Festival Lula Livre, ato público contra Bolsonaro e por Lula Livre
O som de um inocente preso pode provocar um tsunami de protestos de milhares de vozes, violões, guitarras, baterias e corações juntos. É essa a ressonância do Festival Lula Livre, que terá sua segunda edição no dia 2 de junho, das 13 às 20 horas, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, com vocação para se firmar como o fórum natural desse grito por liberdade que se tornou infatigável e incontornável. Em tempos bolsonaros, deve ser também o primeiro grito público exclusivo da classe artística pela libertação de Lula da prisão política.
Antes desse haverá o teste de 1º de maio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), também no Anhangabaú e com vocação para os gritos de “Lula Livre”, mas estrelado por artistas sem perfil de luta contra o Estado de exceção, como as feministas sertanejas Maiara & Maraisa e Simone & Simaria. O caso do festival é diferente. Havia sido marcado inicialmente para 5 de maio, mas foi adiado pela proximidade com os shows do Dia do Trabalho. Virá convocado pelo manifesto O Som pela Liberdade, já assinado por pesos-pesados da intelectualidade e da cultura nacional como Anna Muylaert, Antônio Pitanga, Arnaldo Antunes, Boaventura de Souza Santos, Celso Amorim, Chico Buarque, Dilma Rousseff, Eliane Caffé, Emir Sader, Eric Nepomuceno, Fernando Morais, Frei Betto, Gilberto Gil, José Celso Martinez Corrêa, José de Abreu, Juca Ferreira, Leci Brandão, Leonardo Boff, Luiz Carlos Barreto, Marieta Severo, Martinho da Vila, Mino Carta, Osmar Prado, Patrícia Melo, Raduan Nassar, Silvio Tendler, Tata Amaral, Toni Venturi e Yamandu Costa, além do escritor moçambicano Mia Couto.
“A prisão de Lula é um símbolo do nosso retrocesso. Viramos o país onde o trabalho não tem mais regulação, o salário mínimo virou lenda e a única liberdade que existe é o aumento da nossa exploração”, afirma o manifesto, disponível na internet. A mudança de data mantém em suspense o elenco definitivo a ser reunido, de que já eram ventilados nomes conhecidos da música brasileira como Chico César, Odair José, Otto e Thaíde, além de novos valores como Aíla, Aláfia, Aline Calixto, Ana Cañas, Emicida, Filipe Catto, Marcelo Jeneci, Mombojó, Tiê e Unidos do Swing.
Nomes de impacto devem engrossar o caldo e estão sendo mantidos em segredo por ora. A estrutura a ser montada é grande, com dois palcos, direção musical de Daniel Ganjaman (que trabalha com o rapper Criolo) e Michele Abu e direção artística de Luiz Fernando Lobo. O Partido dos Trabalhadores (PT) ajuda informalmente na iniciativa voluntária dos artistas, segundo explica seu diretor nacional de cultura, Márcio Tavares: “O evento tem caráter de doação humanitária para uma causa. Todo mundo está se doando. Todo mundo, da equipe de produção aos artistas envolvidos, está trabalhando voluntariamente”.
O paulistano Ganjaman diz buscar um formato histórico: “A ideia é formar uma superbanda com músicos de várias bandas, para ter representatividade, a banda por si só já ser uma história. Em princípio, eu não queria que fossem os artistas cantando as próprias músicas. Queria passar por um repertório mais amplo, para ser uma coisa de fato inédita e que conte uma história que leve à questão que está sendo levantada”. A baiana Michele Abu deve dirigir os artistas mais alternativos num outro show coletivo. “Estamos cada vez mais sem voz, patrocínio e recursos”, diz ela, na contramão do discurso bolsonarista sobre privilegiar os pequenos produtores de cultura. “O artista que não percebeu o quanto fomos beneficiados pelos governos de Lula e Dilma vai perceber agora.”
O Festival Lula Livre, pela voluntariedade das adesões, pelo afluxo voluntário de amantes da democracia, da legalidade e simpatizantes de Lula, torna-se um fato político inédito da esquerda brasileira neste momento de dilapidação do patrimônio nacional. É importante não só porque encarna a luta contra a injustiça, mas também porque supera um momento de apagamento da classe artística diante do início do governo Bolsonaro e porque enfrenta uma questão-chave dessa investida contra a democracia: a supressão progressiva da liberdade de expressão, o retorno da censura como estratégia da guerra suja do regime bolsonarista.
Lulista contumaz, a cantora e compositora paulistana Ana Cañas interpreta a postura acuada de parte da classe a que pertence: “Aqueles que ficam acuados, no meu humilde entendimento, têm medo das agressões por parte dos que apoiam o atual governo e também da perda de eventuais shows, patrocínios ou marcas que os apoiam. Posicionar-se tem um preço, tem consequências. Tomar essa decisão é pesar para si o que é mais importante na sua vida, fatalmente. Lutar é abrir mão de privilégios”. O momento que a classe cultural atravessa parece ser o descrito pelo músico pernambucano Geraldo Azevedo: “O medo é imprescindível. É através do medo que a gente cria recursos para vencê-lo”.
Diz a cantora e compositora paraense Aíla: “Os tempos estão cheios de ódio e ameaças de morte, isso é o que o atual governo estimula nas pessoas: armas, guerras e massacres, e é claro que isso chega aos artistas e intelectuais que se posicionam também. Eu não calo. Estamos passando por um momento de retrocessos absurdos, não podemos ficar acuados agora. Estamos, infelizmente, só no começo.” O pernambucano Otto concorda: “Não só os artistas, mas a maioria da população votou com medo, acuada, amedrontada por esse modelo de política do terror, da intimidação bélica, da arrogância e da falta de respeito. A imposição do medo está valendo até agora. A classe média e a elite junto com os grandes veículos de comunicação passaram da conta e hoje sofrem com a própria criação. Criaram um monstro de consciência zero, destruidor de tudo, até deles mesmos, irônico se não fosse trágico”.
Censurar e cercear são sonhos de todo governo autoritário. Quando isso encontra guarida na Justiça, as coisas pioram sensivelmente, da perseguição sistemática a filmes e cineastas, como Kleber Mendonça Filho, à tentativa de barrar o acesso aos recursos públicos, direito de todo cidadão, pela via da lei federal de incentivo à cultura. “Lei Rouanet. Essa desgraça dessa Lei Rouanet. Começou muito bem intencionada e depois virou aquela festa que todo mundo sabe, né? Cooptando artistas e gente famosa para apoiar o governo. Quantas vezes você viu figurões aí, não vou falar nomes, não, figurões defendendo ‘Lula Livre’, ‘viva Che Guevara’, ‘o socialismo é o que interessa’, ‘Lula é isso, é aquilo’ em troca da Lei Rouanet?”, disse um inacreditável chefe de Estado durante uma transmissão de internet. Na mesma “live”, na noite de 18 de abril, todos os casos mencionados por ele como exemplos de abuso, tanto na Lei Rouanet quanto nos patrocínios da Petrobras, eram mentira, da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira à performance Macaquinhos.
Os instrumentos de que o establishment autoritário lança mão para atacar as liberdades, de expressão e de manifestação, são muitos, geralmente travestidos de moralidade e legalidade. Exemplo é o cerco ao Congresso Nacional definido pelo ministro da Justiça (e inimigo preferencial de Lula) Sérgio Moro para impedir manifestação legítima dos povos indígenas contra a criminosa reforma da Previdência. No último dia 4, o governador de São Paulo, João Doria, vetou a realização da Feira Nacional da Reforma Agrária no Parque da Água Branca, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já havia feito três edições no local. Doria alegou que iria gente demais ao local.
“Lula é o principal símbolo de tudo que está sendo destruído pelo bolsonarismo. Por questões políticas e humanitárias não pode ser abandonado. Não pode haver nenhuma dúvida sobre a defesa de sua liberdade. Caminham juntas a defesa de Lula e da democracia no Brasil”, afirma o cantor e compositor paraibano Chico César. “Neste momento, falar da liberdade de Lula é falar da retomada da democracia no Brasil. Estamos vivendo claramente um estado de exceção e Lula é seu preso político. Independentemente de partidarismo, a prisão dele fere nossa conquista democrática”, diz o cantor gaúcho Filipe Catto.
O fenômeno de um novo despertar pós-eleições (finalmente) vem acompanhado de outro, o do aparecimento de primeiros representantes ditos arrependidos da classe cultural, caso do cantor de rock Dinho Ouro Preto, da banda brasiliense Capital Inicial, que outrora posou abraçado a Sérgio Moro e hoje ensaia fraca crítica ao ex-camarada, e do cineasta carioca José Padilha, autor de produções que se revelaram peças de propaganda protofascista, como os filmes Tropa de Elite (2007 e 2010) e a série da Netflix O Mecanismo (2018). Até aqui entusiasta da Lava Jato, Padilha ensaiou uma cambalhota retórica, denunciou as milícias e atacou Moro em artigo na Folha de S.Paulo. Em troca, foi bombardeado pela intelectualidade brasileira (outro sinal de uma possível mudança de ventos). “Fato é que figuras como Padilha ganham na alta e na baixa do fascismo! (…) Depois a gente se arrepende. E também lucra com o arrependimento!”, escreveu para a Mídia Ninja a comunicadora amazonense Ivana Bentes. “É, Padilha, não doeu só na consciência, doeu no bolso! Seu filme O Mecanismo também fica queimado no exterior e entra pela porta dos fundos da história do cinema brasileiro, como testemunha do que realmente significa ‘viés ideológico’”, completou.
A guerra cultural entre valores que a caricaturização chama de “bolsominions” e “comunistas” vaza não só para os palcos de shows e telas de cinemas, mas também para os campos de futebol. A torcida do Corinthians grita “Lula Livre” enquanto o senador bolsonarista Major Olímpio (PSL-SP) entrega medalhas aos jogadores do time com camisa brasileira de número 17. Notabiliza-se entre os times o Esporte Clube Bahia, que criou um Núcleo de Ações Afirmativas e tem dado show em campanhas que pregam a tolerância religiosa, defendem a demarcação de terras indígenas e combatem a violência contra a mulher, a homofobia e o racismo. Na cultura ou no esporte, a insatisfação com o fiasco Bolsonaro, de um lado, e a campanha por Lula Livre, de outro, despontam como prováveis próximos fronts da guerra política brasileira.