Mais Médicos foi o mais bem sucedido programa para levar médicos ao interior
No Brasil, o acesso à saúde pública é um direito de todos os cidadãos desde que foi criado o SUS (Sistema Único de Saúde), em 1988. Contudo, em municípios distantes dos grandes centros urbanos, áreas rurais e periferias, é raro até hoje encontrar médicos e equipes completas nos postos de atendimentos.
Entre especialistas e entidades de saúde existe o diagnóstico de que não faltam médicos no país. O Brasil tem quase meio milhão de profissionais formados em medicina –o equivalente a 2,18 médicos para cada mil habitantes. A média chega perto da taxa dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que é de 3,4 médicos para cada mil habitantes.
O problema é a distribuição desigual brasileira. Para citar dois exemplos extremos, enquanto no Rio de Janeiro há 3,55 médicos a cada 100 mil habitantes, no Maranhão a razão é de 0,87. A mesma distorção é visível quando se compara os números das grandes cidades e dos pequenos municípios. Quem mora nas capitais conta com 5,07 médicos por mil habitantes, contra 1,28 do interior.
Além disso, o mercado privado é muito mais atrativo do que o serviço público de saúde, que sofre com postos desocupados. “A chance de quem só usa o SUS de ter acesso ao médico é muito menor que a de quem tem plano de saúde. Mesmo no cenário de muitos médicos, faltam médicos”, diz Mário Scheffer, professor de medicina da USP (Universidade de São Paulo) e autor do mais completo estudo demográfico da categoria.
Há tentativas de levar médicos para os rincões do país desde a ditadura militar. “É um problema histórico. Existem experiências de interiorização desde o Projeto Rondon [em 1968]. O governo Fernando Henrique Cardoso também fez um programa para isso. Até que veio o Mais Médicos”, resume Scheffer.
As iniciativas criadas ao longo dos anos tiveram de enfrentar diferentes desafios para fixar os médicos no interior. Nessa lista estão a falta de programas de educação continuada, a pressão do mercado de trabalho que valoriza o médico especialista e as condições precárias de trabalho no serviço público nos municípios.
A descontinuidade dos programas nos diferentes governos é outra marca. “As tentativas de interiorização sempre são de curto tempo, porque o governo seguinte destrói, ou de curto alcance”, diz Scheffer.
Para o especialista, o Mais Médicos, lançado em 2013, foi o programa mais bem-sucedido entre as tentativas. Em cinco anos, foram abertas mais de 18 mil vagas para médicos em cidades que sofriam com a carência desses profissionais, além de terem sido criadas mais de 11 mil vagas em cursos de medicina, sendo cerca de 65% delas no interior. “Cumpriu papel importante, de extensão [de vagas] e durabilidade”, explica Scheffer. Ele vê, contudo, aspectos que precisariam ser aprimorados. Por exemplo, o Mais Médicos carece de uma política uniforme de verificação da qualidade dos cursos e os grandes centros urbanos continuam atraindo mais do que os municípios interioranos.
“Pode ser uma oportunidade para o país usar os médicos [formados recentemente] com políticas que garantam a qualidade deles e a fixação em municípios desassistidos”, afirma.
Entre as propostas do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), está a manutenção do programa federal, mas com a substituição dos cerca de 8.500 cubanos por brasileiros ou estrangeiros. As inscrições para esses editais ainda não foram totalmente preenchidas. O prazo para a apresentação de que já está cadastrado é a próxima sexta-feira (14). Cuba anunciou o desligamento do programa em novembro, por conta de críticas feitas pelo futuro governo.
Na visão de Scheffer, a criação de uma carreira de médico de Estado, promessa de campanha de Bolsonaro, apesar de ser uma política cara, ainda não foi testada de forma efetiva no país. O especialista, contudo, defende que os cursos de medicina recrutem candidatos ligados às localidades com carência de médicos como parte da solução para a má distribuição desses profissionais no país. “Não há uma única solução”, conclui.
Veja abaixo algumas políticas que o país já testou para a interiorização de médicos.
Projeto Rondon
Criado pelo governo federal em 1968, tinha como objetivo levar estudantes universitários a regiões isoladas da Amazônia. O projeto envolveu mais de 350 mil universitários ao longo de mais de 20 anos, até ser extinto em 1989. Uma nova fase do programa foi relançada em 2003. Apesar da longevidade e do grande número de universitários envolvidos, o projeto possui um amplo leque de ações sociais, não havendo foco específico em atendimentos médicos.
Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS)
Foi criado em 1976 para estruturar os serviços de saúde pública de cidades com até 20 mil habitantes. Foi responsável pela expansão da rede ambulatorial do país. Como não tinha como objetivo a fixação de médicos nessas regiões, enfrentou dificuldades para garantir serviços de saúde de qualidade. A Constituição Federal de 1988 levou ao encerramento do PIASS.
Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (PISUS)
Foi proposto em 1993, no final do governo do presidente Itamar Franco (no então PMDB), para a interiorização de equipes de saúde compostas por médicos e auxiliares. O objetivo do programa era descentralizar o atendimento e garantir a municipalização do serviço. Teve duração de apenas 11 meses, não sobrevivendo ao governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso, empossado em 1994.
Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS)
Foi criado em 2001 pelo então ministro da Saúde, José Serra. Oferecia bolsas mensais de cerca de R$ 4.500, curso de especialização em saúde da família, tutoria e supervisão, dentre outros benefícios, para médicos trabalharem em regiões desassistidas. Chegou à marca de 4.666 médicos inscritos. Contudo, enfrentou diversas desistências, terminando com apenas 469 médicos lotados nos municípios. Foi encerrado três anos depois, no governo Lula.
Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab)
Foi lançado em 2011 como um programa de incentivo educacional e recrutamento de médicos, enfermeiros e odontólogos para atuarem em áreas vulneráveis. O médico recém-formado fazia um curso presencial de especialização em saúde da família e recebia um bônus de 10% nos processos seletivos para ingresso na residência médica. Em 2013, chegou a contar com a participação de 3.550 médicos.
Programa Mais Médicos
Foi introduzido no Brasil em julho de 2013 contando com três eixos de ação:
1- investimento na infraestrutura da rede de saúde;
2 – ampliação dos cursos de graduação em medicina e da residência médica;
3 – provisão emergencial de médicos em áreas vulneráveis.
A grande inovação foi o uso de médicos estrangeiros, dentre eles os cubanos. Dispensados da revalidação do diploma, mas podendo atuar apenas no local para o qual foram designados, estrangeiros e cubanos chegaram a compor mais da metade dos 18 mil médicos do programa. Cada profissional recebe bolsa mensal de R$ 11.865,60. No caso dos cubanos, cerca de dois terços desse valor eram destinados ao governo de Cuba, fato criticado por Bolsonaro e que levou ao fim da cooperação.
Do UOL