Rever Raposa Serra do Sol é inconstitucional, dizem especialistas
A ideia do presidente eleito Jair Bolsonaro de rever a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, é inconstitucional, de acordo com especialistas ouvidos pelo GLOBO, por ir de encontro a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2009, confirmou a demarcação que havia sido decretada pelo então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O processo já transitou em julgado no STF, ou seja, não há mais possibilidade de recurso. Além disso, a medida também violaria o direito dos indígenas a sua terra, previsto na Constituição.
A informação sobre a intenção de Bolsonaro foi antecipada pelo jornal “Valor Econômico”. Na segunda-feira, o presidente eleito confirmou a ideia, dizendo que a reserva é “a área mais rica do mundo” e que é possível explorá-la “de forma racional”. Raposa Serra do Sol é uma área de terra indígena no nordeste do estado de Roraima. Com 1,7 milhão de hectares, é uma das maiores terras indígenas do país. O território demarcado foi alvo, na década passada, de uma disputa judicial entre a União, o Estado de Roraima e produtores de arroz. Mas, em 2009, o STF manteve a demarcação.
O professor Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), considera que um novo decreto presidencial, revendo a demarcação, seria um desafio à decisão do STF e à própria Constituição.
— As terras indígenas são direitos originários. Eles antecedem a todos os outros direitos e reivindicações, isso é o que a Constituição determinou. O direito (à terra) está lá, precisa ser apenas demarcado. Reconhecer um direito que já existia antes. No momento em que essa demarcação é feita, que ela é questionada judicialmente, que o Supremo confirma a validade da demarcação, isso se transforma em um direito que não pode ser alterado. Não pode haver um novo decreto. Seria um decreto que desafia a Constituição e uma decisão já transitada em julgado — avalia.
Daniel Sarmento, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ressalta que a revisão de qualquer demarcação seria inconstitucional, mas considera que o caso da Raposa Serra do Sol é mais grave porque já foi discutido pelo plenário do STF.
— Acho que seria inconstitucional se ele quisesse fazer isso com qualquer terra indígena, é um direito dele. Com a Raposa, tem um agravante, é uma decisão já transitou em julgado, no plenário do Supremo Tribunal Federal. É uma forma de desrespeito ao Supremo Tribunal Federal — considera.
Professor da Universidade de Brasília (UnB), Mamede Said considera que, por mais que a demarcação seja uma competência do presidente da República, a revisão dela não pode ser feita de forma unilateral porque já houve uma discussão no Judiciário.
— O chefe do Executivo pode muito, mas não pode atropelar o órgão de cúpula do Judiciário. Não tem como achar que isso está na competência unilateral da Presidência. Com certeza não está — opina.
Daniel Sarmento ainda questiona a ideia de Bolsonaro de integrar o índio à sociedade:
— Essa compreensão é incompatível com o modelo constitucional. A ideia não é integrar os índios à sociedade, é permitir que o índios vivam de acordo com seus costumes e tradições.
O posicionamento de Bolsonaro sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol também pode criar um clima de tensão. Para Rogério Rocco, professor de direito ambiental da Escola de Magistratura do Rio, embora a intenção do presidente eleito esbarre em impedimentos jurídicos, o discurso pode legitimar a violência contra os indígenas por parte de ruralistas e grileiros.
— Essa fala sinaliza um posicionamento do executivo. O maior problema é reabrir conflitos e gerar tensão numa área que hoje está pacificada. Essa ideia de integração do índio à sociedade é colonialista.
Na mesma linha, o vice presidente do Conselho Indígena de Roraima, Edinho Batista de Souza, afirmou que as declarações de Bolsonaro foram recebidas com apreensão pelos moradores da comunidade. Batista classificou a afirmação de Bolsonaro como “um ato de violência” contra os povos indígenas.
— Não foi um erro homologar a reserva. Antes da demarcação, a gente era violentado e proibido de circular na nossa própria casa. Hoje, há 40 mil índios vivendo aqui — diz Souza.
Para Rodrigo Moraes, professor de Direito Ambiental da pós-graduação da PUC de São Paulo, ao contrário do que disse o presidente, a demarcação das terras indígenas não é feita para integrar os indígenas à sociedade, mas, segundo ele, para que possam viver no seu habitat natural, de acordo com suas tradições.
Sobre a possibilidade de exploração dos recursos naturais, Moraes afirma que deve ter autorização do Congresso e concessão de royalties aos índios.
— Pela lei, as terras são inalienáveis. A demarcação envolve um estudo sociológico e ambiental. O presidente pode até fazer um decreto para revisar a criação da reserva. Mas eu acho que isso seria rediscutir um assunto que já foi sacramentado pelo supremo.
Do O Globo