi. Ninguém tem nem lembrança mais de um índio isolado fazendo roçado com machado de pedra.”
Outro fator que, segundo Meirelles, motivará os grupos a deixar o isolamento é a curiosidade.
“Assim como eu tinha muita vontade de ir à aldeia dos isolados e ver como eles viviam, eles também tinham a maior curiosidade de vir conversar com a gente. Pensavam: ‘Vamos ver como é esse negócio que faz ‘tu-tu-tu-tu’ e corre em cima d’água?’ Então eu acho que esse processo, embora ele possa ser demorado se o território estiver tranquilo, eu acho que daqui a 20 ou 30 anos, não vai ter mais um povo isolado no planeta Terra.”
Indígenas no governo Bolsonaro
É possível que o próximo governo mude a postura em relação aos povos isolados. Em entrevista recente, Damares Alves, futura chefe do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – órgão ao qual a Funai ficará subordinada -, disse que a “política do isolamento” de indígenas poderá ser abandonada.
Mesmo assim, Meirelles está pessimista com o futuro governo – e diz que os índios poderão enfrentar um cenário ainda mais difícil do que o da ditadura militar (1964-1985).
“Naquele tempo, os militares mandavam a gente fazer uma coisa, e a gente ia lá falar com os índios e fazia outra. Como eles não iam ver o que a gente estava fazendo, porque era longe para cacete, tinha mosquito para danar, a gente fez outra coisa e os índios conseguiram sobreviver ao regime militar – o que teriam conseguido se não fosse a gente também, mas talvez não com a quantidade de terras demarcadas.”
Meirelles diz ainda que naqueles anos a opinião pública e os grandes veículos jornalísticos eram favoráveis aos índios.
Hoje, porém, afirma “que a grande mídia não está nem aí” para o tema – e passou até a difundir discursos contrários à causa em coro com o presidente eleito, Jair Bolsonaro, que prometeu acabar com as demarcações de terras indígenas e liberar atividades econômicas nas áreas já delimitadas.
Meirelles critica a influência que líderes religiosos exercerão na Funai no próximo governo. Damares Alves, a futura ministra a quem a Funai responderá, é pastora evangélica.
“Estamos entrando num processo muito complicado, porque há dois jeitos de você matar uma cultura: primeiro, é deixar o cara sem terra. Depois, mudar a cosmologia, entrar com a religiosidade.”
“Do jeito que estão essas bancadas evangélicas, da bala, do agronegócio, estou com medo de os índios começarem a perder terras, mesmo áreas que já foram demarcadas. O (Parque Indígena do) Xingu, por exemplo, é uma ilha no meio da soja. Quem sabe daqui a uns cinco, seis anos, no Xingu só tenha soja?”
Morte de índio isolado
Apesar do cenário sombrio que vislumbra, Meirelles está prestes a deixar o front. Em fevereiro, vai se mudar para uma casa a 50 metros da praia em Arraial d’Ajuda, na Bahia.
“Passei a vida toda cuidando dos outros, agora vou cuidar de mim.”
Mas não se distanciará totalmente dos índios. Depois da mudança, Meirelles pretende trabalhar num livro de memórias sobre o tempo que passou nas matas.
Em algum momento, ele terá de se debruçar sobre um dos momentos mais difíceis que já enfrentou e que o assombra até hoje.
Pouco depois de se mudar para o Acre, Meirelles participava de uma expedição com seu então sogro quando os dois se viram cercados e atacados por um grupo de índios isolados, do povo Mashco Piro.
O sertanista reagiu com um único disparo, atingindo um dos agressores. O índio caiu morto.
Ele afirma que, se não tivesse atirado, teria morrido. O caso não lhe rendeu punições porque as autoridades julgaram que ele agiu em legítima defesa. “Eu preferi sobreviver. É uma contradição desgraçada: passei a vida toda defendendo os índios, e um dia tive que matar um índio.”
O incidente se tornou público após o próprio Meirelles citá-lo num relatório à Funai. O sertanista afirma que, embora a morte do índio o atormente até hoje (“e muito”), o episódio o fez aprender “o que é o ser humano”.
“Na hora do aperto, do vamos ver, nessas situações extremas, a gente mostra o bicho que é. Eu sou humano, igual a um Tsapanawa quando flecha um Mashco piro, ou vice-versa. Eu não sou diferente deles.”
Da BBC