Lei aprovada por Temer confere à Justiça Militar julgar o fuzilamento no Rio

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Sob o título “Um caso concreto de competência da Justiça Militar”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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Há muito a se esclarecer sobre o fuzilamento que resultou na morte do músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, e em ferimentos em outras duas pessoas –o seu sogro e um pedestre–, na tarde de domingo, em Guadalupe, Zona Norte do Rio. Por enquanto, sabe-se que soldados do Exército que faziam o patrulhamento nas imediações de instalações militares dispararam mais de 80 tiros de fuzil contra o carro em que estavam Evaldo, o sogro, a mulher, o filho de 7 anos e a afilhada de 13.

Ainda no domingo, o Exército emitiu nota informando que os militares revidaram a uma “injusta agressão” depois que bandidos abriram fogo contra a patrulha. Testemunhas, porém, deram outra versão, segundo a qual os soldados teriam confundido o carro de Evaldo com o de criminosos. De qualquer forma, a família não estava armada.

Depois, no entanto, o Comando Militar do Leste mandou prender em flagrante dez dos 12 militares envolvidos no episódio, devido a “inconsistências identificadas entre os fatos inicialmente reportados ”, informações que chegaram posteriormente ao CML e os depoimentos dos próprios agentes. Eles ficarão à disposição da Justiça Militar.

É fundamental saber exatamente o que aconteceu em Guadalupe e por que aconteceu.

Resta saber a quem caberá investigar e julgar a conduta dos agentes envolvidos nesse crime que envolve um fuzilamento de um civil e lesões corporais em outras pessoas.

Dir-se-á que pode ter sido um crime de homicídio qualificado.

Há crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Os propriamente militares dizem respeito à vida militar, vista globalmente na qualidade funcional do sujeito do delito, na materialidade especial da infração e na natureza peculiar do objeto da ofensa penal, como disciplina, a administração, o serviço ou a economia militar.

Os crimes impropriamente militares, que podem ser cometidos por militares e, ainda, excepcionalmente, por civis, abrangem os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum.

Sendo assim, crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar, em certas condições, a lei considera militares, como se tem dos crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio, os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros.

São ainda impropriamente militares, os crimes praticados por civis, que a lei define como militares, como a violência contra sentinela, previsto no artigo 158 do CPM.

Em situação específica em que os militares das Forças Armadas exercem função policial, como a de policial ostensivo, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 112.936, julgamento de 29 de junho de 2012, DJe de 1º de agosto de 2012, concedeu writ para invalidar, deste o início, procedimento anteriormente produzido na Justiça Militar, sem prejuízo do suposto crime pela Justiça Federal.

O entendimento foi de que o desacato de um civil a um militar que exercia essa atividade no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, dentro do programa de ocupação e pacificação dos morros cariocas, constitui crime civil, e não militar, enquadrado no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal (crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União).

Fica cristalino da lição do ministro Celso de Mello, relator do último acórdão apontado, que não se pode deixar de acentuar o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempos de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se tiver em consideração que tal situação, porque revestida de excepcionalidade, só se legitima se e quando configuradas, quanto aos réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento seja recebido pelo Supremo Tribunal Federal em uma estrita interpretação.

O entendimento do ministro Celso de Mello é de que se mostra grave a instauração, em tempo de paz, de ação penal militar contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União. Isso porque deve-se respeitar o princípio do juiz natural, uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório.

Naquele julgamento o ministro Celso de Mello trouxe a advertência de José Frederico Marques (O Processo Penal na atualidade, in Processo Penal e Constituição Federal, pág. 19, item n.7, 1993), no sentido de que, ao rol dos postulados básicos, deve acrescer-se aquele do juiz natural, contido no item nº LIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, que declara que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente.

A autoridade competente será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações.

Sendo assim, impõe-se ao Estado o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais.

Como tal, o princípio da naturalidade do juízo, que encerra uma garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado, na medida em que impossibilita a instituição de juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção, assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior, vedados os chamados juízes ex post facto.

Assim, somente serão órgãos jurisdicionais aqueles que são reconhecidos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja, como alude Ada Pellegrini Grinover com apoio no magistério de Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, volume 1/322-323 – 1974, Coimbra).

Na contramão de apelos de entidades de classe, o presidente Michel Temer (PMDB) sancionou a lei que confere competência para a Justiça Militar julgar militares acusados de crimes dolosos contra civis. A lei 13.491/2017 foi publicada no Diário Oficial da União, daí porque já tem existência (sanção), validade (promulgação) e tem plena eficácia com a publicação.

De acordo com a nova lei, os crimes cometidos por militares contra civis deixarão de ser julgados pelo Tribunal do Júri em casos que envolvam operações de paz e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como quando governadores de estado solicitam o envio de tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais. Além disso, a Justiça Militar deverá julgar os crimes praticados durante o cumprimento de tarefas estabelecidas pelo governo ou pelo ministro da Justiça e Segurança.

Serão julgados pela Justiça especializada as mortes de civis causadas por militares nas chamadas missões de “garantia da lei e da ordem”, como quando governadores de estado solicitam o envio de efetivos do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais.

Reflexamente, foi ampliada a competência da Justiça Militar da União (JMU) para julgar civis por crimes militares, com base no art. 9º, inciso III, do CPM. Considerando que, força do art. 125, §4º, da CF, a Justiça Militar dos Estados só julga militares estaduais, este tópico não interfere em sua competência.

As razões para tal mudança legislativa deitam raiz na polêmica ampliação do papel das Forças Armadas na segurança pública urbana e das fronteiras, em tempos de recrudescimento da violência e do aumento do poderio de organizações criminosas. Por falta de alternativas de segurança pública civil militares têm sido utilizados pelo governo federal em operações de garantia da lei e da ordem, o que vem acentuando situações potencialmente conflitivas com civis, criminosos ou não.

A Lei tem dois artigos e seu dispositivo principal só teve em mira o art. 9º do CPM.

O art. 2º da Lei, que previa vigência temporária, foi vetado pela presidência da República.

O art. 3º determina a vigência imediata da Lei, isto é, sem vacância.

No que diz respeito às normas de competência, a Lei aplica-se aos inquéritos e às ações penais em curso. No que tange à nova definição de crimes militares, vale a regra da irretroatividade, especificamente no tocante à inovação do inciso II do art. 9º do CPM.

O §1º do art. 9º do CPM (antigo parágrafo único) manteve na competência do tribunal do júri os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por policiais militares ou por bombeiros militares e, eventualmente, também os cometidos por integrantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em atividades não especificadas no parágrafo seguinte.

Assim, em regra, militares estaduais que cometam homicídio continuam a ser julgados pelo tribunal do júri. Por sua vez, militares federais só serão julgados pelo júri federal, se suas condutas não forem praticadas nas condições delimitadas no §2º do art. 9º.

O §2º do art. 9º do CPM, introduzido por essa lei, mexe em hipóteses que até agora eram (ou deveriam ser) de competência do tribunal do júri federal (art. 5º, XXXVIII, alínea ‘d’, CF). Essas condutas passam a ser julgadas pela JMU, se se enquadrarem nas situações previstas nos três incisos do novo §2º. Se aí não se amoldarem, vale a regra geral do §1º, e também os militares das FFAA serão julgados pelo júri presidido por um juiz federal nos crimes dolosos contra a vida de civis.

Assim, se um crime de homicídio for praticado por um militar contra civil durante uma operação de paz, ou no curso de uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), a competência para o julgamento será, por esta lei, da Justiça Militar da União, e não da Justiça Federal (júri).

Além disso, a nova redação do inciso II do art. 9º do CPM atribuiu à JMU e à Justiça Militar dos Estados a competência para julgar crimes, agora considerados “militares”, que estão previstos na legislação comum, como tortura, abuso de autoridade, cibercrimes, associação em organização criminosa, formação de milícia privada etc. É ampliado o conceito de “crime militar” impróprio ou impropriamente militar ou acidentalmente militar para abranger também infrações penais previstas apenas na legislação penal comum, o que antes não ocorria.

Diante disso tem-se que a instrução e julgamento do crime acima referenciado caberá à Justiça Militar.

Da FSP