Presos LGBT sofrem com rotina de segregação
O agente penitenciário traz um saco transparente com algumas caixas e o coloca em cima da mesa. Em instantes, a sala do Centro de Detenção Provisória Pinheiros 2, na zona oeste de São Paulo, está repleta de pincéis e maquiagens.
Grazy, Chica e Léia penteiam os cabelos, passam blush, batom, sombra e fazem os últimos retoques nos cílios. A entrevista para a BBC News Brasil é considerada por elas um “dia de princesa”. Uma das raras oportunidades em que elas podem passar maquiagem e ficar “montadas”.
Mas a realidade nos raios —conjuntos de celas— do CDP, na zona oeste de São Paulo, é bem diferente.
A dez grades da calçada da marginal Pinheiros, a população LGBT carcerária enfrenta incontáveis restrições. Um gay, por exemplo, não pode tomar água no mesmo copo do que um hétero ou usar o mesmo prato. Também não pode dividir o mesmo cigarro. Até mesmo encostar na vassoura usada para varrer o pátio do presídio é visto como um insulto pelos outros presos. As regras são rígidas e suas justificativas carregam preconceito e ignorância.
“É machismo da parte deles. Um preconceito bobo. Acham que o homossexual pratica sexo oral e são pessoas que não têm um certo cuidado. Eles pensam: ‘Vai que você praticou um sexo oral e eu vou dividir um cigarro com você. Eu vou estar fazer um sexo oral de tabela’. É esse tipo de pensamento”, explica Leonel da Silva Lopes, a Léia, que cumpre pena por furto e estelionato.
Crimes cometidos, segundo ela conta, para sustentar seu vício em cocaína.
“Eles dizem que é um procedimento que vem das antigas, dos antigos criminosos. Por causa de uns, todos têm que seguir isso. Na sociedade, a gente vai em um bar e bebemos no mesmo copo, que muitas vezes nem é bem lavado e ninguém reclama”, diz Léia.
Para que não haja confusão, todos os objetos usados pela população LGBT têm marcas a fogo ou são perfurados, além de serem guardados em prateleiras específicas. Antes de entrar no banheiro, os gays também precisam dar gritos para anunciar sua chegada e não correr o risco de ver um preso hétero sem roupa. Pesquisadores disseram que quebrar alguma dessas regras pode levar até à morte em alguns presídios do país.
Durante mais de três horas, as três contaram com a voz firme e de maneira franca como é ser LGBT em um presídio masculino. E resumem: “é ser o excluído entre os excluídos”. A entrada da reportagem da BBC News Brasil no presídio foi autorizada pela Justiça. A visita foi acompanhada pela diretora de saúde da unidade, uma assessora de imprensa e agentes penitenciários.
Com o cabelo raspado e um óculos com armação azul repousado sobre a testa, usado apenas como adereço, Léia é a representante LGBT na unidade visitada pela reportagem. Cabe a ela instruir os presos homossexuais que chegam sobre as regras da cadeia.
Ela conta que a intenção é criar um ambiente com boa convivência e respeito entre os internos, o oposto do que ela diz ter encontrado em sua primeira passagem pelo sistema penitenciário, 19 anos atrás. Sem opção de trocar de cadeia, Léia conta que foi desrespeitada e sofreu muito preconceito nas passagens que teve por presídios comandados pelo PCC.
“A gente tinha que costurar, arrumar a cela. Nunca me oprimiram ou bateram, mas eu sentia preconceito por parte deles”, conta.
Na unidade onde ela está hoje, chamada de oposição por não ter membros do PCC, ainda são impostas as mesmas regras de segregação, mas os presos têm mais respeito à população LGBT. Parte chega a dizer que só as obedece para não contrariar os companheiros de cela.
“Certa vez, um ladrão falou para mim: ‘Tem uma menina que vem me visitar que é garota de programa. Eu vou saber o que ela fez na rua? Eu a beijo na boca. Eu não bebo no mesmo copo que você não porque eu quero, mas porque os demais criminosos exigem isso. Se eu passar a beber no seu, eu vou passar a beber (no mesmo copo) definitivamente’. Eu achei até bonito da parte dele”, conta Léia.
Ao lado de uma pilha de livros, ela conta que a biblioteca é o seu lugar preferido no presídio. Suas obras preferidas são os chamados espirituais e também os de autoajuda, como Paulo Coelho e Augusto Cury. Mas também lê Sidney Sheldon e Stephen King. Léia afirma que os livros a tornaram mais forte para encarar a vida de isolamento. Mas se emociona ao lembrar de sua mãe, de 73 anos, que sai de Salvador e percorre 2 mil km para visitá-la uma ou duas vezes ao ano.
“Quando ela cruza o portão, a emoção é muito grande. Fico feliz por ela estar viva, mas triste de eu estar preso e minha mãe tendo que enfrentar filas, de presenciar toda aquela situação de vários jovens presos, para me ver. Isso me deixa deprimido. Mas isso me incentiva a sair, mudar de vida e retribuir um pouco por tudo o que ela fez por mim”, afirmou.
Léia sonha em deixar a cadeia e morar perto dela, em Salvador. Mas seu maior desejo a curto prazo é que a população LGBT tenha o “direito de cumprir dignamente o que nós cometemos para que amanhã possamos estar com nossos familiares e nos tornar cidadãos melhores.”
Doutorando em sociologia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Francisco Elionardo de Melo Nascimento diz que antes do surgimento de facções criminosas no sistema penitenciário, os demais presos queriam estar próximos à população LGBT. Hoje, até mesmo a aproximação é vista como uma falta grave.
“A convivência com os homossexuais era disputada por questões afetivas. Como não havia visitas íntimas, era muito comum as relações com os homossexuais. A população LGBT também tinha a função de ser uma dona de casa, uma faxineira na cadeia. Os demais presos os viam como algo feminino, dedicado a cuidados do lar, enquanto eles tinham a função de provedores”, relata o pesquisador.
O pesquisador diz que um dos principais motivos de tamanha restrição imposta à população da comunidade LGBT é colocar a masculinidade dos membros de facções à prova.
“O fato de uma pessoa trans impactar nessa masculinidade também é um reflexo do que acontece do lado de fora das cadeias. Não é possível entender a prisão como um ambiente isolado. A onda de conservadorismo presenciada no país também impacta do lado de dentro das prisões”, afirma o pesquisador.
Assim que um preso chega ao sistema penitenciário brasileiro, uma das primeiras perguntas que ele ouve é se ele faz parte de uma facção criminosa. Se não fizer, ele deve escolher uma sigla para se filiar. Mas essa não é uma opção para a população LGBT.
As facções não aceitam que nenhum de seus membros seja gay. Em cadeias dominadas por algumas das maiores facções do país, a segregação é ainda maior. Os presos LGBT não podem deixar o cabelo crescer ou usar short. Mesmo nos dias mais quentes, também não podem usar camisetas que deixem a barriga à mostra. Já os detentos heterossexuais podem ficar sem camisa.
Jairo de Jesus Oliveira Silva, de 29 anos, a Grazy, já passou por cadeias dominadas pelo PCC, por roubo, e hoje está em Pinheiros 2, de oposição. Ela diz que as restrições nas cadeias comandadas pela maior facção do país são tão rígidas que a população LGBT mal pode conversar com outros presos.
“Lá tinha muitas regras, a gente era oprimida. A gente tinha que ficar no canto, sem falar com ninguém. Só (podia falar) o básico, como pedir licença. Também não tomava banho com os caras. A gente não podia usar roupa curta, não podia passar um lápis na sobrancelha, um lápis no olho. Tinha que andar como menino, com bermuda abaixo do joelho 24 horas. Nosso cabelo tinha que manter sempre curto por causa dos caras. Para a gente não seduzir nem arrastar os irmãos (membros do PCC)”, conta Grazy.
Para ela, o PCC age dentro dos presídios de maneira contraditória do que prevê o próprio estatuto da facção fundada em 1993. O texto divulgado entre os detentos e novos membros do PCC prevê que todos façam parte de uma “luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”.
“Eles falam que há igualdade pelo simples fato de o homossexual ter visita íntima. Hoje eles deixam, mas por obrigação, por causa das leis, não porque gostam. Eu já passei por lá e sei do que eu estou falando. A gente é tratado de uma maneira diferente que eles passam”, conta Grazy.
Dilmar da Silva Soares, de 63 anos, a Chica, é natural de Pelotas, RS, e tem diversas passagens no sistema carcerário, muitas por roubo – a maior parte das vítimas seus próprios clientes como garota de programa – e até por tráfico internacional de drogas quando tentou embarcar com 17 kg de cocaína para Amsterdã, na Holanda.
Ela conta ter visto cenas de desrespeito, agressões e até mortes durante os anos que passou na cadeia. E ainda hoje presencia cenas de preconceito na unidade de Pinheiros 2.
“Eu pegar a vassoura para varrer o raio, não posso. A boia, alimentação, é eles que servem. Já aconteceu de passar um pão a mais. Tem que devolver porque é contado. Eles já não pegam porque eu peguei com a minha mão, então eles deixam ficar”, conta Chica.
Ela conta que nas décadas de 1980 e 1990 era tratada como “uma rainha” ao chegar no sistema penitenciário e lembra sua chegada à Casa de Detenção Carandiru, onde uma chacina deixou 111 mortos em 1992.
“Éramos consideradas as rainhas no Carandiru. A gente chegava, casava, comprava uma cela e vivia com o preso. Ele me dava tudo do que eu precisava, mas eu não podia falar com mais ninguém. Quem não casava, podia se prostituir”, lembra.
Para evitar o convívio com presos do PCC, hoje boa parte da população LGBT pede transferência para uma cadeia de “seguro” ou “oposição”, como são chamados os presídios onde não há membros da maior facção do país.
Uma delas é a unidade Parada Neto (Guarulhos, na Grande São Paulo), dominada pelo Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC), e também Pinheiros 2 e 3, na capital paulista, Balbinos 1 e Guareí, ambas no interior.
Por outro lado, o governo diz que não há nenhuma divisão no sistema penitenciário feminino por conta de orientação sexual.
Uma vez por semana, as grades dos presídios se abrem para que familiares e amigos de presos possam levar comida e passar algumas horas na cela com eles. Esse momento é visto como sagrado para os detentos, já que é única oportunidade que eles têm para rever pessoas que estão nas ruas, ter uma refeição especial e principalmente ter visita íntima.
A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) informou em nota que uma resolução de 2014 garante que todos os direitos da população LGBT sejam respeitados nos presídios, inclusive visitas íntimas. Mas nos presídios paulistas, apenas em 2018 o PCC mandou um aviso aos seus membros para que isso fosse permitido no Estado.
Especialistas, agentes penitenciários e os próprios presos entrevistados pela reportagem dizem que não importa quais leis sejam aprovadas pelo governo, pois dentro da cadeia as regras são ditadas pelas facções.
Outro exemplo é que apenas em 2007 o PCC passou a proibir o estupro de gays dentro das penitenciárias comandadas pela facção, segundo a pesquisadora Camila Nunes Dias, autora de livros sobre o PCC e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Violência da USP.
“Desde então, quem tiver relações sexuais com gays também passa a ser considerado ‘bicha’, como são chamados pelos presos da facção. Antes disso, era admitido (o estupro). Hoje, ainda são obrigados a deixar a facção e serem transferidos para uma cela específica”, afirma Dias.
A diretora de saúde do CDP de Pinheiros 2, Eliane de Souza, afirmou que o Estado não tem nada a ver com essas proibições impostas por facções.
“Essas questões, como não poder tomar água no mesmo copo, são internas deles. Para nós, são todas pessoas privadas de liberdade com os mesmos direitos. Mas eles (LGBT) merecem uma atenção especial. Eles vêm da sociedade e muitas vezes sofrem exclusão dentro da própria família. Chegam no limite do ser humano, no direito de ir e vir, e merecem atenção”, afirma.
Ela diz que a unidade promove atividades e oficinas na unidade sobre cidadania, oferece roupas íntimas e tenta ao máximo tratar de maneira humanizada essa população. Na unidade, também é permitido manter cabelo comprido e todos chamam os gays e trans pelo nome social, inclusive os funcionários.
“Teve resistência dos agentes? Teve. Mas foram entendendo que tratar pelo nome social e atender as necessidades deles era melhor para toda a segurança. A gente também entende que segregar é um preconceito, então elas convivem com os héteros. À medida que o corpo funcional respeita, os presos respeitam também”, diz.
A unidade de Pinheiros 2 tem capacidade para 793 pessoas, mas hoje abriga 1601 presos. Entre eles, 254 são autodeclarados LGBT, o equivalente a 15% de sua população carcerária. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, São Paulo tem 236 mil presos. A SAP estima que entre 5 e 6 mil sejam LGBT.
O doutorando Francisco Nascimento, que também atua como agente penitenciário no Ceará, faz, ao lado de outros pesquisadores, um estudo nacional sobre a população carcerária LGBT e diz que cada presídio tem uma maneira diferente de lidar com a questão.
“As regras mudam de acordo com o espaço onde as prisões estão situadas. Há unidades do mesmo Estado, comandadas pela mesma facção, mas com regras diferentes. No Ceará, por exemplo, não é permitida nenhuma aproximação com gays. Quando há rebelião, por exemplo, os homossexuais são os primeiros a serem atacados, junto com criminosos que cometeram crimes tidos como ‘proibidos’, como estupro e pedofilia”, afirma.
O pesquisador conta que certa vez, um grupo de presos do Estado chegou a decapitar esses presos, que incluíam gays. Foram gravados vídeos de extrema violência exibindo pedaços de corpos e compartilhadas imagens por aplicativos de mensagem de celulares com a família dos mortos.
Depois de cumprir durante anos uma pena cheia de restrições em um ambiente insalubre, os presos se deparam com o retorno às ruas e a busca por um emprego. Se o peso de ter no histórico uma passagem é considerado um entrave para um preso heterossexual, no caso dos LGBTs é quase um atestado permanente de desemprego.
“É complicado porque a gente sai sem chão. A gente sai direto para uma casa de cafetina, para a rua, se prostituir. Porque a gente não vai sair daqui e ir direto para um emprego. Até você correr atrás, tirar documentos de novo. E até você achar alguém que te dê um emprego é muito difícil hoje em dia”, afirmou Grazy, que é natural de Belém do Pará e conta que a distância da terra natal é mais uma barreira.
A diretora de saúde de Pinheiros 2 diz que a unidade oferece curso de cabeleireiro e outras oficinas para que os internos aprendam uma profissão. Entre as atividades, eles fazem até mesmo ursos, que são doados para crianças do Hospital do Câncer.
“A gente quer que quando elas saírem daqui, tenham pelo menos um curso. Que fazer programas seja apenas uma opção delas”, afirma Eliane Souza.
Chica diz que fazer os trabalhos na unidade, como o crochê, é uma terapia. Ela não recebe visitas, mas tem um namorado na unidade. Seu maior sonho é fazer uma cirurgia plástica.
“Coloquei silicone na face muito cedo, quando eu tinha 18 anos. É óbvio que a pele ficou flácida e caiu, então eu pretendo levantar. Eu quero ter um trabalho, por mais simples que seja. O importante é não voltar para a cadeia. Vamos supor, se eu procurar uma ONG e falarem você vai ser faxineira de escola, eu vou aceitar porque eu vou ter meu salário, condições de pagar por um teto e quero terminar meus estudos, terminar o ensino médio”.
Da FSP