Stédile: “Não temos interesse em violência. Nesse patamar, quem perde? Nós, né?”
O histórico casarão que serve de sede para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)era lar de um antigo barão do café no início do século XX. Nada mais simbólico. Localizada numa esquina no centro de São Paulo, não há, contudo, nenhum sinal, bandeira ou aviso que indique que ali abriga um dos maiores e mais articulados movimentos sociais da América Latina. Algo bastante conveniente em tempos de uma crispação na política que resultou na eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro, que durante sua campanha prometeu repressão ao MST e tratá-lo como grupo terrorista. “Mas no dia 1 de janeiro ele vai jurar a Constituição, e lá está claro que o povo brasileiro tem o direito de se organizar, tem o direito à liberdade de expressão. Vamos nos amparar na Constituição”, argumenta o economista João Pedro Agustini Stédile, dirigente nacional do movimento.
Stédile, cofundador do grupo, é o rosto mais visível do MST, ao qual sempre esteve atrelado. De origem católica, é hoje um dos interlocutores do papa Francisco, a quem considera um líder carismático que tirou a fleuma de ser um representante de Deus na terra. Uma de suas iniciativas políticas no início de seu papado foi se aproximar de movimentos populares. “Pela fama do MST e da via campesina, mandou um emissário falar comigo em São Paulo. E a primeira coisa que eu disse foi que varias organizações da Igreja Católica trabalham com os pobres, como a CPT [Comissão Pastoral da Terra], o Cimi [Conselho Indigenista Missionário], religiosos como Frei Betto, Leonardo Boff…”, contou em julho no programa Voz Ativa, da Rede Minas, para o EL PAÍS e outros jornalistas e convidados. Dois dias depois, o emissário ligou de novo para dizer que Francisco não queria ninguém da Igreja, ma sim dos movimentos populares.
O gaúcho sempre se moveu entre figuras públicas reconhecidas. Ele lembra de quando, em 1997, auge das manifestações e ocupações do MST, o fotógrafo Sebastião Salgado acompanhou camponeses que começaram um acampamento em Quedas do Iguaçu, no interior do Paraná. As fotos foram lançadas logo depois no livro Terra (Cia das Letras) com um CD com músicas de Chico Buarque feitas especialmente para a obra. Além deles, o escritor português José Saramago estava presente na coletiva de imprensa de lançamento, ao lado de um Stédile ainda com cabelo e cavanhaque preto. “A imprensa ficou louca! Aquilo ali nunca mais!”, exclama. Foi com o dinheiro arrecadado pelos direitos do livro que o MST, que sobrevive da contribuição de seus militantes e de parcerias nacionais e internacionais, pôde comprar a casa que pertenceu ao antigo barão do café no centro de São Paulo e o terreno da Escola Nacional Florestan Fernandes, um dos braços educativos do grupo.
Nesses quase 35 anos de existência e 30 anos de democracia, o MST deu o tom da luta pela terra. Mais de 1,3 milhão de famílias foram assentadas pelo Governo em 30 anos, que desapropriou ou cedeu mais de 88 milhões de hectares de área, segundo dados do INCRA. O auge ocorreu em meados dos anos 1990, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. “Nós não temos interesse nenhum em violência, porque quando a disputa entrar neste patamar, quem vai perder? Nós, né. Eles têm os pistoleiros, a polícia e o juiz. Nós queremos paz e negociar”, garante.
Nascido em 1953 em Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul, formou-se em economia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e se pós-graduou na Universidade Nacional do México (UNAM). Foi a primeira geração de filhos de camponeses com acesso ao ensino superior, junto, por exemplo, do ministro do Supremo Edson Fachin, de quem é conterrâneo. “Eu era muito jovem e queria estudar. E fui estudar. Trabalhava de dia e de noite estudava. E mantive o vínculo com o sindicato de trabalhadores rurais da minha região. Aos sábados e domingos ajudava a calcular o preço da uva”, recorda.
Foi por causa desse envolvimento com o sindicato que, em 1979, foi chamado para resolver um conflito entre colonos sem-terra e índios. O primeiro de muitos outros neste quase 40 anos envolvido na luta pela reforma agrária. “Umas 800 famílias de posseiros pobres foram expulsas pelos índios. Era pobre contra pobre. Cheguei lá e era aquela confusão. Você consegue imaginar assembleia entre índio e posseiro?”. Um pacto de convivência foi então firmado. “Terra de índio é de índio, ninguém mexe. É deles. Mas para os camponeses pobres, no Rio Grande tem terra. E nós temos que lutar por terra para nós”.
Foi o início de tudo. Em setembro daquele mesmo ano, parte daquelas famílias ocuparam então uma área que havia sido desapropriada anos antes pelo então governador Leonel Brizola para a reforma agrária e que havia sido grilada por fazendeiros. Episódios como esse ocorreram em outros Estados ao longo dos anos seguintes, culminando em 1984 na criação do MST, uma tentativa de congregar todas essas lutas locais. “Era o início da abertura, aquele clima de democratização, o ABC paulista pegando fogo”, recorda Stédile. Ele formava parte de uma nova geração de camponeses que retomavam a luta pela terra após movimentos similares, vinculados a partidos e a Igreja, terem sido varridos do mapa pela ditadura militar. A sorte desses jovens idealistas, conta o gaúcho, é que muitos dos antigos líderes ainda estavam vivos. Havia muito a ser contado e a aprender. “Eles diziam: ‘Façam tudo em coletivo, não se meta a besta de ser líder, que o latifúndio mata; a força que o camponês tem é o número, então trate de levar a família; tratem de organizar a produção, se vocês ficarem só no lote individual o cara não sai da pobreza…”.
Aos 65 anos, o líder do MST conserva um forte sotaque do interior gaúcho e uma cara de militante bravo que com facilidade se abre, junto com seus miúdos olhos azuis, e se transforma em sonoras risadas e histórias bem humoradas sobre a luta pela terra. “Uma vez o FHC disse que não ia mais dar terra para quem ocupasse, que quem quisesse terra que escrevesse para o INCRA pelos Correios. Organizamos nossa turma e três milhões de pessoas escreveram”, recorda. Outro dos momentos se deu durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem é amigo. “Mas teve uma vez que ele ficou uma arara! No meio de uma audiência chega um coronel e dá uma notícia para ele em seu ouvido. Rapaz, o Lula ficou vermelho, bateu na mesa e disse ‘Porra, vocês são foda, assim não dá para negociar! Acabam de dizer que vocês ocuparam a estrada de ferro da Vale!’. Uai, mas quem decidiu foram o trabalhadores de lá, não fomos nós”, lembra.
A anedota serve como exemplo de como os núcleos locais do grupo são autônomos com relação à coordenação nacional. E também para dizer que, apesar da proximidade com com o PT, reforçada a partir do impeachment de Dilma Rousseff e dos processos na Justiça de Lula, o movimento sempre manteve sua autonomia com relação ao partido. “Nós ajudamos a eleger o PT, mas olha nas nossas páginas para ver quem mais criticou o partido”. Stédile, aliás, é filiado ao PT, mas nunca concorreu a nenhum cargo. Por que não há uma bancada camponesa no Congresso em contraposição à bancada ruralista? “Porque a política institucional e parlamentar é uma merda”, diz, taxativamente. “Em cada Estado já elegemos alguém que mora em assentamento. Mas nos dedicamos a formar novos militantes para construir uma nova sociedade diferente, que não vai vir pelo parlamento”, explica.
Professoral, utiliza o giz e o quadro negro de uma sala da sede do MST para explicar a história da questão agrária no mundo. Em 1850, o império brasileiro assinava a Lei de Terras, que garantia a propriedade rural àqueles que tivessem dinheiro para comprar terras públicas do Estado, impedindo o avanço das pequenas propriedades e deixando pelo caminho ex-escravos negros e imigrantes, aqueles que realmente trabalhavam na terra. Nessa mesma época, o governo norte-americano distribuía terra àqueles que quisessem nela trabalhar. Apesar de ser marxista, critica o modelo de coletivização forçada que ocorreu em lugares como Cuba e União Soviética. Sua referência é o que ocorreu em países desenvolvidos como o EUA e Japão.
“No final do século XIX e durante todo o século XX, todos os países entraram para o capital industrial distribuindo terra. Porque cada família que recebia um lote se integrava na indústria. Antes da crise de 30, havia nos Estados Unidos 1.200.000 tratores, porque cada família tinha um trator da Ford. Sabe quantos temos hoje? 890.000”, explica ele. Na verdade, o censo agropecuário de 2017 do IBGE indica que nos últimos 11 anos, com o boom do agronegócio e a aceleração da mecanização do campo, o número de tratores no país subiu de 820.000 para 1,22 milhão. O mesmo censo indica, contudo, que a concentração de terra aumentou. Cerca de 1% das propriedades rurais ocupam cerca de 50% de toda a área rural. “Se você fizer uma reforma agrária, mais 4 milhões de família vão comprar trator. Alimentaria o sistema capitalista, mas a nossa burguesia é burra. O que nos faltou aqui para dar certo? Uma burguesia industrial.”.
Os tempos são outros e, depois de uma reforma agrária incompleta, o MST vem defendendo desde 2005 uma que seja “popular” e envolva a oferta de educação em todos os níveis, uma transição para a agroecologia —produção sem agrotóxicos— e trazer a agroindústria com mais força, como já ocorre em alguns assentamentos. “A agroindústria é mais que capitalismo, é pelo progresso econômico, é o que agrega valor a sua matéria-prima, aumenta a sua renda, atrai o jovem que vai para a universidade e não quer pegar na inchada, dá emprego para as mulheres, te conecta com o resto da sociedade. Quem vai dar a máquina? A indústria. Quem compra o leite? O supermercado”.
De El País