“Eles são caçadores e nós somos bichos aqui em baixo”, diz moradora que escapou de snipers
Desde setembro do ano passado, moradores da favela de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro, relatam uma situação de completo terror: jovens de mochilas e boné, geralmente em motos, têm sido alvejados por tiros certeiros e repentinos.
Segundo as testemunhas, os tiros acontecem quando a situação está “calma” – ou seja, sem tiroteio na comunidade – e vêm de uma torre branca na Cidade da Polícia, a sede administrativa da Polícia Civil, localizada a cerca de 250 metros da esquina da Rua São Daniel, onde ocorreram todas as execuções.
“Eu moro onde as pessoas estão sendo abatidas, pela Cidade da Polícia”, diz uma moradora em entrevista à Agência Pública. “Inclusive, toda vez que acontece o episódio de dar um tiro eu sempre estou em casa ou na janela. Você vê a pessoa passar viva e depois voltando em óbito”. A moradora, que pediu para não ser identificada, vive há 25 anos em Manguinhos e nunca presenciou algo semelhante. Ela revela que foi testemunha ocular da morte de Rômulo Oliveira da Silva, 37 anos, na última semana de janeiro.
Rômulo era porteiro na Fundação Oswaldo Cruz, subordinada ao governo Federal e, já ferido, precisou ser arrastado por vizinhos que tentavam protegê-lo de novos disparos.
“Presenciei a última morte, que foi do menino Rômulo, que estava passando com a moto e levou um tiro no peito, pela Cidade da Polícia. Veio tiro da torre. Não é primeiro, não é o segundo e não é terceiro”, relata. A torre branca, que se destaca sobre o muro da favela, faz parte do Depósito de Evidências Criminais da Cidade da Polícia. Nela há buracos ou “seteiras”, espaços que podem sustentar canos de armas.
Segundo moradores, as execuções começaram a ocorrer a partir de setembro do ano passado, e já somam pelo menos 5 casos, além de uma tentativa de assassinato. Um ajudante de pedreiro de 22 anos recebeu um tiro na costela direita enquanto comprava água de coco para o filho de três meses, no mesmo dia da morte de Rômulo. “Não tinha tiroteio. A favela estava cheia, tinha muita criança na rua. O tiro veio da Cidade da Polícia. Todas as pessoas que estavam lá viram”, disse o sobrevivente ao repórter Rafael Soares, do jornal Extra.
Outro morador ouvido pela Pública confirma que não havia tiroteio na favela em nenhum dos casos e que as primeiras mortes ocorreram por volta de setembro de 2018. “A comunidade está triste por conta dessas mortes. Fica todo mundo com medo. O único suporte que as famílias estão tendo é quando o Ministério Público procura ou [organizações] de direitos humanos”, diz.
Na última semana de janeiro, Carlos Eduardo dos Santos Lontra, de 27 anos, também foi alvejado com um tiro nas costas e morreu na hora.
“Segundo relato dos moradores, todas as vítimas tinham características semelhantes: eram rapazes que estavam em uma moto, com mochila, boné, e que então teriam sido alvejados de uma altura de cima para baixo”, explica Pedro Strozenberg, Ouvidor Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
A Ouvidoria, junto ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria e a Defensoria Pública da União visitaram a comunidade na semana passada para recolher informações sobre os tiros. “Já foi feito um requerimento de informação à Polícia Civil”, explica o ouvidor.
Os primeiros tiros coincidem com o período da campanha eleitoral. À época, o então candidato e agora governador eleito, Wilson Witzel, chegou a prometer que empregaria ‘snipers’, atiradores de alta precisão, para executar criminosos armados, mesmo se não houver confronto.
“Os primeiros casos se referem a setembro, outubro e depois um caso em dezembro. O que equivale exatamente a um período de eleição e pós-eleição, e nessa hora onde a discussão em torno daquela frase do abate, do ‘tiro na cabecinha’, aparece no debate público”, diz o ouvidor.
Em novembro, o então candidato Witzel afirmou que “o correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo!”. Para Pedro, no entanto, “não é provável e nem factível” que tenha havido ordens do atual governo. Afinal, a execução de criminosos é ilegal, exceto em casos de legítima defesa.
Depois da visita das Defensorias a Manguinhos, o Ministério Público abriu uma investigação para apurar as denúncias. Antes disso, em setembro de 2018, os moradores já tinham levado reclamações ao Conselho de Segurança da comunidade, que conta com a presença de autoridades policiais. No entanto, ouviram do conselho que “seria impossível” atirar da torre da Cidade da Polícia.
Porém, uma perícia analisada pelo jornal Extra contradiz a afirmação. O laudo foi elaborado pela Divisão de Homicídios e pelo Ministério Público como parte da investigação das mortes. Os peritos descobriram que há “seteiras”, buracos abertos na torre vizinha à favela de Manguinhos – através dos quais armas podem ser apontadas para as ruas da comunidade. Segundo os peritos, é possível fazer tiros de precisão a partir do teto da torre devido a pequena distância até o local das mortes. No entanto, seria difícil atirar com precisão usando as “seteiras”, pois não há boa visibilidade.
No dia 30 de janeiro, um grupo de moradores fez um protesto diante da Cidade da Polícia para pedir o fim das execuções. “Os moradores e familiares foram lá pedir respostas. Mas a resposta foi nada, né? Disseram que até o momento não havia chegado nenhum caso sobre isso na mão deles”, diz a testemunha ocular ouvida pela Pública. “De lá de cima da Cidade da Polícia como ele vai saber se a pessoa tem mandado de busca, como ele vai saber se a pessoa tem passagem? Eles acham que os moradores de Manguinhos são como uma caça: eles são os caçadores e nós somos bichos aqui em baixo”, revolta-se.
A Pública teve acesso a uma cópia do relatório elaborado pelas Defensorias na semana passada. O documento deixa clara a situação de pavor que os moradores têm enfrentado. Os defensores encontraram sangue ainda marcado no chão da rua São Daniel. “No local em que há um cruzamento, estão situados uma pequena ladeira por onde transitavam diversas motocicletas vindo de uma rua mais ao interior da comunidade, bem como um largo em que há vários trailers que parecem ser pontos de venda de bebidas e lanches, mas estavam fechados no momento”, diz o relatório.
Os defensores observaram ainda as “seteiras” no alto da torre da polícia. “É tão perto que eu consegui ver o buraco de onde eu estava. E não imagino por que teria buracos ali”, disse à Pública Thales Treiger, defensor público da União.
“À luz de todas as informações prestadas pela população local, conclui-se pela verossimilhança da narrativa da vítima sobrevivente e das demais testemunhas ouvidas na localidade”, conclui o documento. “Faz-se necessária, com urgência, a instauração de investigação criminal independente, imparcial e diligente, sobretudo porque é possível que os agentes estatais envolvidos nas ações criminosas que causaram as mortes e lesão corporal dos últimos dez dias sejam integrantes da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro”.
O ouvidor Pedro Strozenberg relatou que as ruas onde ocorreram os homicídios estão, agora, desertas. “Está todo mundo assustado. É uma área de passagem e de lazer, onde a comunidade frequenta. Agora você fica superexposto. É um sentimento de vulnerabilidade imenso, de cerceamento da liberdade de ir e vir”.
Pedro, que frequentemente visita favelas para recolher denúncias sobre violências – seja da polícia ou do tráfico – contou à Pública que ficou chocado com os relatos. “É uma lógica da crueldade, não é um parâmetro da segurança. Nem é, digamos, uma situação de um confronto. É uma perspectiva onde predomina a barbárie, de você simplesmente eliminar quase que de uma maneira aleatória pessoas que tenham determinado estereótipo”.
O defensor Thales Treiger teve a mesma impressão durante a visita: impera o medo. “É uma coisa muito assustadora, é muito perturbador você estar em um lugar que dizem ‘não entra pra lá não que a polícia está atirando’”.
Após a vitória de Witzel, ele avalia que os moradores de favelas estão mais apreensivos. “Acho que as pessoas estão com mais medo, e estão se sentindo mais vitimizadas, mais na mira de uma arma. Elas dizem: ‘eu tenho que gritar, eu sou como um frango no abatedouro’”.
Para a moradora que testemunhou os assassinatos, a lei de silêncio só foi rompida porque em janeiro os tiros alvejaram jovens que não eram envolvidos com o crime. Antes, ela relata, os parentes de criminosos executados não ousavam protestar, embora a execução seja ilegal.
“Algumas pessoas que são do movimento e ninguém se manifesta. Agora a pessoa traficando, sendo morto pelas costas, sendo atingido por um tiro na cabeça e as pessoas se calarem? Têm muitos que não falam nada alegando que o menino era do tráfico e tinha que morrer mesmo. Mas gente, é uma vida!”, diz a moradora.
Para ela, o que a comunidade espera agora é o fim das execuções. “O que a gente quer aqui é justiça, né? Que apareçam os culpados que ficam atirando lá de cima. Vamos ver se melhora alguma coisa, porque se não acharem os culpados, eles vão esperar acalmar um pouco e depois sobem de novo”, diz.