Decretos das armas são ilegais e, sobretudo, inconstitucionais
A expedição do decreto compete privativamente ao presidente da República (e, claro, também aos chefes dos Poderes Executivos estadual e municipal). Esse ato normativo – que tem conteúdo e alcance restritíssimo –, visa a fiel execução da lei em função da qual ele é expedido. Decreto não pode inovar. Tal e como aconteceu com o Decreto 9.785/2019. No tocante, por exemplo, dentre outros dispositivos, com o art. 20, § 3.º e incisos. A inovação, na espécie, pressupunha – e necessariamente reclamava –, a existência de lei ordinária. (1)
Decerto, ambos os ‘Decretos das Armas’ – o de 9.785, de 7 de maio de 2019 e 9.797 de 21 de maio de 2019 –, são ilegais. E, sobretudo, inconstitucionais. Dado que extrapolam – com passadas largas – o estrito limite regulamentar. Na Lei:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. (Constituição Federal)
Art. 99. O conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regras de interpretação estabelecidas nesta Lei. (Código Tributário Nacional)
Importa destacar, ademais, que o Decreto 5.123/2004, revogado, já havia regulamentado o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003).
Também vale o registro de que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, ao expedir esses Decretos – o das Armas –, excedendo manifestamente os estreitos limites regulamentares, previstos constitucional e legalmente, cometeu, ao menos em tese, ato ilícito civil, com violação chapada do art. 187 do Código Civil, que estabelece:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O novo Decreto sobre as armas – assim como o seu antecessor –, configura, no limite, incontornável abuso de direito (gênero), realizado mediante evidente fraude à jurisdição constitucional (espécie) do Supremo Tribunal Federal. É que – e é imprescindível acentuar esse ponto – os ‘Decretos das Armas’ burlam/contornam o que decidido, pelo Supremo, no julgamento da ADI 3112, quando foi declarada a constitucionalidade do Estatuto do Desarmamento. Não é demais enfatizar que, nesse julgamento, o Tribunal Pleno do Supremo (apenas) declarou a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 do Estatuto do Desarmamento. Na ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL AFASTADA. INVASÃO DA COMPETÊNCIA RESIDUAL DOS ESTADOS. INOCORRÊNCIA. DIREITO DE PROPRIEDADE. INTROMISSÃO DO ESTADO NA ESFERA PRIVADA DESCARACTERIZADA. PREDOMINÂNCIA DO INTERESSE PÚBLICO RECONHECIDA. OBRIGAÇÃO DE RENOVAÇÃO PERIÓDICA DO REGISTRO DAS ARMAS DE FOGO. DIREITO DE PROPRIEDADE, ATO JURÍDICO PERFEITO E DIREITO ADQUIRIDO ALEGADAMENTE VIOLADOS. ASSERTIVA IMPROCEDENTE. LESÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AFRONTA TAMBÉM AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. ARGUMENTOS NÃO ACOLHIDOS. FIXAÇÃO DE IDADE MÍNIMA PARA A AQUISIÇÃO DE ARMA DE FOGO. POSSIBILIDADE. REALIZAÇÃO DE REFERENDO. INCOMPETÊNCIA DO CONGRESSO NACIONAL. PREJUDICIALIDADE. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA.
I – Dispositivos impugnados que constituem mera reprodução de normas constantes da Lei 9.437/1997, de iniciativa do Executivo, revogada pela Lei 10.826/2003, ou são consentâneos com o que nela se dispunha, ou, ainda, consubstanciam preceitos que guardam afinidade lógica, em uma relação de pertinência, com a Lei 9.437/1997 ou com o PL 1.073/1999, ambos encaminhados ao Congresso Nacional pela Presidência da República, razão pela qual não se caracteriza a alegada inconstitucionalidade formal.
II – Invasão de competência residual dos Estados para legislar sobre segurança pública inocorrente, pois cabe à União legislar sobre matérias de predominante interesse geral.
III – O direito do proprietário à percepção de justa e adequada indenização, reconhecida no diploma legal impugnado, afasta a alegada violação ao art. 5.º, XXII, da Constituição Federal, bem como ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.
IV – A proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”, mostra-se desarrazoada, porquanto são crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade.
V – Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente.
VI – Identificação das armas e munições, de modo a permitir o rastreamento dos respectivos fabricantes e adquirentes, medida que não se mostra irrazoável.
VII – A idade mínima para aquisição de arma de fogo pode ser estabelecida por meio de lei ordinária, como se tem admitido em outras hipóteses.
VIII – Prejudicado o exame da inconstitucionalidade formal e material do art. 35, tendo em conta a realização de referendo.
IX – Ação julgada procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003.
Os ‘Decretos das Armas’ (9.785/2019 e 9.797/2019), ilegais e inconstitucionais, portanto, têm de ser fulminados.
*Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
(1) Seção VIII
DO PROCESSO LEGISLATIVO
Subseção I
Disposição Geral
Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:
III – leis ordinárias. (Constituição Federal)
(2) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9785.htm
Do Estadão