Inédito: PM paulista dá aula de respeito e assume 1º soldado transexual
A Polícia Militar de São Paulo tem pela primeira vez, em quase dois séculos de história, um policial transexual. Emanoel Henrique Lunardi Ferreira, o soldado Henrique, trabalha em Ituverava, na região de Ribeirão Preto. O G1 foi até o município, que fica a 420 km da capital paulista, para conversar com o policial militar trans sobre a decisão inédita da corporação de reconhecê-lo como homem depois de ter entrado na PM como mulher.
O primeiro policial militar transexual do estado ingressou na corporação em 2015 como a soldado Emanoely. Em 2018, a PM atendeu seu pedido e o reconheceu como um policial do gênero masculino, como ele sempre quis. Passou a ser chamado de soldado Henrique em um processo que durou quase um ano até ser autorizado pelo comando da Polícia Militar.
Apesar de ter nascido há 24 anos em um corpo de mulher, Henrique nunca se identificou com o gênero feminino, pois sempre se via como homem.
Por gostar de garotas, na adolescência assumiu ser homossexual. E, em 2016, já adulto, quando se formou na PM, procurou ajuda psicológica particular, pois não entendia porque seu corpo de mulher o incomodava tanto. Durante a terapia acabou se descobrindo transexual.
Em 2017, o soldado passou então a exigir ser tratado pelo gênero masculino. Depois pediu à Polícia Militar para mudar o nome. O psicólogo militar ouviu Henrique e concordou em alterar os registros. Mas isso levou quase um ano para acontecer.
“A Polícia Militar tem 188 anos e este é o primeiro caso de transexual. Temos casos de homossexuais na PM, mas de transexual é o primeiro caso”, diz a capitã Cláudia Lança, chefe de comunicação social da PM em Franca. “A PM, com isso, deseja mostrar que está aberta sim a acolher e a receber pessoas com identidades de gêneros diferente, com opções sexuais diversas.”
Antes de procurar a PM para pedir a alteração dos seus dados femininos para masculinos, o soldado Henrique diz que teve certo receio. “Eu tinha medo de levar a questão de dizer: ‘Eu sou trans’ e ser expulso por isso”, lembra.
Até então ele desconhecia que tinha direitos, mas buscou informações. Tanto que seu pedido à Polícia Militar se baseou em uma lei estadual que determina que transexuais e travestis sejam tratados em repartições públicas pelo nome social e reconhecidos pelo gênero com o qual se identificam.
Ainda em 2017, ele começou o tratamento hormonal à base de testosterona para se tornar visualmente homem.
“Eu nunca me senti muito à vontade”, diz o soldado sobre o corpo biológico de mulher com o qual nasceu. “Se eu parar a transição, pode ser que, com o tempo, a minha menstruação volte. Não é o que eu quero”.
Enquanto a PM analisava o caso de Henrique, em 2018 ele se submeteu à cirurgia particular de mastectomia para retirada dos seios.
“Hoje eu tive a oportunidade de tomar meu primeiro banho de chuva após ter feito a minha mastectomia. Enquanto todas as pessoas corriam para fugir da chuva, eu continuei caminhando”, postou Henrique no seu Instagram. “A alegria que eu senti por continuar sendo o mesmo homem, por passar despercebido, ficou estampada no meu rosto.”
Naquele mesmo ano, ele foi ao cartório da região da cidade onde nasceu, em Iracema do Oeste, no Paraná, e alterou nome e gênero na certidão de nascimento.
Emanoely Lunardi Ferreira, sexo feminino, deixou de existir nos documentos. Deu lugar oficialmente a Emanoel Henrique Lunardi Ferreira, sexo masculino.
“A minha retificação foi feita diretamente no cartório onde eu fui registrado, que foi lá no Paraná. Eu levei os documentos num dia, no dia seguinte eu já saí com a minha certidão nova e fiz as minhas retificações posteriores”, diz Henrique.
Leonir Lunardi, a mãe de Henrique, o ajudou na escolha do novo nome. “Mãe, vamos decidir meu nome? Como se estivesse nascendo alguém de novo. Isso foi muito bacana porque ela precisou ver a filha dela morrer para nascer o filho”, se emociona o soldado. “Eu coloquei Emanoel, que é o masculino do meu antigo nome, porque minha mãe pediu. E pus Henrique porque era um nome com o qual eu me identificava.”
A mãe acrescenta: “Muitas pessoas que passam pela mesma situação ou até situações parecidas não têm como enfrentar a família, enfrentar a sociedade, enfrentar até eles mesmos. Porque hoje o preconceito ainda é muito grande”, diz Leonir.
A alteração do registro civil para transexuais e travestis foi autorizada em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Não há necessidade de se passar por operação para redesignação sexual para realizar a mudança.
“Retirada de útero e ovários eu pretendo fazer futuramente”, cogita Henrique, que, no entanto, ainda não pensa na cirurgia de redesignação. “Se eu fosse fazer eu teria que fazer fora do Brasil.”
Em agosto de 2018, quando voltou de férias, Henrique finalmente teve conhecimento de que a PM reconheceu sua masculinidade. A partir dali determinou que ele passasse a ser tratado oficialmente como sempre quis: “SD PM Henrique”.
“Agora é o Henricão. Agora mudou, agora é ele entendeu?”, brinca o soldado sobre quando recebeu a nova identificação.
Com a autorização da PM para chamar o policial pelo nome masculino, Henrique também teve direito a outras mudanças: trocou o uniforme feminino pelo masculino. O batom, a maquiagem e coque para prender os cabelos compridos foram deixados de lado. E pôde realizar o grande sonho de raspar a cabeça.
“Quando foi autorizado o corte masculino, cortei meu cabelo e saí, assim, achando que foi a melhor sensação da minha vida na época, sabe. Nunca me senti tão feliz, tão livre”, diz Henrique.
Ele agora figura entre os 71.882 policiais do sexo masculino da PM no estado. Emanoely sumiu. Não está mais entre as mulheres. Atualmente são 10.424 policiais do sexo feminino.
Enquanto via a barba crescer e notava a voz engrossar, Henrique percebia também o preconceito. Gente intolerante ainda se incomoda com a felicidade dele.
“Eu pude reparar que pessoas que se formaram comigo no curso de formação da polícia militar deixaram de me seguir nas redes sociais após descobrirem que eu estava transicionando. E para mim isso é um tipo de preconceito. Acho que de uma forma velada”, comenta Henrique.
Mas a maioria das mensagens ainda são de apoio. O reconhecimento e respeito começa diretamente pelos colegas de farda da 3ª Companhia (Cia) do 15º Batalhão da Polícia Militar do Interior (BPM-I)
“Infelizmente uma sociedade como um todo tem muito preconceito”, afirma o tenente Tiago Melo, comandante interino da 3ª Cia do BPM-I. “Existe o respeito na condição de policial militar, de um agente de estado. É uma pessoa extremamente competente que faz seu serviço muito bem na atividade operacional, bem como na parte administrativa.”
Sargento Celso de Oliveira Louzada é um dos principais parceiros de trabalho de Henrique. Aos 51 anos, ele soube compreender a importância de aceitar o colega de viatura como ele quer ser visto.
“Como ele mesmo disse, não foi nada fácil. Porém, o que eu tinha que fazer? Tinha que apoiar por que eu precisava de um parceiro comigo”, diz Celso. “Eu procurei dentro das possibilidades sempre estar tratando já no gênero masculino. Na verdade, cada vez que eu tratava no gênero masculino eu estava dando o maior apoio ao policial. E acredito que ele se sentia mais realizado.”
Antes da transição de gênero de Henrique, porém, Celso teve de atender um pedido do parceiro, que lembra do episódio com bom humor.
“Ele vinha me cumprimentar, aí ele vinha dar beijinho, aí eu saía assim, que está acontecendo? Acho que foi umas duas vezes para ele perceber que eu não gostava daquilo. Que eu não me sentia à vontade”, ri o soldado.
A cidade de Ituverava tem pouco mais de 40 mil habitantes. Neste ano não registrou nenhum assassinato, por exemplo, segundo o site oficial da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado de São Paulo.
O município é mais conhecido por ter sido o lugar onde foi criado o nadador Gustavo Borges, medalhista olímpico, e a terra onde nasceu o compositor Vitor Martins, parceiro do cantor Ivan Lins na música “Começar de Novo”, “Cartomante” e “Ituverava”, entre outras canções de sucesso.
Henrique caminha às vezes pela praça central com obras em homenagens ao esportista e ao poeta.
Quando os PMs Henrique e Celso saem para trabalhar nas ruas, têm de se deparar com pessoas que conheciam o soldado antes da transição de gênero e ainda se atrapalham ao se referir ao policial no feminino. Mas depois manifestam seu apoio.
“Normal. E que eu acho que cada um tem que ser tratado pelo gênero que quer. A sua escolha e não pelo que é determinado por nós”, afirma a enfermeira Juliana Aparecida Arantes, de 31 anos.
“O que eu tenho a dizer para as pessoas que não concordam é que elas comecem abrir a mente porque nós somos livres. A partir do momento que a gente é livre, a gente tem liberdade em tudo. Então cabe à pessoa: se ela se sente bem, isso é importante…”, diz o estudante João Vitor Praes Barbosa, de 19 anos.
Henrique mora com outros policiais, com os quais divide o aluguel de uma casa em Ituverava. Totalmente adaptado à cidade, ele segue uma rotina pessoal que incluí brincar com o cachorro, um rotweiller chamado Blade, tocar violão e ler livros. Sua leitura favorita é “Viagem Solitária”, de João W. Nery, primeiro transexual a ser operado no Brasil. O escritor morreu em 2018.
Henrique também divide seu tempo de lazer com atividades físicas, como musculação e lutas.
“Ele entrou na academia como aluno e eu fui vendo a transição dele”, se recorda o professor de artes marciais mistas (MMA) Lucas Rafael Oliveira Da Silva sobre Henrique ter ganhado peso e músculos. O aluno ostenta atualmente cerca de 90 kg em 1,72 m.
“O chute dele realmente é forte”, elogia Maycon Erikson Fernandes sobre o amigo Henrique, na academia onde treinam MMA.
Desde então a Polícia Militar deu importante passo para que mais transexuais integrem a corporação.
Antes de Henrique, porém, a corporação quase contou com outro homem transexual. Ele, no entanto, desistiu de assumir a vaga conquistada na PM após ter passado em todas as fases do concurso, inclusive às de aptidão física masculina.
No ano passado, o G1 publicou reportagem com o policial civil Paulo Vaz, um homem transexual gay (que sente desejo por homens). À época ele havia manifestado apoio ao soldado Leandro Prior, que é homossexual e foi filmado beijando outro homem no metrô de São Paulo. Ele estava fardado e foi bastante criticado após as imagens serem divulgadas sem seu consentimento nas redes sociais.
“Essa questão da homossexualidade e transexualidade ainda é um tabu dentro das forças de segurança”, comenta o policial civil Anderson Cavichioli, que é gay e está na presidência da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBT (Renosp-LGBT).
A entidade, que luta pelos direitos dessa comunidade nas forças de segurança, conta atualmente com 104 membros. “O soldado Henrique de São Paulo é um deles. Os demais são bombeiros, PMs, agentes de trânsito etc, que são gays, lésbicas, transexuais ou travestis”.
Para Anderson, a presença de Henrique como policial transexual na PM de São Paulo é importante para a categoria e reforça a necessidade de inclusão das minorias.
“A importância é que as forças de segurança incorporem a pluralidade que existe na sociedade brasileira. Esses profissionais são capazes de exercer as funções de qualquer outra pessoa. A transexualidade não pode ser empecilho para assumir um cargo”, diz.
Aos poucos Henrique está tendo consciência do papel que terá a partir de agora na PM como representante dos transexuais.
De G1