Obrador negocia para levar ao México médicos saídos do Brasil
O novo presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, está prestes a fechar um acordo para receber pelo menos 3 mil médicos cubanos que vinham trabalhando no Brasil. A negociação entre o primeiro representante da esquerda a chegar à presidência mexicana e o regime cubano começou em setembro, segundo apurou o Estado. Cuba anunciou que retiraria seus médicos do Brasil no dia 14.
As tratativas foram mantidas em sigilo, até agora. Obrador tem um plano de austeridade que pretende reduzir o salário de servidores públicos, entre eles os médicos. Os cubanos que passaram pelo Brasil, portanto, ajudariam a cobrir cortes nos gastos públicos. “É austeridade, não vingança”, repetiu Obrador como um slogan durante sua campanha.
Lázaro Cárdenas Batel, o novo coordenador de assessores da presidência mexicana, tem sido o elo entre os representantes do regime cubano, presidido por Miguel Díaz-Canel, e colaboradores dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. O objetivo: uma adaptação mexicana do Mais Médicos, um programa que envolveu cerca de 15 mil especialistas cubanos designados para 1,6 mil municípios em algumas das áreas de mais difícil acesso do Brasil.
Cárdenas Batel é o herdeiro de uma dinastia identificada com as causas de esquerda no México. Tanto ele quanto seu pai, Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano, mantêm sólida amizade com os membros do PT.
A relação entre Cárdenas e Lula e seus colaboradores mais próximos ultrapassa a diplomacia, diz Jesús Vázquez Martínez, colaborador de Cuauhtemoc Cárdenas quando ele foi governador de Michoacán (sul do México), na década de 80, e prefeito da Cidade do México, entre 1997 e 1999. “Ele sempre manteve a vocação para defender as causas da esquerda. Sua relação com Lula começou há pelo menos 15 anos”, explica.
Cuauhtémoc Cárdenas visitou Lula na prisão há três meses e disse várias vezes em público que o ex-presidente brasileiro é vítima de uma “injustiça”. Lula está preso acusado de corrupção, como parte da Operação Lava Jato, que teve desdobramentos em vários países latino-americanos.
Vázquez Martínez lembra que Lula e o ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil Celso Amorim até foram à região de Michoacán em 2003, em uma rara visita de um presidente e membros-chave de seu gabinete a um Estado mexicano. Amorim foi precisamente quem manteve conversações com Lázaro Cárdenas Batel, o coordenador de assessores de Obrador para selar o acordo entre Cuba e México.
Cárdenas Batel mantém relação próxima com Cuba. Os laços ficaram em destaque quando ele foi eleito governador de Michoacán em 2002. “Estudei no Instituto Superior de Arte de Havana, minha mulher é cubana e, obviamente, tenho uma relação fraterna e próxima com esse país. Minha relação com Cuba não é a relação do governo ou de qualquer autoridade de Michoacán com Cuba”, disse há 14 anos aquele que é agora um dos colaboradores mais próximos da presidência de Obrador.
Mais de 400 funcionários cubanos atuaram como assessores de Cárdenas Batel do governo michoacano durante seu mandato – assim como o pai, ele comandou o Estado. Cinquenta professores cubanos ocupavam cargos na Secretaria de Educação local para um programa de alfabetização implementado apenas para esse fim. Ele conseguiu que outros fossem recebidos em programas semelhantes em Oaxaca, Veracruz e Tabasco.
“Eram programas feitos sob medida pelo governo cubano”, garante um dos colaboradores do governo de Cárdenas Batel, em Michoacán. Mesmo sob críticas, os cubanos ocuparam cargos em saúde, educação e arte, todos sob a influência do herdeiro da dinastia Cárdenas. “Essas colaborações até agora foram em Estados mexicanos, mas nunca haviam sido consideradas uma política federal.”
Mas a conjuntura produzida em apenas três meses e os cenários políticos no México e no Brasil permitiram que as habilidades diplomáticas de Cárdenas Batel saíssem em resgate do Mais Médicos, um programa que o regime cubano mantém em 67 países, mas poucos tão importantes quanto Venezuela e, até poucos dias, o Brasil. O jornalista de Michoacán Jesús Lemus disse que a mulher de Cárdenas Batel, Mayra Coffigny, tem sido “um fator fundamental” para fortalecer os laços entre o regime de Castro e do governo de seu marido. Coffigny nunca escondeu sua simpatia e admiração por Fidel Castro.
Os médicos cubanos que participarem de missões no México devem receber um quarto de seu salário. O restante ficará com o regime cubano. Obrador disse que o esquema atual de saúde pública no México é “insuficiente” e prometeu que sob seu governo, os mexicanos terão acesso a um sistema semelhante ao do “Canadá, Dinamarca, Inglaterra e países nórdicos”.
Os caminhos para um sistema de saúde como os exemplos citados pelo novo presidente mexicano parecem difíceis. Os números do México em relação à saúde são alarmantes: mais da metade dos mexicanos não tem acesso a nenhum tipo de seguridade social, as reclamações entre os médicos contratados pelo Estado se estendem por todo o país e se agravaram depois que o ex-presidente Enrique Peña Nieto anunciou um corte no setor de saúde, que gerou uma onda de protestos em 2016.
As reclamações declinaram, mas não desapareceram. E os problemas crescem. Há poucos dias, o Sindicato dos Trabalhadores da Saúde em Chiapas, Estado onde oito em cada dez habitantes vivem na pobreza, completou um mês em greve por falta de pagamento e escassez de medicamentos e suprimentos médicos.
A evidente contradição entre a mensagem de austeridade de Obrador, que se movimenta em um VW Jetta 2013 valendo menos do que US$ 5 mil e se recusou a viver na residência oficial de Los Pinos por considerá-la “luxuosa”, e a falta urgente de recursos públicos para pagar os serviços mais básicos no México tem sido questionada com frequência.
Em resposta, vários colaboradores de Obrador insistiram repetidas vezes, em público, em particular, nas redes sociais e na frente dos microfones que o governo dele resolverá a falta de médicos nas áreas mais negligenciadas do país, mas até agora ninguém tinha explicado como isso seria feito. Agora se sabe que uma das soluções, segundo membros de seu próprio gabinete, aponta para Havana. Um programa do tamanho de Mais Médicos não tem precedentes no México.
Lançado em julho de 2013 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), na esteira dos protestos por melhores serviços públicos, em junho do mesmo ano, o Mais Médicos teve a participação majoritária de cubanos, até o dia 14 de novembro.
O governo cubano decidiu então encerrar a parceria, intermediada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), depois de o presidente eleito, Jair Bolsonaro, dizer publicamente que pretendia alterar termos do acordo, entre eles os repasses feitos a Havana pelo convênio.
Também estaria prevista a aplicação de uma prova de avaliação. Desde o rompimento, o programa, que atende principalmente cidades do interior do Brasil com pouco acesso à saúde pública, abriu vagas para suprir a saída de cerca de 8 mil cubanos.
Do Estadão