Governo muda política de drogas e dará verbas a igrejas e charlatões
Uma em cada quatro comunidades terapêuticas do país — voltadas ao tratamento de dependentes químicos — é financiada pelo governo federal. Em março, o Ministério da Cidadania assinou contratos com 496 delas, para um repasse de R$ 153,7 milhões ao ano. São sobretudo ligadas a religiões, católicas e evangélicas, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em abril, publicou-se o decreto com a nova Política Nacional de Drogas (PNAD). A tônica é a promoção da abstinência — modelo das comunidades que receberam verbas federais. Algumas têm psicólogos e assistentes sociais, mas sem aparato médico. A base do tratamento é a internação.
Em caminho diferente estão os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), da rede pública, que, por lei, devem ter equipe multiprofissional, como psiquiatras e psicólogos. Os 331 Caps AD do país recebem ao ano R$ 158 milhões do governo federal.
Neles, o modelo é o da redução de danos, conjunto de estratégias que tem, entre outros objetivos como a melhoria de vida do sujeito, a abstinência.
Para especialistas, como a psiquiatra Nicola Worcman, com o decreto e o repasse de verbas às comunidades terapêuticas, definiu-se uma mudança na política pública para tratamento de dependência química no país. Para ela, o tema é complexo.
— Não há consenso entre os pesquisadores sobre o modelo ideal. A discussão sobre o uso de drogas encarna um dos piores temores da sociedade, a degradação moral. A ciência pode ser contaminada por ideologias, e a maior contribuição que se pode oferecer é não dar ênfase a uma ou outra posição ideológica — diz a psiquiatra.
Ao GLOBO, no entanto, o secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro Júnior, afirmou que uma mudança clara foi feita no governo Bolsonaro:
— A nova PNAD sai da redução de danos para ajudar o paciente a buscar abstinência. As comunidades trabalham nessa perspectiva, era natural que fossem mais incentivadas.
Na Fazenda da Esperança – Sítio Liberdade, num bairro distante do centro de Teresópolis, vivem 26 homens. Têm entre 18 e 55 anos e são chamados de “internos”. Isso porque, durante um ano, devem ficar dentro da fazenda, em reclusão. Nos primeiros três meses, nem sequer podem receber visitas. É o que reza o tratamento de dependência química segundo a comunidade terapêutica católica, que tem 89 unidades no Brasil. No mundo, são 140 as Fazendas da Esperança. Nelas, acredita-se que Jesus e a reclusão curam a adição.
A associação, fundada pelo frei franciscano de origem alemã Hans Stapel e tocada por uma organização internacional de fiéis católicos, é a maior beneficiada entre as que assinaram contratos com o governo. No total, as Fazendas da Esperança recebem R$ 12 milhões — destes, R$ 4,7 milhões são de contratos novos, assinados em março. A filial de Teresópolis, uma das três do Rio, é dirigida por Antonio Toscano, ex-viciado em cocaína. Lá, as quatro casas onde dormem os dependentes precisam de reparos. Hoje, com o dinheiro das cestas básicas que produzem para vender às famílias dos internos — esta é a “mensalidade” pela internação —, só é possível bancar o básico, como a conta de luz.
Os funcionários são voluntários — muitos deles ex-dependentes químicos que passaram pela reclusão de um ano e, depois de recaídas fora da fazenda, decidiram voltar.
Na sede, localizada em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista, são três unidades — duas masculinas, com 120 homens cada, e uma feminina, com 60 mulheres. O tratamento também tem na abstinência e na religião os principais mandamentos.
Numa das casas em Guaratinguetá, L., palhaço da zona leste de São Paulo, se trata do vício em cocaína. Chegou há dois meses e está ansioso para ver a família. É o momento mais difícil, diz ele. Para lidar com crises de abstinência, comuns no início da internação, são oferecidas guloseimas e orações — não há médicos ou remédios psiquiátricos.
— Quando os mais novos têm crise de abstinência, ou saudade da família, os mais antigos conversam. Um auxilia o outro a progredir na recuperação. Nosso tripé é o trabalho, a espiritualidade e a convivência comunitária — diz o diretor-geral da sede, padre José Luis de Menezes.
Ex-viciado em crack e morador de rua em São Paulo, Gustavo Duarte fez sua “caminhada” (como chamam o período de reclusão) em 2014.
— Nunca vi uma crise de abstinência. Jesus segura. E a pessoa pode sair quando quiser — afirma Duarte.
Ele mesmo entrou e, de certa forma, nunca saiu. Começou em Guaratinguetá, depois foi trabalhar (sempre como voluntário, sem salário) em Moçambique e, por fim, em Teresópolis.
A rotina é espartana: às 6h, reza-se o terço; às 6h30, ouve-se “a palavra de Deus”; às 7h, café; às 8h, trabalho — dar lavagem aos porcos, assar biscoitos para consumir ou vender nos arredores. É só nessas ocasiões, ou para resolver pendências (como comprar insumos), que saem da fazenda.
— Não sinto falta do mundo lá fora. Deus escolhe meu lugar — diz Duarte.
Antônio Pereira dos Santos, de 33 anos, tem os nomes dos filhos tatuados em cada braço e um terço no pescoço com a imagem de São Francisco. O santo dá nome à casa em que ele mora há dez dias, na Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá, a 180km da cidade de São Paulo. Durante o dia, Antônio cuida dos porcos. Mantém a cabeça no trabalho para não pensar no vício (“pedra, maconha, cocaína”). É o que o ajuda a “ficar firme”, diz, junto com a rotina religiosa, usada como carro-chefe para tratar dependentes de álcool e outras drogas.
— Estava muito embalado na droga. O que me ajuda é Deus. A missa me fortalece, e ter regras também ajuda — afirma Antônio, que está na segunda internação.
Na primeira, há cinco anos, ficou dois meses e voltou “pra biqueira”. Ele diz que já foi a psicólogos, parava por um tempo, e depois “voltava pior”.
Outros 50 voluntários, em média, convivem com os acolhidos na fazenda. A tensão existe principalmente nos dois primeiros meses, quando os acolhidos não podem receber visitas. Nesse período,é alta a disponibilidade de doces, para amenizar a ansiedade. Depois, as famílias podem visitar uma vez por mês, sem pernoitar.
Os acolhidos acordam às 6h e rezam o terço. Depois é escolhida uma frase do dia, normalmente um trecho do Evangelho. Tomam café e dali seguem para o trabalho. Alguns cuidam da horta, dos jardins, outros dos animais. Os mais antigos trabalham em uma fábrica de madeira plástica ou na de água sanitária, ambas dentro da fazenda. O trabalho é parte da terapia, dizem os responsáveis — com o produto do trabalho se forma um “kit” que as famílias ajudam a revender em suas cidades e retornam cerca de um salário mínimo à fazenda.
Ao fim do dia, cada grupo se reúne para mais uma oração, seguida de lanche com café e pão produzido também lá. Depois, há tempo livre para leitura ou esportes no campo de futebol ou no ginásio. Às 18h30, se juntam novamente para uma missa, jantam e, antes de dormir, há uma nova roda de conversas e reza do terço.
Cícero Carlos, de 53 anos, está quase no final do tratamento, no décimo mês.
— Vivia com depressão, no álcool, no jogo. Só conhecia Deus de ouvir falar. Encontrei paz aqui. Vou sair e vou voltar de novo, como voluntário — diz.
Não há médicos nem psicólogos nessa unidade de Guaratinguetá. Quando algum acolhido tem uma crise de abstinência ou se sente mal, os responsáveis da fazenda chamam a emergência ou levam para um pronto-socorro.
Para ajudar a evitar a reincidência, o diretor-geral da Fazenda da Esperança, padre José Luis de Menezes, conta que a instituição tem grupos de apoio nas cidades. São os chamados Grupos Esperança Viva, que os acolhidos são incentivados a frequentar pouco antes de sair e ao final da internação.
Segundo o padre, 70% dos acolhidos não reincidem no vício ao sair da fazenda.
São 10h da manhã no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Miriam Makeba, em Ramos, e 15 pessoas estão numa sala da casa. Alguns são moradores de rua, outros vieram da região do Complexo do Alemão ou da Maré e, diante dos olhos de uma filóloga, relatam uns aos outros suas trajetórias, numa oficina de contação de histórias. A atividade é parte de um amplo programa para valorizar e envolver pacientes em tratamento de dependência química.
Lá, estão sob cuidados de 43 profissionais — médicos clínicos, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, entre outros profissionais. São treinados para coordenar o tratamento aos 450 pacientes registrados na unidade que, ao todo, abrange o atendimento de 980 mil pessoas, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. As diretrizes do governo, no entanto, preconizam que haja uma unidade para cada 250 mil habitantes.
Na cidade toda, são sete os Caps AD — sigla para Álcool e Drogas, em referência ao atendimento especializado prestado nesses centros. Um paciente em tratamento ali custa aos cofres públicos cerca de R$ 250 por mês, num cálculo feito apenas a partir da verba destinada àquela unidade pelo governo federal.
Os Caps, como prevê a legislação, são inseridos em territórios estratégicos. Ao contrário das comunidades que preconizam a abstinência a e a religião, inseridas em áreas rurais quase sempre remotas, esses centros de saúde pública estão em regiões onde a oferta de drogas (e possivelmente seu consumo) é maior.
Vide o Caps AD Miriam Makeba, numa zona entre os complexos do Alemão e da Maré. Os pacientes não são internados, embora existam nove leitos para pernoitar. Podem sair quando bem entendem, mas a rede de saúde é articulada de forma a guiar seus passos até a abstinência.
Foi assim que a transexual Lorani Sabatelly, de 46 anos, que trabalhava como profissional do sexo na Maré, parou de usar cocaína, vício que carregou por 14 anos, até se tornar agora uma “profissional da redução de danos”, como se define, abrindo o largo sorriso depois da oficina de literatura no centro de saúde.
— Com acompanhamento da psiquiatra e apoio médico, terapia e medicação, fui abandonando a cocaína. Eu me envolvi no Caps, porque são muitas as atividades, você se sente muito produtivo, com vontade de viver, sabe? — diz ela, que fez uma oficina para entender melhor a redução de danos e agora foi contratada pelo serviço de saúde para trabalhar na área. — Hoje eu mesma vou aonde já trabalhei e converso com as meninas, distribuo preservativos, escuto e apresento o atendimento.
Nos últimos cinco meses, Lorani morou numa unidade de atendimento da Secretaria de Saúde. Foi encaminhada pelo Caps para a casa com capacidade para 12 pessoas, onde dormem pacientes mais vulneráveis. A rotina inclui tarefas domésticas, oficinas e acompanhamento médico. A acolhida dura até seis meses.
— Nosso trabalho passa por dar ferramentas para que o indivíduo retorne à sociedade, para que saiba lidar com a oferta de drogas, que possa se questionar sobre o que o leva a consumir e como lidar com isso — diz a coordenadora técnica do Caps Lídia Marins.
Aerton Pereira de Lima tem 54 anos. Destes, passou 17 nas ruas. Dormia ora em marquises na região do Complexo do Alemão, ora na Lapa, onde viveu nos últimos anos. Tem cicatrizes nos cotovelos e joelhos porque, de bêbado, precisava engatinhar.
— Muitas vezes não conseguia parar em pé, ia engatinhando até o meio fio para urinar, e não dava tempo — diz, sério, sem se deixar contaminar pela emoção dos que ouvem seu relato. — Não aguentava mais dormir na pedra, o corpo já não é mais o mesmo. Estou ficando velho.
Encontrou uma assistente social que o encaminhou ao Caps Miriam Makeba. Quando conversou com o GLOBO, completava seu nono dia num dos leitos na unidade de saúde psicossocial. O tempo máximo ali está prestes a se esgotar, e Aerton deve ser encaminhado a uma unidade de acolhimento, onde pode permanecer por até seis meses. Lá, terá tarefas domésticas e atendimentos médico, terapêutico e social.
— Já estou tendo café da manhã, almoço, lanche. Um luxo para quem tomava cachaça no bico desde que acordava. Também me deram os remédios para tuberculose e estão tratando meus machucados. Estou sem beber já e vou assim aos pouquinhos. Quero logo voltar a ser motorista, como eu era antes de me tornar alcoólatra — conta ele, sob os olhos de profissionais de saúde aos quais se volta para agradecer entre uma frase e outra.
L. (ele prefere dar apenas a inicial do primeiro nome) é um palhaço da zona leste de São Paulo que veio para a sede da Fazenda, em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista, para se tratar do vício em cocaína. Ele chegou há cerca de dois meses e está ansioso para ver a família.
No início do tratamento, os acolhidos ficam sem ver nenhum parente. É o momento de maior dificuldade, ele diz. Uma das horas preferidas é a do lanche, no final da tarde. O pão, ele conta, é produzido na padaria dentro da própria fazenda.
De O Globo