Professora de Harvard afirma: ‘Ciências humanas são tão importantes quando exatas e biológicas’
Sem os conhecimentos das ciências humanas “não é possível entender a sociedade”, diz a cientista política Danielle Allen, professora da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Em entrevista à BBC Brasil, Allen disse ver como “um erro” o plano do governo brasileiro de reduzir investimentos em faculdades de ciências humanas – como filosofia e ciências sociais – e se concentrar, segundo um tuíte do presidente, Jair Bolsonaro, em “áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina”.
O presidente escreveu que “a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”.
Para Allen, que dirige o Centro de Ética Edmond J. Safra de Harvard, a capacidade de uma sociedade de alcançar uma boa governança depende de ciências humanas como ciência social e filosofia, “porque são estas disciplinas que fazem esse tipo de trabalho”.
“Você não cria leis para ter uma boa governança com os conhecimentos de Engenharia e de Física. Sem os conhecimentos das ciências humanas não é possível entender a sociedade.”
“O trabalho do economista Herbert Simon, ganhador do prêmio Nobel, mostrou que os países mais ricos do mundo têm esta riqueza em grande parte por causa de uma boa governança. Em outras palavras, você não pode separar a qualidade da economia da qualidade da governança institucional”, diz Allen.
Governança é um termo usado para descrever como o processo de tomada de decisão e a forma como medidas são implementadas por instituições públicas para conduzir questões de interesse social e administrar recursos públicos.
Allen se dedica a estudar os conhecimentos e as habilidades necessários na condução de regimes democráticos. Autora de diversos livros sobre o tema, ela avalia que redução de investimentos em ciências humanas e sociais e o maior foco na educação de ciências exatas e biológicas geram uma menor participação dos cidadãos.
Ela argumenta que as “democracias de massa” em que vivemos hoje são produtos de dois tipos de conhecimento. “Com certeza, o tamanho de nossas populações, nossas capacidades tecnológicas e nosso potencial de saúde aumentaram drasticamente por causa das ciências biológicas e da engenharia, mas a razão pela qual temos instituições democráticas é por causa de disciplinas como filosofia, sociologia, direito, história, entre outras”, afirma Allen.
“São estas áreas de conhecimento que inventaram a democracia e permitiram não só criá-la, mas administrá-la. Nós nos esqueceremos de como administrar uma democracia se não investirmos nestas áreas de conhecimento.”
Allen reconhece que, em diferentes países do mundo, medidas semelhantes têm sido tomadas para incentivar o estudo de ciências exatas e biológicas. A cientista afirma que isso se deve à visão – que ganhou força nas últimas décadas – de que o desenvolvimento econômico e a distribuição igualitária dos ganhos de produtividade na sociedade são resultado da disseminação de conhecimentos em tecnologia.
“Governos estão tão focados nesta questão da combinação de crescimento e a distribuição equitativa de ganhos de produtividade que passaram a adotar essa posição de que precisam fomentar as habilidades em ciências exatas e biológicas. Isso é verdade, mas não podemos fazer isso com um custo de erodir nossa capacidade de ter uma boa governança.”
Ela argumenta ainda que é possível medir e analisar o retorno dos investimentos em ciências humanas tanto quanto com os resultados gerados por outras áreas de conhecimento, como mostrou o economista Herbert Simon.
“Boas leis, instituições estáveis e estruturas de governança produtivas aumentam a riqueza de uma sociedade. Todos estes de conhecimentos têm resultados mensuráveis, nós apenas nos esquecemos de medi-los.”
A cientista destaca ainda que grandes nomes da modernidade que são referência de criatividade nos dias de hoje tiveram uma educação superior baseada em ciências humanas, como, por exemplo, Steve Jobs, fundador da Apple.
“Disciplinas como filosofia, história e literatura nos levam a questionar o que devemos fazer, quais são os propósitos da humanidade, quais devem ser nossos objetivos”, diz Allen.
Ao mesmo tempo, diz ela, ciências biológicas e exatas normalmente nos levam a questionar como podemos atingir os objetivos traçados. “Você precisa questionar tanto o que devemos fazer quanto como devemos fazer. Você não pode abandonar as disciplinas que ajudam as pessoas a pensar sobre quais são os propósitos humanos.”
Por isso, ela defende que “ciências humanas são tão importantes quanto as ciências exatas e biológicas”: “Não é uma questão de priorizar uma área sobre a outra, você precisa de ambas. São dois campos poderosos e complementares para o bem da humanidade”.
Em uma transmissão ao vivo pelo Facebook, o ministro da Educação, o economista Abraham Weintraub, defendeu que o governo não está impedindo o estudo de ciências humanas. “Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio”, afirmou.
Allen diz ver como “lamentável” que o acesso a esse tipo de conhecimento possa passar a ser “privilégio de ricos”. “Deveria haver oportunidades iguais de acesso a este tipo de conhecimento, tão ligados a profundos impactos sociais.”
Na posse de Weintraub, Bolsonaro disse querer “uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece a aprender coisas que possam levá-las ao espaço no futuro”.
Isso gerou diversas críticas, especialmente nas redes sociais, de que o governo desestimula a formação de pessoas capazes de pensar criticamente.
Allen diz que, embora não possa comentar sobre as intenções do governo brasileiro sem ter acesso a informações que a permitam fazer algum julgamento, a redução do investimento em ciências humanas mina a capacidade de alguém participar da sociedade enquanto cidadão.
“O pensamento crítico e a capacidade de pensar sobre quais devem ser nossos objetivos enquanto sociedade é algo que precisa ser construído. É preciso ter prática nisso para se ter capacidade de participar efetivamente de uma democracia.”
Por este motivo, ela defende que o ensino de ciências humanas, como sociologia e filosofia, devem fazer parte do currículo escolar desde os primeiros anos, assim como com as ciências biológicas e exatas.
“É com o tempo que você constrói habilidades nas áreas de conhecimento. Quanto antes começar o ensino de ciências humanas, melhor. Se for só na universidade, você já começa atrasado.”
Da BBC