Cristovam Buarque: Esse governo vai provocar o que parecia impossível, piorar a educação

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Enquanto estudantes protestavam em quase 200 cidades do país, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, justificava os cortes em audiência no Congresso devido à crise fiscal herdada do governo Dilma Rousseff e dizia que a prioridade da gestão Bolsonaro é ensino básico, fundamental e técnico.

A promessa, porém, não convence Cristovam Buarque, para quem a agenda do ministro Weintraub de combate ao “marxismo cultural” em escolas e universidades é de causar “arrepios”.

“Eu não vejo (o governo) com condições de fazer nada pela educação. Eu nunca pensei que um dia pudesse ter um governo que provocasse um retrocesso numa coisa tão atrasada como a educação brasileira. Mas o governo que está aí vai provocar um retrocesso, na educação de base e na universidade também”, critica.

Cristovam Buarque, que foi ministro da Educação no primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003) e saiu após ser demitido por telefone, tem como principal agenda a defesa da federalização do ensino básico, hoje competência dos municípios.

Ao comentar os governos do PT, seu antigo partido, ele acusa Lula e Dilma Rousseff de “concentrar os esforços no ensino superior e abandonar a educação de base”.

“E por que fez isso? Por razões eleitoreiras, porque a universidade dá voto, a educação de base não dá voto. O Lula conseguiu vender a ideia do consumo do diploma”, afirma.

“As pessoas entram na universidade para ter um diploma, não para ter conhecimento. O Lula conseguiu fazer isso, porque ele usou como uma ascensão (social), não como uma alavanca do progresso. Minha maior frustração foi essa”, reforça.

Buarque, que não conseguiu renovar seu mandato de senador pelo Distrito Federal na eleição de 2018, conversou com a BBC News Brasil de Recife, sua cidade natal, onde passa alguns dias entre palestras e um retiro na praia para escrever. Pretende lançar dois livros, um com diagnósticos sobre os erros dos governos “democráticos progressistas” e outro sobre o quer para o futuro do país.

Diz que está “achando a vida ótima”, mas conta que sente saudade dos debates no Congresso. “Outro dia recebi novos parlamentares na minha casa, disse que me senti um passarinho com saudade da gaiola. Eu saí tão feliz da gaiola que era o Senado, mas, quando vejo essa crise, penso que podia estar falando lá”.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O presidente disse que os manifestantes que foram às ruas contra os cortes nas universidades são “massa de manobra” e “idiotas úteis”. Qual sua avaliação dos protestos?

Cristovam Buarque – Com todo respeito, essa fala do presidente não merece comentário. Quanto às manifestações em si, eu fico muito feliz em ver a universidade despertando, mas, ao mesmo tempo, fico triste que não estejam despertando para um o contingenciamento tão ou mais grave do que o contingenciamento financeiro (das universidades), que é o contingenciamento estrutural por causa da má qualidade da educação básica.

Eu não vi pela televisão um cartaz contra a existência ainda de analfabetismo de adultos no Brasil, não vi um cartaz pedindo a federalização da educação de base, não vi pedindo o aumento do piso salarial do professor da educação de base, não vi pedindo que se consiga aumentar o número de jovens que terminam o ensino médio com qualidade.

Eu fico alegre com o despertar, mas fico triste que só se desperte na hora do (contingenciamento do) ensino superior.

BBC News Brasil – Por que o ensino superior mobiliza mais que a educação básica?

Buarque – Primeiro, porque nenhum governo quis até aqui trazer o assunto da educação de base para o governo federal. Não existe Ministério da Educação de Base no Brasil. O Ministério da Educação, na verdade, é o Ministério do Ensino Superior. A educação de base é deixada para os municípios.

BBC News Brasil – Mas o Ministério da Educação não tem um papel de coordenação?

Buarque – Tem teoricamente, mas não consegue. Como coordenar sem executar? Os professores são municipais, os recursos são municipais e estaduais. A única contribuição do governo federal para a educação de base são os livros didáticos, a merenda e o Fundeb (um fundo que repassa recursos a Estados e municípios), mas o salário dos professores vem dos municípios, coitados, que não podem pagar mais que os R$ 2 mil do piso salarial, e centenas nem estão conseguindo cumprir o piso.

Então, eu fico feliz com as manifestações, e triste que a pauta se limita ao ensino superior. O gargalo está na educação de base e a gente não consegue mobilizar a sociedade para bater nesse ministro por causa da educação de base. E não consegue porque ele vai dizer que essa é uma questão dos prefeitos. Nós precisamos ter um ministério para a educação de base.

BBC News Brasil – O governo diz que não tem recursos. Como poderia federalizar o ensino básico em meio à crise fiscal?

Buarque – Tem que ser gradual. Não tem dinheiro para fazer no Brasil inteiro, mas dá para fazer primeiro em cem cidades, depois 200 (o país tem 5.570 municípios). Até porque a federalização que eu defendo não é o governo federal assumir o sistema municipal que está aí. Não vai adiantar nada.

A minha proposta é começar a implementação de um novo sistema federal, que vá substituindo o municipal ao longo de 30 anos, pagando R$ 15 mil de salário para novos professores, com turmas de 30 alunos.

Se a economia crescer em média 2% ao ano, após 30 anos, o novo sistema custaria 6,5% do PIB. É muito dinheiro, por isso eu eu falo em 30 anos, porque tem que ser com responsabilidade fiscal. Sem isso, por mais dinheiro que você ponha na educação, se vier inflação, a educação piora, porque os professores vão ter que parar a cada três meses para pedir aumento de salário. Então, não vai dar resultado.

A Coreia do Sul, que hoje tem uma das melhores educações do mundo, levou 40 anos.

BBC News Brasil – O processo de melhorar a educação básica é longo. Como vê a capacidade e o interesse desse governo em iniciar esse processo?

Buarque – Eu não vejo com condições de fazer nada pela educação. Esse governo vai provocar algo que parecia impossível: um retrocesso.

Eu sempre lutei minha vida toda contra o estado atrasado da educação. Eu nunca pensei que um dia pudesse ter um governo que provocasse um retrocesso numa coisa tão atrasada como a educação brasileira. Mas o governo que está aí vai provocar um retrocesso.

Eu já tive uma grande frustração com o nosso governo, dos democratas progressistas, Lula, Dilma. Com esse governo aí eu não tenho nem frustração, porque eu não esperava nada dele.

BBC News Brasil – O senhor está preocupado com a possibilidade de piorar o que já é ruim?

Buarque – Exatamente. O que era perto de zero, vai ficar quase zero. Vai ter um retrocesso na educação de base e na universidade também.

Agora, o Bolsonaro é passageiro. O problema é que no Brasil nós temos dois problemas fundamentais. Uma é que nós brasileiros não acreditamos plenamente que o Brasil pode ser campeão mundial de educação, que podemos ter dez prêmios Nobel em 30 anos. Na mente do brasileiro, somos bons para o futebol, não para a cabeça.

E, segundo, é que está entranhado no Brasil que filho de pobre não estuda na mesma escola que filho de rico. Do mesmo jeito que durante 350 anos a mente brasileira não acreditava que brancos e negros tinham o mesmo direito. Foi preciso 300 anos de aceitação, 50 anos de luta abolicionista, até que um dia a população percebeu que era uma vergonha ter escravidão.

Mas a população não descobriu ainda que é uma vergonha ter escola para rico diferente de escola para pobre.

BBC News Brasil – Qual foi sua principal frustração na Educação com o governo do PT?

Buarque – Concentrar os esforços no ensino superior e abandonar a educação de base. E por que fez isso? Por razões eleitoreiras, porque a universidade dá voto, a educação de base não dá voto. O Lula conseguiu vender a ideia do consumo do diploma.

As pessoas entram na universidade para ter um diploma, não para ter conhecimento. E de fato, uma família que tem um filho com diploma na parede, mesmo que não traga conhecimento que lhe permita um emprego bom, essa família fica muito feliz. O Lula conseguiu fazer isso, porque ele usou como uma ascensão (social), não como uma alavanca do progresso. Minha maior frustração foi essa.

BBC News Brasil – Voltando aos protestos, o governo justifica o contingenciamento dizendo que não há recursos suficientes. Os cortes são inevitáveis?

Buarque – É provável que falte dinheiro, mas está sobrando em outro canto. Tire de outro lugar. Não justifica tirar dinheiro da educação por causa da crise num país que, apesar da recessão, ainda tem um PIB de mais de R$ 6 trilhões.

O ministro da Fazenda deu uma ideia interessante: usar o dinheiro recuperado da Petrobras (R$ 2,5 bilhões) para as universidades. Aquele dinheiro que o (procurador da Lava Jato Deltan) Dallagnol criou um fundo, por que não ir para as universidades?

Eu apoio os protestos, mas eu estou frustrado também porque ainda não é luta. As pessoas não estão indo para a rua lutar, elas estão indo reivindicar. A diferença é que ao reivindicar você pede mais dinheiro e ao lutar você pede mais dinheiro dizendo de onde deve tirar.

Eu não vi uma faixa dizendo para que o dinheiro que foi recuperado da corrupção fosse para a educação. Eu não vi uma faixa sugerindo acabar com subsídios e isenções para a indústria automobilística. São R$ 300 bilhões! O corte das universidades é na casa de R$ 2 bilhões. O governo abriu mão de R$ 300 bilhões, e não foi esse não, foi o governo da Dilma.

BBC News Brasil – Diante da crise, o senhor acha que seria correto instituir mensalidade?

Buarque – A cobrança de mensalidade não vai reduzir o rombo das universidades. O número dos que podem pagar um custo de uma universidade é tão pequeno que eles vão deixar de ir para a universidade. Em todo o lugar do mundo que a universidade é paga ela é financiada por bolsas de estudo. Alguém tem que pagar (as bolsas), tem que aumentar imposto de alguém, fazer com que os empresários ofereçam bolsa.

BBC News Brasil – O governo Bolsonaro considera que as universidades estão dominadas por um espectro ideológico de esquerda. Segundo o ministro da Educação, é preciso expurgar o marxismo cultural dessas instituições. O senhor vê uma unidade ideológica dentro das universidades?

Buarque – Não tem (unidade). É uma babaquice desses caras. Ninguém falava em (Karl) Marx mais. Bolsonaro despertou Marx, que estava dormindo. O marxismo é uma das teorias sociais mais belas que teve no mundo, mas ficou superada pela realidade. A robótica, a inteligência artificial, a globalização, a crise ecológica aposentaram o marxismo.

Eles são contra também o marxismo cultural nas escolas. Nossas escolas não ensinam nada, como é que podem ensinar marxismo cultural, se é que existe isso. Eu confesso que já estudei muito Marx, sei o que é marxismo, mas não sei o que é marxismo cultural. Para mim Marx era um filósofo da economia.

Chega a dar arrepio um país que não tem escola ver os seus dirigentes preocupados com ensino de marxismo cultural. Nossas escolas, na maior parte das cidades do interior, não são escolas, são restaurantes mirins, as crianças vão por causa da merenda.

Mas o Bolsonaro não dura mais que 4, 8, 12 anos, é um fenômeno passageiro. A gente tem que pensar é o pós Bolsonaro. E aí me preocupo. Felizmente, estou vendo resistências, mas não estou vendo nas oposições propostas alternativas.

BBC News Brasil – Como tem sido a vida sem mandato político?

Buarque – Maravilhosa. Tenho feito palestras, escrito muito. Vou ficar agora cinco dias na praia, mas escrevendo, porque eu não gosto de areia (risos). Estou com dois livros concluídos: O Brasil que eu quero, um dicionário amoroso com 90 palavras do que eu quero para o Brasil, e Onde foi que nós erramos?, nós os democratas progressistas, de Itamar (Franco) a (Michel) Temer.

Então, estou achando a vida ótima. Outro dia recebi novos parlamentares na minha casa, a Tabata Amaral (PDT-SP) e mais alguns. Ouvindo eles falar eu disse: “estou me sentindo um passarinho com saudade da gaiola”. Eu saí tão feliz da gaiola que era o Senado, mas, quando vejo essa crise, penso que podia estar falando lá. Que bom que você me ligou.

Da BBC