Janine Ribeiro: para Bolsonaro, educação não é promessa, é ameaça

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O anúncio do presidente Jair Bolsonaro (PSL), nesta sexta-feira (26), de que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, quer “descentralizar” investimentos nas faculdades de Filosofia e Sociologia, teve enorme repercussão nas redes sociais. As hashtags #Filosofia, #Humanas e #Sociologia estiveram nos trend topics do Twitter durante todo o dia. Para justificar o que, na prática, significa atacar, reduzir e até mesmo eliminar o estudo das ciências humanas no país, o chefe de Estado brasileiro alegou que “o objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.

Para o ex-ministro da Educação (2015) Renato Janine Ribeiro, há grande desconhecimento por parte do governo sobre o que é “conhecimento rigoroso”. “Não tenho dúvida de que a engenharia é muito importante para aumentar o PIB. Mas, por outro lado, se você não estudar a sociedade, o tema da sociologia, como vai lidar com a sociedade?”

Ele aponta que o estudo da sociologia dá ao aluno condições de compreender a realidade em que vive e, portanto, se relacionar com ela, o que não é pouco. “Quando o governo pensa em retirar o conhecimento sobre a sociologia, o risco que você tem com isso é, na verdade, perder a noção dos problemas acarretados pela pobreza, pela miséria etc.”

Um exemplo de compreensão até simples proporcionado pela matéria: “Não é porque você aumenta a produção agrícola que vai diminuir a miséria, e a miséria custa caro.”

Professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), ele destaca que a reflexão proporcionada pela filosofia é essencial para a formação de qualquer pessoa. “Conheço muita gente no meio empresarial que se formou em filosofia e ganhou muita experiência, graças à rapidez no raciocínio”, diz.

Para o ex-ministro, o anúncio de Bolsonaro enuncia a intenção de impedir que a educação forme espírito crítico nas pessoas. “O governo nunca fala de educação como promessa; para eles, educação é sempre ameaça.”

Como encara o fato de estar em “avaliação”, pelo governo, a possibilidade de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia”?

Há um grande desconhecimento do governo em relação ao que é conhecimento rigoroso. Eles pensam que filosofia e sociologia são conhecimentos inúteis. Não tenho dúvida de que a engenharia é muito importante para aumentar o PIB. Mas, por outro lado, se você não estudar a sociedade, o tema da sociologia, como vai lidar com a sociedade?

Para guiar um carro, você tem que saber como ele funciona. Mal comparando, acontece isso também com o ser humano. Para se relacionar com a sociedade, tem que saber como vivem as pessoas, como se estrutura essa sociedade, qual a hierarquia, como a desigualdade social opera, por que a desigualdade se tornou uma coisa mais intolerável. Na sociedade, hoje, os países mais ricos são os que têm menos pobres.

Sob qual ponto de vista se deve tratar a questão da filosofia e da sociologia?

Eu focaria nisso: como você pode entender e lidar com a sociedade se você não tem um conhecimento sobre ela? Sociologia é uma ciência, assim como química. Para entender a matéria, você precisa de química, biologia, física. Para entender a sociedade, precisa de sociologia, psicologia, antropologia. Se não faz isso, você não sabe como lidar com as pessoas, do que elas necessitam.

A sociologia, em particular, é muito focada na desigualdade social. A desigualdade é um problema tremendo hoje, mas de modo geral os países ricos são os que reduziram a desigualdade social.

Quando o governo pensa em retirar o conhecimento sobre a sociologia, o risco que você tem com isso é, na verdade, perder a noção dos problemas acarretados pela pobreza, pela miséria etc. Os problemas não vão se resolver apenas com veterinária e agronomia.

Não é porque você aumenta a produção agrícola que vai diminuir a miséria, e a miséria custa caro. As pessoas ficam mais doentes e você tem que tratar delas. Elas morrem mais cedo, não realizam suas potencialidades produtivas, perdem-se talentos que não chegam sequer a serem formados. Tudo isso no tocante à sociologia.

Que instrumentos a filosofia é capaz de proporcionar a um jovem, considerando que, para algumas pessoas, ela não “serve para nada”?

Se a pessoa é um engenheiro, deve ter estudado física e matemática. Sem matemática seria um péssimo engenheiro.

Acontece que a filosofia tem toda uma área que se chama Teoria do Conhecimento, que inclui uma reflexão sobre as ciências. Tem a epistemologia, que é a teoria das ciências. Primeiro ponto: se a pessoa estudou engenharia, deve alguma coisa à filosofia, que contribui muito para a matemática e a física.

A filosofia tem muito a ver com as ciências e as transformações todas são científicas. O segundo ponto é que a filosofia lida muito, também, com a mudança de paradigmas. O mundo muda – e muito depressa.

Como as pessoas que estudaram filosofia lidam com um raciocínio mais abstrato, elas têm mais facilidade em perceber um paradigma novo do que pessoas que foram a vida toda treinadas com uma rotina só.

Essas pessoas só conseguem entender a realidade de maneira segmentada, não como um todo…

Não é só perceber o todo, mas as mudanças no todo. No mundo, hoje, tudo está mudando o tempo todo. Por exemplo, o Uber muda totalmente a maneira de você conceber o transporte por táxi, independentemente da preferência pessoal. Mas como lidar com essa mudança de modelo?

A filosofia ajuda a entender isso, porque, como ela trata de modelos muito diferentes de pensamento – Platão pensa de forma muito diferente de Descartes, por exemplo –, ela torna a pessoa mais ágil para lidar com uma mudança de modelos.

Conheço gente no meio empresarial que se formou em filosofia e ganhou muita experiência, graças à rapidez no raciocínio. Isso é diferente de você trabalhar com rotinas de protocolos. Muitas profissões têm protocolos.

Por exemplo, você vai a um hospital ou a um laboratório colher sangue e há um protocolo elaborado para extrair o seu sangue da forma mais correta possível. Esses protocolos mudam o tempo todo. Na filosofia, justamente, não tem protocolos. Então, você consegue entender que não pode ter uma única rotina de lidar com as coisas na vida.

Como ex-ministro da Educação, que tipo de política acha que deveria ser adotada, por exemplo na área de humanas?

A política principal é a da qualidade dos cursos. Hoje, se não tem dinheiro novo, e não se pode fazer uma expansão maior do que já foi feita, tem que trabalhar a qualidade. Ver quais cursos são bons, quais são ruins, melhorar os cursos ruins ou fechá-los. Isso em qualquer área. Veterinária ou medicina, como pode ser filosofia ou sociologia. Curso ruim é um desserviço ao país.

É curioso que, desde o governo Temer, e continuando neste governo, estão abrindo um número enorme de faculdades de Direito, privadas, sendo que a reprovação em Direito no exame da OAB passa de 80%. Há um grande número de cursos que são abertos, as pessoas pagam e têm um ensino que não vai ser suficiente para exercerem a profissão.

Essas são algumas prioridades que deveriam ser consideradas, no ensino superior. Não é fazer uma oposição entre humanas e matérias que são úteis para o crescimento econômico. É pensar em qual qualidade de ensino que a gente quer.

Na infância e na juventude as pessoas têm uma educação muito precária de modo geral, e chegam à universidade com muita dificuldade de entender temas complexos. O brasileiro não está muito distante de uma educação que seja homogênea e de qualidade desde o básico até a universidade?

Muito! Agora, o problema é que, em relação à base disso tudo, os anos do ensino básico – o fundamental e o médio –, o Brasil tinha chegado a um consenso, com PT, PSDB e o próprio DEM, de que era importante agir para melhorar a educação básica. E esse consenso foi rompido pelo atual governo.

O governo nunca fala de educação como promessa, para eles educação é sempre ameaça. Eles querem controlar, não melhorar a educação. Querem impedir que a educação forme espírito crítico nas pessoas. Querem que a educação seja disciplinar. Por isso falam em escola militar, em proibir certos assuntos, por isso querem tirar do Enem o que pode ser crítico. Tudo isso é muito negativo.

Ou a escola sem partido…

Também. Mas esse é um assunto que a esquerda fortaleceu demais.

Por quê?

Porque a esquerda só fala disso. Desde a hora em que esse assunto surgiu, a esquerda não teve um assunto melhor. Tem que fazer propostas, e não ficar o tempo todo falando de uma falsidade, de um factoide. Não pode ficar o tempo todo promovendo as propostas ruins.

O grande segredo da comunicação é esse, “falem mal, mas falem de mim”. Veja o Bolsonaro. Durante anos as pessoas achavam as coisas dele meio cômicas etc., mas ele se tornou muito conhecido. De repente isso virou uma popularidade. Há assuntos que são muito fortalecidos desse jeito.

Da RBA