Moro contraria OMS e afetará a saúde pública ao baixar imposto sobre cigarros

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Reduzir o imposto sobre cigarros para combater o contrabando. A proposta, polêmica, foi encaminhada na semana passada pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. No dia 26 de março ele criou um grupo de trabalho (GT) que tem 90 dias para apresentar um parecer sobre a viabilidade da medida.

Nos últimos dias, EXAME ouviu especialistas em tributos, contrabando e saúde pública para responder esta e outra questão, tão relevante quanto, sobra a qual o GT também deve se debruçar: é possível reduzir o contrabando sem com isso aumentar o número de fumantes?

A proposta dividiu a opinião pública e políticos. O senador José Serra (PSDB), ex-ministro da Saúde, disse que a medida parece equivocada e contraproducente. “Vai elevar o consumo de tabaco no Brasil, aumentando o número de mortes relacionadas com o cigarro”, afirmou. Em audiência no Senado no dia 27, Moro esclareceu que se o estudo provar que a diminuição dos impostos aumentaria o consumo de cigarro no país, ele não aprovaria a proposta.

Pela ótica do combate ao contrabando, outras figuras públicas, como o senador Luis Carlos Heinze (PP), defenderam a criação do GT. “Hoje, de 11 bilhões a 12 bilhões de reais o Brasil perde em arrecadação, porque há um tributo alto. Mais da metade do cigarro consumido no Brasil hoje é contrabandeado, e grande parte é do Paraguai”, disse Heinze.

Moro defendeu sua proposta, argumentando que é muito difícil combater o contrabando. “As fronteiras são muito porosas, muitas vezes as pessoas envolvidas no contrabando de cigarro não se sentem envolvidas em uma atividade ilegal”, afirmou o ministro, justificando a necessidade do estudo.

Participam do GT membros indicados pela Polícia Federal, pela Secretaria Nacional do Consumidor e pela Assessoria Especial de Assuntos Legislativos. Representantes do Ministério da Economia e do Ministério da Saúde também serão convidados a integrar o grupo. Pesquisadores e especialistas, no futuro, poderão ser chamados para assessorar os trabalhos de análise.

O Grupo será responsável por analisar os principais pontos que envolvem uma possível diminuição dos impostos sobre o cigarro nacional. Conforme disposto na Portaria, será analisada a tributação no Brasil, para que seja possível propor melhorias à política tributária atual. Também se estudará quais medidas podem reduzir o consumo de cigarros estrangeiros contrabandeados, que hoje ocupam 54% do mercado brasileiro, segundo o IBGE. Por fim, o GT terá que avaliar se reduzir os impostos sobre o cigarro brasileiro poderia evitar o consumo do cigarro estrangeiro de baixa qualidade e se a medida poderia aumentar a venda de tabaco no país.

Em paralelo, o ministro instituiu outro GT, pensado para desenvolver e implantar um Centro Integrado de Operações de Fronteira em Foz do Iguaçu, no Paraná.

Evitar o contrabando?

A cada dez cigarros vendidos no Brasil, quase seis são paraguaios, de acordo com a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF). Isso representou em 2018 um prejuízo de 14 bilhões de reais aos cofres públicos brasileiros, que perdem em arrecadação de impostos. Para Rodolpho Ramazzini, advogado e diretor da ABCF, a diferença de preço do produto nacional e do contrabandeado, motivada principalmente pela carga tributária brasileira, é um dos principais fatores de incentivo ao mercado ilegal de cigarro.

No Brasil, o cigarro é taxado em 70% a 90%, dependendo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de cada estado. Além disso, no país é ilegal vender cartelas com menos de vinte unidades, e, desde maio de 2016, o preço delas não pode ser fixado abaixo de cinco reais. O produto paraguaio, entretanto, não paga impostos ao entrar no território nacional, e em seu país de origem paga no máximo 18% ao Estado. Com isso, uma cartela contrabandeada chega ao mercado brasileiro custando 30% do preço do produto nacional.

Edson Vismona, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), conta que já foram encontrados no Brasil pacotes com 10 cigarros sendo vendidos por um real e cinquenta centavos. Na média as cartelas contrabandeadas com 20 unidades custam três reais. “Nossa ideia é aumentar o imposto das marcas mais caras e diminuir o das mais baratas, para ter uma marca de confronto, para podermos migrar esse consumo que está na mão do ilegal para o produto legal”, defende o presidente do ETCO.

“Nós não estamos isolados no mundo, estamos na fronteira vulnerável com o Paraguai. É uma questão econômica que está relacionada com combater o crime e organizações criminosas. Ignorar isso é fechar os olhos para a nossa realidade”, afirma Vismona.

Ramazzini também acredita que uma revisão na tributação pode beneficiar o setor produtivo brasileiro. “Se reduzíssemos a tributação de oito a dez pontos percentuais, muitos consumidores que compram cigarro paraguaio voltariam a fumar o produto nacional”, afirma o advogado. “O brasileiro sabe quando consome o produto contrabandeado, principalmente por causa da ausência de avisos da Anvisa na caixa.”

O tema gera polêmica mesmo entre as fabricantes. A fabricante de cigarros Souza Cruz, em nota, apoiou a criação do GT, bem como a criação de uma força tarefa de combate ao contrabando, e também a revisão do modelo tributário aplicado a cigarros nacionais, “por considerar que o sistema em vigor favorece a comercialização de produtos ilegais no país”.

Já a Philip Morris Brasil divulgou um comunicado em que se opõe à proposta de Sergio Moro: “entendemos que o combate ao mercado ilegal não deveria passar por alternativas que possam resultar na redução de tributos e de preços, aumentando o acesso da população de baixa renda a um produto como o cigarro”.

A Souza Cruz possui produtos no mercado voltados para um público de renda mais baixa, enquanto a Philip Morris está centrada em marcas de luxo, que não competem diretamente com o produto paraguaio.

Padrão de qualidade

Na Portaria em que Sergio Moro instituiu o GT, uma das justificativas para se tentar diminuir o consumo do produto contrabandeado seria a saúde do consumidor, pois sua qualidade seria inferior à do cigarro nacional, fiscalizado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Ramazzini afirma que já foram encontrados no cigarro paraguaio resíduos de metais pesados, de insetos e coliformes fecais. “O ilegal não é feito sob nenhuma norma de higiene, não segue o padrão”, diz o diretor da ABCF.

Especialistas em saúde não compactuam com essa visão. Para Valeska Figueiredo, do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz, de nada adianta migrar as pessoas do mercado ilegal de cigarros para o legal. “Isso em nada ajuda na saúde, porque eles fazem mal da mesma forma. É importante manter o preço alto para inibir o consumo”, afirma a pesquisadora, reiterando que é a combustão do tabaco que causa o maior dano, pois produz substâncias que causam câncer.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que os impostos sobre o tabaco são a forma mais efetiva de reduzir seu consumo, especialmente entre jovens e pessoas de baixa renda. Ao elevar o preço do cigarro em 10%, diminui-se o consumo em cerca de 4% nos países desenvolvidos e cerca de 5% nos países em desenvolvimento, como o Brasil.

De acordo com a pesquisa Vigitel, realizada anualmente por telefone pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde em todas as capitais do país, o número de fumantes diminuiu em dez anos. Nas 27 capitais brasileiras, em 2007, havia 16,4% de fumantes na população adulta. Em 2017, a frequência encontrada na mesma população foi de 10,1%.

Mônica Andreis, diretora executiva da ONG Aliança de Combate do Tabagismo (ACT), defende que essa queda se deu principalmente por causa da adoção de um aumento progressivo nos impostos sobre o tabaco entre 2011 e 2016. “Em 2011, 14,8% da população fumava, em 2016, esse número caiu para 10,2%. Quando a política de aumento de impostos foi interrompida em 2016, houve uma estagnação na queda. Em 2017, a porcentagem foi de 10,1%”, diz a executiva.

Por esse motivo, revisitar a questão tributária, para o pneumologista do Hospital Sírio Libanês, André Nathan Costa, é um retrocesso. “Me assusta pegar uma política pública muito bem sucedida e jogar fora para tentar conter o contrabando”, afirma o médico. A ideia de que somente os consumidores do mercado ilegal migrariam para o mercado legal também é questionada por ele. “Isso só faz sentido se você imaginar que a população é estanque, mas a sociedade é mutável. Uma das maneiras de fazer com que o jovem não fume é manter o cigarro caro”, defende, ressaltando a importância de reafirmar as políticas para educar novas gerações.

Ainda que não defendam uma alteração na tributação, as organizações de saúde não ignoram a questão do contrabando. Para Mônica, da ACT, “o certo seria o Brasil implementar o protocolo que foi ratificado no ano passado para combater o cigarro ilegal”. A diretora faz referência ao ‘Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco’ da Organização Mundial de Saúde, que foi ratificado em 2018 no Brasil. Em outubro, um comitê interministerial para implementação do acordo foi instituído no país.

“O Ministério da Justiça deveria ter ativado esse comitê ao invés de criar um novo Grupo de Trabalho”, afirma a diretora da ACT. O Protocolo prevê medidas que envolvem esforços diplomáticos entre países que fazem fronteira, bem como ações coordenadas de inteligência e fiscalização. “Não é diminuindo o preço que você vai vencer o contrabando”, afirma Valeska, da Fiocruz.

Em 12 de março Bolsonaro recebeu a visita do presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez. Segundo o governo brasileiro, “desafios nas fronteiras” e “combate aos ilícitos transnacionais” estiveram entre os temas tratados, de acordo com o G1. Eis um fórum mais adequado para tratar de contrabando na fronteira sem correr o risco de tentar resolver um problema e acabar criando um problemão.

Da EXAME.