Olavo de Carvalho: o “guru” antifilósofo
Certas ideias em destaque no Brasil de hoje deveriam provocar indignação não só naqueles com posições políticas de esquerda, mas em quaisquer simpatizantes da tradição liberal. Pois embora divirjam sobre vários assuntos, esses dois lados do espectro político possuem visões semelhantes sobre a defesa da dignidade humana, da liberdade de expressão ou da igualdade de gênero, por exemplo.
De modo similar, em assuntos como o aquecimento global, o efeito das vacinas na saúde humana e a forma do planeta Terra, ambos os lados preferem apoiar-se antes no consenso científico do que em exóticas teorias da conspiração. Isso acontece porque tais posições compartilhadas estão associadas ao próprio progresso moral e científico das sociedades modernas. Nada tem a ver com “marxismo cultural”.
Mas o estado atual do debate público brasileiro tornou-se tão distópico que, se um liberal sair em defesa de alguma dessas posições, será rotulado de esquerdista e sofrerá ataques virulentos nas redes sociais.
Por mais heterodoxas que possam ser essas ideias, há um problema que está aquém até do conteúdo delas. Trata-se de uma disfunção na “forma” de discuti-las _nas normas básicas que configuram os atos de pensar, argumentar e defender ideias. Ora, o uso refletido dessas normas é um elemento fundador da filosofia ocidental, mas viceja hoje uma grande confusão, inclusive sobre isso. Logo, convém esclarecer o que torna um debate genuinamente filosófico.
Primeiro, todo pensamento filosófico precisa estar aberto à crítica. Embora difira das ciências empíricas, por não submeter hipóteses a testes experimentais, a filosofia também se ancora em evidências que só podem ser reconhecidas como tais se estiverem disponíveis ao escrutínio racional.
Em segundo lugar, em filosofia não há “gurus”, portadores da verdade absoluta. Pelo contrário, a filosofia parte do questionamento do que se coloca como verdade. Um dos seus pilares é a máxima de pensar por si mesmo. Não ensina filosofia quem cultiva séquitos de seguidores; ensiná-la é, antes, orientar o estudante na arte de pensar por si mesmo, inclusive estimulando a possibilidade de discordância.
Por fim, as universidades atuais são as instituições modernas nas quais as características do debate filosófico, mencionadas acima, podem ser exercitadas, ensinadas e aperfeiçoadas com o maior grau de competência possível. Certamente, não é imprescindível fazer parte do mundo acadêmico institucionalizado para se fazer boa filosofia, mas a discussão filosófica de qualidade é sobretudo feita nas universidades.
Não por acaso, levantar suspeitas sobre a credibilidade e a relevância desses meios é geralmente o primeiro passo para solapar as condições de qualquer debate filosófico genuíno. Diante de ideias abraçadas como verdades indiscutíveis, de teses apoiadas em teorias da conspiração, de propagandas visando anular interlocutores só por estarem na universidade ou por serem jornalistas, não há o que se debater.
O mínimo que podemos fazer, para não sermos levianos, é defender o que torna possível qualquer debate, o que faz de qualquer ideia algo digno de ser discutido. A comunhão de algumas posições entre a esquerda e a direita liberal, mencionada acima, deriva desse compromisso filosófico e civilizatório fundamental.
Quem se coloca, arrogantemente, numa posição de guru, age contra o próprio exercício filosófico. Fazer filosofia, boa ou má, é primeiramente tornar-se independente de gurus. Pensar por si mesmo é uma tarefa árdua e que pode colocar em questão até mesmo aquilo em que acreditamos.
Mas esse é o fascínio de se fazer filosofia. Assumir essa postura não é uma batalha entre esquerda e direita, menos ainda entre marxismo cultural e conservadorismo; é uma batalha contra o obscurantismo, contra a ridicularização das próprias premissas da reflexão filosófica. Qualquer um que seja contra tal retrocesso civilizatório deveria estar na linha de frente dessa batalha.
Da FSP