Ao criminalizar LGBTfobia, STF reafirma seu papel perante Legislativo
Há momentos em que um tribunal constitucional reafirma a razão pela qual existe. Agiganta-se. Esta quinta-feira (23) foi um desses dias. O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de seis ministros a favor da criminalização da LGBTfobia. A maioria dos ministros interpretou, portanto, que a Constituição determina que crimes de preconceito previstos na legislação penal igualmente punam discriminação contra orientação sexual e identidade de gênero.
Em termos práticos, a criminalização da LGBTfobia nada mais é do que garantir que crimes como impedir acesso a estabelecimento comercial ou público, negar oferta de emprego ou incitar preconceito se apliquem a LGBTs, protegendo-os. Não se trata de mordaça. Trata-se de direitos iguais.
Engana-se, no entanto, quem pensa que no STF estava em jogo tão somente a discriminação historicamente perpetuada contra LGBTs no Brasil, a qual nos torna o país mais violento para essa população.
Ao decidir não suspender o julgamento da criminalização da LGBTfobia, estava em julgamento ontem o papel do Tribunal frente ao Legislativo.
Um dia antes da votação no STF, o Legislativo pareceu acordar de seu sono de 31 anos, ao aprovar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado um substitutivo do senador Alessandro Vieira ao PL 672/2019, o qual prevê punição contra discriminação, intolerância e preconceito por sexo, orientação sexual e identidade sexual. Desde 1988, quando a Constituição Federal determinou que a lei deveria punir atos de discriminação, o Legislativo Federal não aprovou sequer uma lei que garantisse direitos LGBTs.
Um dia antes da votação no STF, a CCJ do Senado buscou tirar LGBTs de sua invisibilidade jurídica, fruto da própria inércia legislativa.
Ao iniciar a sessão no STF nesta quinta, os ministros debateram preliminarmente se o julgamento deveria ser suspenso diante da votação da CCJ no dia anterior. Nesse ponto, a decisão do STF foi histórica, por recolocá-lo como interlocutor respeitoso, mas contundente, frente ao Legislativo.
Com o peso que a posição de decano do Tribunal carrega, o ministro Celso de Mello foi enfático: não há crime de hermenêutica, lembrando expressão de Rui Barbosa do século 19 perante o mesmo STF. Juízes não devem ser punidos ou constrangidos por suas interpretações da Constituição, chegando a lembrar que membros do Legislativo reagiram às primeiras sessões do caso da criminalização da LGBTfobia com o descabido pedido de impeachment de alguns ministros do STF.
Seguido por seus pares —exceto pelo presidente do tribunal e pelo ministro Marco Aurélio— o decano reafirmou a grandeza do tribunal em tempos bicudos. Reafirmou a jurisprudência do STF em casos anteriores, no sentido de que a existência de um projeto de lei não impede que o tribunal decida sobre a demora legislativa.
Não está em jogo, no entanto, a qualidade da propositura legislativa em pauta na CCJ do Senado. STF respeitou o legislativo ao levar em consideração suspender o caso. Decidiu não fazê-lo em honra ao próprio entendimento anterior do tribunal.
A proposta legislativa aprovada na CCJ avança em pontos consideráveis. Inclui o termo “intolerância”, ao lado de “discriminação” e “preconceito”, expandindo o conceito das violações de direitos contra LGBTs. A proposta legislativa, ao contrário do que fora noticiado, não permite exceção geral a templos religiosos. A CCJ do Senado aprovou que a única exceção para templos religiosos seria para o crime de “impedir ou restringir a manifestação razoável de afetividade de qualquer pessoa em local público ou privado aberto ao público”. Poder-se-á debater a constitucionalidade de tal exceção, uma vez que ela não existe para templos religiosos no caso de racismo —ora equiparado pelo STF. No entanto, não se trata de uma exceção generalizada a todos os crimes de preconceito, o que é uma boa notícia.
O que esperar a partir daqui? Ao STF o que é do STF. O tribunal retomará o julgamento no próximo dia 5 de junho. Nessa ocasião, os demais cinco ministros poderão votar a favor ou contra a criminalização da LGBTfobia, embora a maioria já esteja formada. Enquanto tribunal, o Supremo poderá decidir se modulará ou não os efeitos de sua decisão, ou seja, se por dois terços de seus membros restringirá os efeitos da decisão para que valham a partir do trânsito em julgado ou outro momento a ser fixado. Ministros já indicaram que não, dada a urgência do caso: LGBTs morrem no Brasil a cada 16h em razão da LGBTfobia. Tal argumento dificultará outro adiamento do caso, dado que o presidente do tribunal já ressaltou diversas vezes que o caso já tomou muito tempo de deliberação do STF.
Ao Legislativo o que é do Legislativo. Se decidir acordar do sono profundo da inércia deliberante, o Legislativo pode assumir seu papel institucional e pela primeira vez afirmar direitos LGBTs, criminalizando a LGBTfobia. Caberá ao STF, mesmo se aprovada tal lei até dia 5 de junho, decidir se ela oferece proteção integral aos LGBTs.
Da FSP