Estatuto de terras indígenas, tão criticado por Bolsonaro, foi criado pelo regime militar

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Quando frequentemente ataca a legislação que rege as terras indígenas no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro atira em seus alvos preferenciais (como índios, ONGs, conspiradores internacionais e a esquerda), mas acerta em outro: o regime militar, que ele se recusa a chamar de ditadura, a direita e seus tribunos que definiram o estatuto consagrado na Constituição de 1988, redigido pelo coronel, ex-ministro militar e signatário do AI-5, o então senador Jarbas Passarinho.

A Constituição em vigor no Brasil foi a primeira da República a dedicar um capítulo aos indígenas.

Diferentemente das seis anteriores, passou a nomear os pioneiros moradores do país com o termo “índios” e não “silvícolas”. Mas o conceito definidor do direito dos autóctones à terra não era novo: o senador Passarinho importou o que consta das cartas constitucionais redigidas pelo poder militar —1967 e 1969.

O Brasil republicano teve até hoje sete textos constitucionais: de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988.

Três foram cartas produzidas em regimes ditatoriais:

1) a de 1937, do Estado Novo, outorgada pelo ditador Getúlio Vargas, também responsável, em 1943, pela instituição do 19 de abril como Dia do Índio;

2) a de 1967, redigida pelo Executivo e aprovada pelo Congresso ao final da Presidência do primeiro general do ciclo autoritário iniciado em 1964, Castello Branco (cujo mandato o jornalista Elio Gaspari definiu como “ditadura envergonhada”);

3) e a Emenda Constitucional nº 1, decretada pela junta militar que tomou o poder quando o presidente general Costa e Silva adoeceu. Esse texto reescreveu a Constituição de 1967 e institucionalizou o totalitarismo, dando início ao que Gaspari denominou “ditadura escancarada” em seus livros de história do período.

O tratamento jurídico dedicado aos povos que moravam no território brasileiro antes da conquista europeia mudou ao longo dos quase cem anos que separam a primeira Carta republicana, de 1891, e a atual, de 1988.

A Constituição de 1891 nem menciona os povos nativos. Já a de 1934 continha duas referências: o artigo 5º dispunha como competência privativa da União legislar sobre “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”; e o artigo 129 estabelecia: “Será respeitada a posse das terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.

Salvo por ligeiras mudanças de redação, as duas referências se mantêm nas duas Constituições seguintes: a de 1937, chamada “Polaca” (por ser influenciada pela Carta polonesa), que regeu a ditadura de Getúlio até sua queda em 1945; e a da redemocratização, em 1946.

Em outras palavras, já desde sua segunda Carta Magna, o Brasil atribui aos indígenas o direito de viverem nas terras que ocupavam tradicionalmente, proibindo-os de vendê-las.

No entanto, o texto não define a quem cabia a propriedade da terra indígena em que os índios moram permanentemente, da qual têm a posse e não podem vender. Criava uma lacuna jurídica sobre a propriedade, por exemplo, no caso do grupo indígena desaparecer.

A omissão foi eliminada na Constituição de 1967, que foi redigida pela administração do general Castello Branco e submetida ao Congresso para ser ratificada, com pequenas alterações, em um período de cerca de 40 dias.

Nessa carta, diz o artigo 4º: “Incluem-se entre os bens da União (…) as terras ocupadas pelos silvícolas”. Depois, repete-se, no artigo 8º, a referência à “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”, como nas anteriores. Já o artigo 186, sobre a posse da terra, trouxe uma redação nova: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”.

A terra indígena passou a ser propriedade da União, tendo os índios direito de posse e uso permanente sem no entanto poder vender ou fracionar.

Em 1969, o efêmero governo exercido pelos três comandantes das Forças Armadas (após o afastamento de Costa e Silva, por doença) anulou a Carta de 1967 e decretou a “Emenda Constitucional nº 1”, que era uma nova Constituição de fato.

Entre inúmeras mudanças, o texto manteve no artigo 4º o conceito de que as terras indígenas são patrimônio da União e detalhou mais o estatuto da posse, no artigo 198:

“As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

§1. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§2. A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.”

O conjunto dos artigos nas duas Constituições redigidas pelos governos militares criou um novo paradigma: a terra ocupada por índios é um bem público, parte do patrimônio da União, com posse permanente e usufruto das comunidades indígenas, que não podem vendê-la; e eventuais outros ocupantes não podem reivindicar sob qualquer argumento indenizações, quer da União, quer da Funai.

A emenda de 1969 regeu o Brasil até que foi promulgada a Constituição de 1988, redigida pela Assembleia Constituinte eleita em 1986. Durante os dois anos de trabalho, vários grupos se digladiaram em torno da questão das terras indígenas e dos direitos de sua exploração, inclusive da extração de minérios.

De um lado, mineradoras pressionaram constituintes para liberar a extração e o garimpo; de outro, indigenistas denunciavam que um terço das terras eram reivindicadas por empresas para fins de licenças, e associações de geólogos propunham que os minérios em áreas indígenas fossem considerados como reserva para o futuro.

O pensamento militar, que tinha uma referência em Jarbas Passarinho—então senador do Pará pela Arena—, era contrário à exploração mineral intensiva (por temor de que o destino das riquezas fosse o exterior) e não queria que os índios pudessem vender ou fragmentar suas terras (como propriedades individuais ou coletivas, como defende hoje Bolsonaro).

Passarinho acumulou um extenso currículo em cargos destacados durante os governos militares: foi governador do Pará (1964-66), sob Castello Branco, ministro do Trabalho de Costa e Silva (1967-69), da Educação sob Médici (1969-74) e da Previdência Social de João Figueiredo (1983-85).

Como membro do Conselho de Segurança Nacional, em dezembro de 1968, defendeu e assinou o AI-5, que deu poderes extraordinários ao presidente da República e marcou o início do período mais pesado do regime militar. Como senador pelo Pará (primeiro pela Arena, depois pelo PDS), foi presidente do Senado de 1981 a 1983 e Constituinte em 1986. Foi nessa condição que participou ativamente da negociação do capítulo sobre terras indígenas, terminando por dar a forma final ao texto.

Durante os trabalhos da Constituinte, coube ao deputado Alceni Guerra (PDS-PR) o cargo de relator da comissão que produziu os artigos sobre direitos de índios, negros, homossexuais, minorias religiosas e portadores de deficiência. Hoje, aos 73 anos, ele é mais conhecido como autor do projeto que instituiu a licença-paternidade.

Ao final dos trabalhos de cada grupo setorial, os textos propostos eram enviados para a Comissão de Sistematização, responsável pela redação final, sob a chefia do amazonense Bernardo Cabral (PMDB).

“Quando chegou à Sistematização, o senador Cabral alterou substancialmente o capítulo que tínhamos redigido sobre os direitos indígenas”, conta Alceni, que viria a ser ministro da Saúde no governo Collor (1990-92).

“Não acho que [o senador] Cabral atendesse ao lobby contrário. Na verdade, ele trabalhava de forma autônoma, pegava os relatórios todos e reescrevia conforme sua visão daquela questão. Ele alterou inúmeros relatórios além dos direitos indígenas.”

Diante das alterações feitas por Cabral, o ex-ministro militar interveio: “Então, o senador Jarbas Passarinho foi fundamental, inclusive porque ele e Cabral eram do Norte do país e tinham um bom relacionamento. Passarinho reconstruiu o texto, devolveu nossa proposta para o texto final da Carta”.

O deputado constituinte José Carlos Sabóia (PMDB-MA) fez parte da comissão de direitos de minorias e também aponta Passarinho como responsável pela forma final do capítulo de direitos indígenas: “É certo que as forças políticas conservadoras e de direita aliciaram uma significativa quantidade de constituintes do PMDB e, provavelmente, teriam aprovado o danoso parecer do relator Cabral se não tivesse a interveniência do Jarbas Passarinho a favor dos direitos dos índios”.

Como ex-deputado federal (1983-86), Márcio Santilli (PMDB) acompanhou de perto os trabalhos da Constituinte. Hoje diretor do Instituto Socioambiental, ele conta: “O Passarinho apresentou uma emenda ao projeto apresentado pelo Bernardo Cabral, que barbarizou os direitos indígenas. Como líder do PDS, Passarinho bancou aquele texto articulado, do qual ele próprio foi o principal autor”.

O texto elaborado pelo coronel recuperava o estatuto proposto pelos militares em 1967. Embora tenha uma redação mais longa, como é característica da Constituição de 1988, a Carta replica, no artigo 20, o conceito de que “são bens da União” as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” e atribui a mesma condição “à faixa de até 150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres, designada faixa de fronteira”, “considerada fundamental para a defesa do território nacional”.

Depois da Constituinte, Passarinho voltou a ocupar um ministério, o da Justiça no governo Collor, quando foi o responsável por dar as assinaturas finais para a criação da terra indígena ianomâmi (1992), a maior do país, com 9 milhões de hectares espalhados entre Roraima e Amazonas. Uma medida do governo José Sarney (1985-90) havia determinado a criação de diversas “ilhas” cercadas de terras públicas. O governo Collor reverteu a medida e aprovou a criação de um território contínuo.

A medida provocou sempre reações antagônicas de proprietários de terra e políticos de Roraima. Um dos argumentos contrários à reserva ianomâmi é o de que ela se sobrepõe à faixa de fronteira, ameaçando a segurança nacional. Em diversos artigos, Passarinho repetidas vezes classificou o argumento como absurdo: ao contrário, dizia, nessas áreas, a União é “duplamente dona do território” e por isso seus agentes podem agir dentro delas em defesa do país em caso de qualquer ameaça.

Da FSP