Entenda as estratégias da extrema direita adotadas no Brasil e no mundo
Amanhece na zona rural espanhola. Um homem caminha em câmera lenta, corre e pula uma cerca. Como em um filme de Hollywood, o homem atravessa um campo de trigo enquanto roça as espigas com as mãos. Ao fundo soa uma música enquanto uma voz narra: “Se você não ri da honra porque não quer viver entre traidores… Se você anseia por novos horizontes sem desprezar suas origens… Se você mantém intacta sua honradez em tempos de corrupção…”. Nasce o sol. O homem sobe um caminho íngreme, atravessa um rio e é pego por uma tempestade. “Se você sente gratidão e orgulho por aqueles que, de uniforme, guardam o muro… Se você ama sua pátria como ama seus pais…”. A música atinge o clímax, o homem está no topo da montanha e a voz culmina: “… você saberá que está conseguindo fazer a Espanha grande outra vez”. As últimas palavras que aparecem na tela são “Fazer a Espanha grande outra vez”.
O slogan é a versão espanhola do “Make America Great Again”. O homem é Santiago Abascal, e isto, é claro, é uma propaganda do Vox, o partido político que mais cresce na Espanha. Nas eleições gerais de 2016 — o ano do vídeo —, o Vox, com seu nacionalismo espanhol de macho alfa e cinematográfico, não conquistou uma única cadeira. Pouco depois, um site espanhol publicou um artigo que perguntava: “Por que ninguém vota em Santiago Abascal?”. Mas em 28 de abril deste ano, o apoio ao Vox entre o eleitorado passou de 0% a 10%: ganhou 24 deputados no Congresso. Sua ruidosa presença na campanha eleitoral ajudou a impulsionar a participação a um de seus níveis mais altos em anos, já que os espanhóis estavam ansiosos para apoiar o Vox ou votar contra.
Como isso aconteceu e o que isso tem a ver com o caso de Donald Trump? A velocidade da explosão do Vox é, em muitos aspectos, uma história exclusivamente espanhola, marcada por uma reação nacionalista a uma crise separatista regional, pelo crescimento da polarização e da fragmentação do que costumava ser um sistema bipartidário. O colapso econômico de 2009 reduziu a confiança nos partidos políticos tradicionais e levou a uma forte reação da extrema esquerda. O Vox é o contragolpe.
No entanto, sua história também pertence a uma visão mais global e ampla das estratégias de campanhas tradicionais e digitais desenvolvida pela extrema direita europeia e pela direita alternativa norte-americana (alt-right) que agora é usada em todo o planeta. O uso das redes sociais para agudizar a polarização, os sites criados especificamente para alimentar narrativas polarizadas, os grupos privados de fanáticos que compartilham teorias da conspiração, uma linguagem que enfraquece deliberadamente a confiança em políticos e jornalistas “convencionais”: tudo isto também ajudou o partido que quer “fazer a Espanha grande outra vez” abandonar a periferia e se tornar conhecido. Ao que se deve acrescentar que conta com financiamento em parte de origem estrangeira que não lhe chega diretamente, mas é canalizado através de organizações com as quais compartilha opiniões, uma forma de financiamento político que é familiar aos norte-americanos, mas nova na Europa.
Em março e abril, pouco antes das eleições de 28 de abril, fiz algumas viagens a Madri para conversar com militantes do Vox e outras figuras, incluindo ex-líderes do PP, de centro-direita, e do PSOE, de centro-esquerda, os dois partidos que dominaram a política nacional durante três décadas desde a Transição. O sentimento na capital espanhola era um pouco como o que havia em Londres logo antes do referendo do Brexit ou como o de Washington antes da vitória de Trump. Tive uma forte sensação de déjà-vu: mais uma vez, uma classe política estava prestes a ser atingida por uma onda de ira.
No outrora previsível mundo da política espanhola, isso representa uma mudança considerável. Em 2018, jornalistas e analistas espanhóis perguntavam por que, na Espanha, ao contrário da França e da Itália, não havia partidos de extrema direita. Muitos supunham que o fantasma da ditadura de Franco, que culminou apenas nos anos setenta, era o responsável por essa “exceção espanhola”. Enquanto ninguém politicamente ativo hoje na França ou na Alemanha lembra de Vichy ou dos nazistas, uma grande quantidade de espanhóis lembra hoje do nacionalismo ostentoso de Franco, que nos comícios usava o lema “Arriba Espanha!” e, por essa razão, sempre o rejeitaram.
Mas durante o ano passado, o Vox quebrou esse tabu. Em sua conta no Twitter, Abascal publicou uma série de tuítes que começou na primavera de 2018 e continua até hoje. Cada tuíte tem um link de um vídeo ou de uma fotografia de um recinto repleto de gente. Os tuítes mais recentes têm a hashtag #EspañaViva e comentários eufóricos. Esses tuítes mais os constantes ataques do partido às “falsas” pesquisas de opinião dos meios de comunicação “parciais” tinham um propósito: fazer com que qualquer seguidor do Vox sentisse que fazia parte de um movimento enorme. Abascal fala de um “movimento patriótico de salvação da unidade nacional” e, de alguma forma, era isso.
Alimentado por separatismos
O vice-secretário do Vox, Iván Espinosa de los Monteros, vem de uma rica família da nobreza espanhola. Quando o Vox ataca “as classes dominantes”, refere-se aos meios de comunicação e às classes políticas, não à alta burguesia ou a sua classe empresarial. Ainda mais importante é o fato de que Espinosa é um usuário especialista em redes sociais, assim como sua esposa, Rocío Monasterio, que também é política do Vox.
Eu segui os dois no Twitter durante um tempo e notei o quanto eram eficientes criando espetáculo. Por meio do Twitter, Espinosa convocou um protesto público quando uma universidade de Madri, sua alma mater, cancelou uma conferência que ele faria. Monasterio acumulou milhares de likes por declarar que iria boicotar qualquer mobilização relativa ao Dia Internacional da Mulher e depois por tuitar um vídeo em que enfrentava feministas irritadas manifestando-se com imagens de mulheres e homens de mãos dadas.
Espinosa também é responsável pelas “relações internacionais” do partido, e a mensagem principal que quis me transmitir foi sobre a natureza excepcionalmente espanhola do Vox. Tomando o café da manhã em um café em Madri que, segundo disse, não fica longe de sua empresa imobiliária, afirmou que o Vox tinha muito pouco em comum com outros partidos europeus de “ultradireita”. “O Vox é frequentemente e facilmente associado a outros partidos e a coisas novas que estão acontecendo em outras partes do mundo… mas não é realmente verdade.”
Em vez disso, argumenta que o Vox surgiu em grande parte por causa do fracasso da Espanha em lidar com seus prolongados conflitos regionais. Abascal, ex-membro do Partido Popular (PP, de centro-direita), é natural do País Basco. Seu pai, também político do PP, era amplamente conhecido como alvo do ETA, o grupo terrorista basco. Por essa razão, afirma ter uma pistola Smith & Wesson consigo o tempo todo, um hábito inusual na Espanha que fez com que ganhasse o carinho de uma pequena minoria de proprietários de armas. No entanto, a crise da secessão catalã, iniciada em 2017, foi o que colocou o Vox no centro da política espanhola. José María Aznar, ex-presidente do Governo de centro-direita, me disse que o Vox era “uma consequência da inação do Governo durante o golpe de Estado da Catalunha”, e quase todos com quem falei em Madri disseram mais ou menos o mesmo.
A Catalunha é uma província rica, onde muitos dos seus habitantes falam uma língua diferente, o catalão. A região tem uma longa história e alguns velhos ressentimentos datam de vários séculos. Depois que as forças lideradas por Franco venceram a Guerra Civil e impuseram uma ditadura, qualquer indício de separatismo catalão foi severamente reprimido. Em contraste, a Constituição espanhola de 1978 concedeu a autonomia não só à Catalunha e ao País Basco, cujo movimento separatista tinha uma ala terrorista, mas a todas as comunidades espanholas. Desde então, gerou-se uma discussão constante sobre a relação entre o Governo central e as comunidades autônomas. Em 2017, o Governo regional da Catalunha, estreitamente controlado pelos separatistas, decidiu realizar um referendo sobre a independência. O Tribunal Constitucional o declarou ilegal. Uma clara maioria de catalães boicotou o referendo –um evento emocionante, arruinado pela brutalidade policial– mas os que votaram escolheram a independência.
No caos posterior, o Senado autorizou a imposição de um Governo direto sobre a Catalunha e convocou novas eleições nessa comunidade. Alguns líderes separatistas fugiram para o exílio, enquanto outros foram presos e levados a julgamento. Na Espanha se permite que advogados particulares sejam coacusadores durante os processos judiciais públicos. O Vox aproveitou essa legislação para entrar com uma ação contra os separatistas. Na prática, isso significou que, durante o julgamento público amplamente televisionado, o “advogado do Vox” e o secretário-geral do partido, Javier Ortega Smith, estiveram presentes junto aos promotores do Governo.
Para um pequeno partido que defende a unidade espanhola, se opõe à autonomia regional e quer proibir os partidos separatistas e prender o presidente catalão, é difícil pensar em uma maneira mais eficaz de evocar emoções fortes ou provocar uma forte reação contrária. Quando o Vox organizou um de seus comícios em Barcelona nesta primavera, Ortega Smith chamou o Governo catalão de “organização criminosa”. No entanto, a maioria da cobertura da mídia se concentrou nos anarquistas que atiraram pedras, queimaram barricadas e protestaram violentamente contra os visitantes “fascistas”. Em outras palavras, foi outra vitória de imagem para o Vox. Abascal tuitou uma fotografia de si mesmo consolando uma mulher que havia sido ferida nas manifestações. Espinosa fez o mesmo. Ironicamente, se mostrar como “vítimas da brutalidade” foi a mesma estratégia com a qual os separatistas catalães procuram ganhar apoio nacional e internacional.
“Não têm ideias”
A Catalunha não foi o único assunto espanhol que ajudou o Vox. Assim como outros novos partidos europeus (não necessariamente de direita), como o Movimento 5 Estrelas na Itália, o Vox selecionou uma série de assuntos subestimados cujos adeptos tinham começado a se colocar em contato e se organizar na Internet. Em geral, os movimentos políticos bem-sucedidos costumavam ter uma única ideologia. Agora, algumas vezes, combinam várias. Pensemos no processo de uma gravadora que quer criar uma nova banda pop: faz um estudo de mercado, escolhe o tipo de rostos condizentes com a pesquisa e então apresenta a banda ao público que lhe é mais favorável. Os novos partidos políticos são assim: agora se podem agrupar diferentes temas, reempacotá-los e depois comercializá-los usando o mesmo tipo de mensagens direcionadas que se sabe que funcionaram em outros lugares.
A oposição ao separatismo catalão e basco, ao feminismo e ao casamento igualitário, à imigração, especialmente a muçulmana; a ira contra a corrupção; o tédio com a política tradicional; um punhado de temas, como a propriedade de armas e a caça, com os quais algumas pessoas se importam profundamente, enquanto outras nem sabem que existem; uma pitada de apelos libertários, talento para a zombaria e um leve ar de nostalgia, embora não se saiba exatamente do quê: todos esses ingredientes foram usados para a criação do Vox. Na maior parte, esses temas pertencem ao campo da política de identidade, não ao da economia. Espinosa se refere a eles como questões que se opõem à “esquerda”, não em referência apenas ao partido de ultraesquerda marxista Podemos, mas também ao PSOE, de centro-esquerda, ao menos em sua mais recente encarnação. Especificamente, ele designa o Governo socialista que controlou a Espanha entre 2004 e 2010, sob o mandato do presidente José Luis Rodríguez Zapatero, que aprovou uma série de leis para flexibilizar as restrições sobre o aborto, o divórcio e o casamento igualitário, e para estender proteções especiais, incluindo julgamentos em tribunais especializados — que Espinosa chama de “tribunais de homens” — para as vítimas da violência doméstica. Descreve essas iniciativas como “todas as leis que Zapatero pôde conceber para atacar a família, o bastião do conservadorismo”.
Zapatero também reabriu o debate sobre o questionamento da história, aprovando uma Lei de Memória Histórica que, entre outras coisas, condenou formalmente o regime franquista e eliminou os símbolos franquistas dos espaços públicos. Isso foi uma novidade para a Espanha: durante as duas primeiras décadas depois da transição democrática, os Governos espanhóis simplesmente se esquivaram do assunto. Para o Vox, esse assunto é uma mera nuance e não uma questão fundamental, pelo menos em público. No entanto, a exigência de ter “liberdade para falar sobre a nossa história” é uma frase que Abascal usa nos comícios.
Espinosa afirma que o “extremismo” do Governo de Zapatero mais o extremismo dos separatistas, junto com o fracasso posterior da centro-direita para combatê-los, é o que justifica a posição do Vox: “Ninguém questiona a nação em outros lugares, ninguém questiona suas instituições básicas, sua bandeira, seu hino, seu presidente, suas instituições democráticas, seu Tribunal Supremo”. Espinosa ilustra seu argumento usando dois saleiros. “Olhe”, diz, colocando os dois juntos, “estas são as políticas espanholas nos anos oitenta e noventa”. E “aqui” — coloca um garfo a várias polegadas de distância — está a Espanha atual: “Levada para a extrema esquerda. O centro e a direita não reagem, não contra-atacam. Não têm ideias”.
Esse tipo de linguagem não só enfurece os separatistas, mas também aqueles que se identificam com a centro-esquerda. Como também enfurecem as provocações do Vox. Em dezembro, antes das eleições locais na Andaluzia, Abascal postou um vídeo de si mesmo montando um cavalo, recriando a “reconquista” medieval da Espanha diante da ocupação muçulmana, ao ritmo da trilha sonora de O Senhor dos Anéis. Em outra ocasião, o partido criou um vídeo que mostrava uma notícia falsa anunciando a imposição da lei islâmica na Andaluzia e a transformação da Catedral de Córdoba em uma mesquita. Cada uma dessas ações causou uma reação contrária. Mais retuítes para o Vox, mais fúria do outro lado. Espinosa sabe disso. “Somos parte dessa polarização? Infelizmente o somos. Não estou dizendo que não…”. No entanto, do seu ponto de vista, “a esquerda” é a extremista, não o Vox.
Espinosa fala um excelente inglês — passou parte da infância nos Estados Unidos e frequentou a Escola de Negócios da Universidade de Northwestern — e, ocasionalmente, tuíta nesse idioma. Muitas vezes entrou no Twitter para atacar a cobertura da imprensa estrangeira sobre o Vox, especialmente quando compara o partido com grupos de extrema direita da França e da Itália. Uma vez felicitou ironicamente um jornalista do Guardian por sua “história politicamente correta”. Tem a mesma queixa sobre a imprensa espanhola. “Parabéns ao EL PAÍS”, escreveu recentemente, “por ser capaz de incluir as expressões ‘ultraconservador’, ‘ultranacionalista’ e ‘extrema direita’ em apenas cinco parágrafos. Goebbels os admiraria”.
A verdade é que houve inúmeros contatos entre o Vox e outros partidos políticos de “extrema direita” europeus. Em 2017, como mostra a conta do Vox no Twitter, Abascal se encontrou com Marine Le Pen, a líder francesa de extrema direita. Na véspera da eleição, ele tuitou seu agradecimento a Salvini, o líder da extrema direita italiana, por seu apoio. Abascal e Espinosa foram recentemente a Varsóvia para uma reunião com líderes do partido governista polonês, nativista [que favorece os nativos de um país] e antiplural, e Espinosa também apareceu na Conferência de Ação Política Conservadora, em Washington.
Mesmo assim, Espinosa está certo quando minimiza esses encontros públicos, considerando-os como reuniões de cortesia. As relações importantes entre o Vox e a extrema direita europeia, bem como com a alt-right norte-americana, estão se desenvolvendo em outro lugar.
“Restaurando a ordem natural”
Os nacionalistas de extrema direita ou os partidos nativistas na Europa raramente trabalhavam juntos até recentemente. Ao contrário dos sociais-democratas europeus, que sempre compartilharam uma visão de mundo, ou inclusive dos democratas-cristãos de centro esquerda europeus, que desde os anos cinquenta foram o verdadeiro motor que impulsionou a União Europeia, os partidos nacionalistas, arraigados em suas próprias histórias particulares, costumavam estar em conflito quase por definição. A extrema direita francesa nasceu dos debates sobre Vichy e a Argélia. A extrema direita italiana foi historicamente moldada pelos descendentes intelectuais de Mussolini, incluindo sua própria filha. As tentativas de confraternização sempre terminaram afundando por velhas controvérsias. A extrema direita da Itália e da Áustria, por exemplo, romperam relações recentemente depois que começaram a discutir — acaba sendo engraçado — sobre a identidade nacional do Tirol do Sul, uma província no norte da Itália onde se fala principalmente alemão.
Há pouco isso começou a mudar. A extrema direita europeia encontrou um grupo de temas com os quais todos podem estar de acordo. A oposição à imigração, especialmente muçulmana. A promoção de uma visão de mundo socialmente conservadora. Dito de outra forma: o desagrado com o casamento igualitário ou com os taxistas africanos é algo que até austríacos e italianos, em desacordo sobre a localização de sua fronteira, podem compartilhar.
Os vínculos e conexões são visíveis na Internet. Entre os que analisaram a ascensão do Vox, encontra-se uma firma de análise de dados de Madri chamada Alto Data Analytics. Especializada na aplicação de inteligência artificial na análise de dados públicos de sites como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube, entre outras fontes, a Alto elaborou há pouco vários mapas coloridos sobre as interações dos espanhóis nas redes, com o objetivo de identificar campanhas de desinformação que buscassem distorcer as conversas digitais. Os mapas mostraram três conversas polarizadas e periféricas, ou seja, “câmaras de ressonância”, cujos membros praticamente só conversam entre si: a conversa sobre a autonomia da Catalunha, a conversa sobre a extrema esquerda e a conversa sobre o Vox.
Não foi uma surpresa, como tampouco foi descobrir que a maioria dos “usuários com atividade anormalmente alta” — bots ou pessoas reais que publicam constantemente e talvez recebendo algum pagamento por isso — faziam parte dessas três comunidades, especialmente a do Vox, que reunia mais da metade deles. Poucos dias antes das eleições, o Instituto para o Diálogo Estratégico (ISD, em inglês) — uma organização britânica que rastreia o extremismo na Internet na qual trabalho como conselheira e colaboradora — descobriu uma rede de quase 3.000 “usuários com atividade anormalmente alta”, que haviam bombardeado o Twitter no ano passado com cerca de 4,5 milhões de mensagens anti-islâmicas e pró-Vox. As origens da rede não são claras, e não se sabe quem a financia. Inicialmente, foi configurada para atacar o Governo de Nicolás Maduro na Venezuela, mas o objetivo mudou após o ataque terrorista de Barcelona em 2017. Nos últimos anos, a rede se concentra em histórias atemorizantes de imigração cuja intensidade aumenta gradualmente. Parte do conteúdo promovido são materiais extraídos de redes extremistas, e quase todos são alinhados com as mensagens publicadas pelo Vox. Em 22 e abril, por exemplo, uma semana antes das eleições espanholas, a rede postou no Twitter imagens daquilo que seus membros descreviam como uma revolta num “bairro muçulmano na França”, quando o que mostravam, na verdade, era um protesto recente contra o Governo na Argélia.
A Alto e o ISD perceberam também outra singularidade: os simpatizantes do Vox, sobretudo os “usuários com atividade anormalmente alta”, têm muitíssimas probabilidades de publicar conteúdos e materiais de um grupo de fontes muito específico: um conjunto de sites conspirativos, em geral criados pelo menos há um ano, e às vezes administrados por uma única pessoa, que publica grande quantidade de artigos e títulos muito partidários.
Curiosamente, a equipe da Alto encontrou os mesmos tipos de sites na Itália e no Brasil nos meses prévios às eleições de 2018, nos dois países. Em ambos os casos, os portais começaram a publicar material partidário — na Itália sobre a imigração, no Brasil sobre corrupção e feminismo — durante o ano prévio à votação. E serviram para alimentar e amplificar vieses ideológicos antes mesmo que fizessem parte da política convencional.
Na Espanha há meia dúzia de portais como esses, alguns profissionais e outros claramente feitos por aficionados. Alguns, de origem desconhecida, parecem ter sido criados sob medida: um dos portais mais obscuros tem exatamente o mesmo estilo e disposição que um portal brasileiro pró-Bolsonaro, quase como se ambos tivessem sido desenhados pela mesma pessoa. No dia anterior às eleições espanholas, sua notícia principal foi uma teoria conspirativa: George Soros, o judeu milionário nascido na Hungria que tem sido representado como o demônio pela extrema direita na Europa, ajudaria a orquestrar uma fraude eleitoral. Soros não era uma figura muito conhecida na Espanha até que o Vox o incluiu no debate.
Do outro lado da balança está o DigitalSevilla, que em geral informa sobre a Andaluzia, e o CasoAislado, que publica constantemente histórias sobre imigrantes e crimes. Ambos parecem administrados por equipes muito reduzidas e financiadas pelo sistema de publicidade do Google. Aparecem com muita frequência na câmara de ressonância do Vox. O dono do DigitalSevilla — segundo o EL PAÍS, um homem de 24 anos sem experiência como jornalista — produz manchetes que comparam a presidenta do Partido Socialista da Andaluzia com a “mulher malvada de Game of Thrones”, em ocasiões, conseguiu atrair mais leitores que os jornais tradicionais. Espinosa me disse que o dono do CasoAislado é “um sujeito que simpatiza conosco, um aficionado. Garanto que não pagamos para nenhum deles.”
Os norte-americanos reconhecerão sites desse tipo: funcionam de formas não muito diferentes das utilizadas pelo InfoWars e o Breitbart, os portais infames e enviesados que operaram da Macedônia durante a campanha presidencial dos Estados Unidos, e pelas páginas do Facebook criadas pela inteligência militar russa. Todos eles produzem notícias carregadas, conspirativas e polarizadoras com manchetes indignantes, prontas para serem enviadas às câmaras de ressonância. Às vezes, esses sites e as redes que os promovem na Europa trabalham de maneira coordenada. Em dezembro, as Nações Unidas reuniram os líderes mundiais para discutir a migração numa cúpula não muito pretensiosa que produziu um acordo com poucos compromissos: o Pacto Mundial para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. O acordo recebeu pouca atenção da mídia. Mas a Alto conseguiu fazer com que, na véspera da reunião, cerca de 50.000 usuários publicassem no Twitter teorias da conspiração sobre o convênio, centenas deles alternando francês, alemão, italiano e, em menor medida, espanhol e polonês. Com um funcionamento similar ao da rede espanhola que promove o Vox, esses usuários promoveram material de portais conspirativos, usando imagens idênticas, com links entre si e retuítes feitos de diversos países.
Uma rede internacional semelhante começou a operar após o incêndio da catedral de Notre Dame, em Paris. O ISD rastreou milhares de publicações de pessoas afirmando terem visto muçulmanos “comemorando” o incêndio, assim como outras de pessoas que publicavam rumores e fotos pretendendo provar que o fogo havia sido provocado. O CasoAislado montou uma publicação quase de imediato, declarando que “centenas de muçulmanos” comemoravam o incêndio, com uma imagem em que parecia que pessoas com sobrenomes árabes publicavam no Facebook emoticons sorridentes sob as fotos do incêndio. Poucas horas depois, Abascal expressou pelo Twitter seu rechaço a aquelas “centenas de muçulmanos” e usou a mesma imagem, embora vinculando-a com uma publicação do teórico da conspiração da direita alternativa dos EUA, Paul Watson. Este, por sua vez, identificou o ativista francês de extrema direita Damien Rieu como a fonte. “Os islamistas, que querem destruir a Europa e a civilização ocidental, comemorando o incêndio de #NotreDame”, escreveu Abascal. “Levemos isso a sério antes que seja tarde.”
Esse mesmo tipo de memes e imagens se expandiram pelos grupos de seguidores do Vox no WhatsApp e no Telegram. Incluíam, por exemplo, um meme em inglês que mostrava Paris “antes de Macron” com a Notre Dame ardendo, e outra “depois de Macron” com uma mesquita em seu lugar; assim como uma notícia em vídeo — sobre outro incidente sem relação com Notre Dame — que detalhava detenções e a descoberta de um carro com bombas de gás perto do lugar do incidente. Foi o exemplo perfeito de como a alt-right, a extrema direita e o Vox propagaram a mesma mensagem ao mesmo tempo, e em múltiplos idiomas, para tentar motivar as mesmas emoções em toda a Europa, a América do Norte e outros lugares.
Esses grupos também têm conexões fora da Internet. Tendo em vista o apelo gerado pelos problemas sociais, criaram-se organizações pan-europeias que usam um modelo norte-americano de financiamento e promoção. Uma delas é a CitizenGo, fundada em Madri em 2013. A CitizenGo é o braço internacional da HazteOir.org, uma organização espanhola criada há mais de uma década. Segundo Neil Datta, secretário do Foro Parlamentar Europeu sobre População e Desenvolvimento e autor de um relatório sobre a direita cristã europeia, a CitizenGo integra uma rede maior de organizações europeias que procuram “restaurar a ordem natural”: eliminar os direitos dos homossexuais, restringir o aborto e os métodos anticoncepcionais e promover uma agenda explicitamente cristã. Essa rede compila listas de e-mails e se mantém em contato com seus seguidores. Eles dizem que chegam a nove milhões de pessoas.
O conselho da CitizenGo inclui Brian S. Brown, o cofundador norte-americano da Organização Nacional para o Casamento, e Alexey Komov, da divisão russa do Congresso Mundial de Famílias (WCF, em iglês). Komov tem sido associado ao empresário russo Konstantin Malofeev. Na prática, ele atua como vínculo entre Malofeev e a direita religiosa norte-americana. O líder da CitizenGo, Ignacio Arsuaga, aparece com frequência em eventos pan-europeus, incluindo a reunião em março do Congresso Mundial de Famílias em Verona, na Itália. De acordo com o portal do WCF, entre seus participantes estivam Salvini, ministro do Interior do Governo da Itália e líder da Liga Norte (de extrema direita), assim como um grupo de políticos húngaros, um alto sacerdote russo e até sua alteza Glória, princesa de Thurn e Taxis (aristocrata alemã).
Segundo o grupo de pesquisa não governamental OpenDemocracy, Darian Rafie, líder de uma organização norte-americana chamada ActRight, também assessora a CitizenGo e ajuda a mantê-la financeiramente. (Para contextualizar um pouco: a página do Facebook da ActRight faz piada da presidenta da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, e pergunta constantemente quanto o presidente Barack Obama pagou para matricular sua “filha maconheira” na Universidade Harvard). Rafie disse a um repórter da OpenDemocracy que tinha “arrecadado muitos fundos” para Trump. Contatos desse tipo não são incomuns: a OpenDemocracy identificou outra dezena de organizações dos EUA que financiam ou apoiam ativistas conservadores na Europa. E não só por lá: Viviana Waisman, da Women’s Link Worldwide, organização de direitos humanos e da mulher com sede em Madri, me contou que costuma se deparar com a linguagem da CitizenGo pelo mundo inteiro. Entre outras coisas, a organização popularizou a expressão “ideologia de gênero” — um termo inventado pela direita cristã e usado para descrever uma grande variedade de temas, da violência doméstica até os direitos dos homossexuais— na África e na América Latina, além da Europa.
Na Espanha, a CitizenGo ganhou fama estampando lemas provocadores em ônibus que percorrem as cidades. As mensagens irritam as pessoas e atraem muita atenção para a CitizenGo e para o Vox. As coincidências entre ambos não são um segredo: nos últimos anos, a organização entregou seu prêmio anual a Abascal, Ortega Smith e outras pessoas que agora são políticos do Vox, assim como a ativistas católicos e ao líder iliberal húngaro Viktor Orbán.
No período prévio às eleições de abril — as primeiras em que o Vox se mostrava como uma formação com chances eleitorais —, o dinheiro, a rede e o talento da CitizenGo mostraram-se muito úteis. Como já havia feito, a organização lançou a campanha “Vote em valores”. Desta vez, os ônibus foram pintados com frases que buscavam menosprezar os líderes de partidos que não fossem o Vox. O grupo criou um site com listas mostrando quais partidos estavam de acordo com seus “valores”, deixando claro que o único que tinha valores era o Vox.
Trata-se de um padrão conhecido na política norte-americana. Assim como nos EUA é possível apoiar os Comitês de Ação Política (PAC, em inglês), que geram publicidade em torno dos temas defendidos por determinados candidatos, agora os norte-americanos, os russos e a princesa de Thurn e Taxis também podem fazer doações para a CitizenGo e, assim, apoiar o Vox. Esse modelo de financiamento não tem sido muito utilizado na Europa. Na maioria dos países, o financiamento político tem limitações. Em alguns deles (não na Espanha), o financiamento externo é proibido. Um grande alvoroço foi gerado ao redor da organização The Movement, de Stephen K. Bannon, que se estabeleceu na Europa para ajudar os candidatos de extrema direita a vencer as eleições. No entanto, embora muitos europeus provavelmente não tenham percebido, os estrangeiros que querem financiar a extrema direita europeia podem fazer isso há muito tempo. O último relatório da OpenDemocracy diz que Arsuaga informou a um jornalista que o dinheiro dado ao seu grupo poderia “indiretamente” apoiar o Vox, já que “hoje” estão “totalmente alinhados”. O dinheiro que organizações como a CitizenGo gastam nas eleições importa menos que as campanhas que organizam nos meses que antecedem esses pleitos. Como disse Arsuaga ao repórter da OpenDemocracy, “ao controlar o entorno dos políticos, você acaba controlando-os também”. O que realmente importa é a batalha pelos valores nos meios de comunicação, na educação, nas instituições culturais e, acima de tudo, nas redes sociais. A Europa, incluindo os países que antes buscavam o consenso — Holanda, Alemanha e agora a Espanha — começam a se parecer mais com os EUA, onde a batalha pelos valores se transformou numa guerra aberta.
Entendendo os vínculos da extrema direita
Quando perguntei a Rafael Bardají sobre o vídeo “Fazer a Espanha grande outra vez”, ele sorriu: “Essa ideia foi minha. Foi uma espécie de piada do momento.” Bardají se uniu ao grupo dirigente do Vox pouco depois de Espinosa e Abascal. Como eles — e como a maioria no partido —, é um ex-membro do PP que acabou desiludido com o centrismo e a moderação. Trabalhou com Aznar no início dos anos 2000 e ficou conhecido como o assessor que mais pressionou para que a Espanha se unisse à invasão dos EUA ao Iraque.
Por isso é considerado “neoconservador”, embora não se saiba ao certo o que isso significa no contexto espanhol. Bardají também ganhou o apelido de Darth Vader, algo que o diverte (colocou a foto do vilão de Star Wars no Twitter). “Fazer a Espanha grande outra vez”, explica, “foi uma espécie de provocação… A intenção era irritar a esquerda um pouco mais.” Este, claro, é um conceito muito familiar. “Faça isso porque ofende o establishment.” “Humilhe os progressistas.” Um clássico sentimento breitbartiano. Sim, Bardají conhece Bannon. E os dois têm um amigo em comum. Mas Bardají acha engraçada a relevância que as pessoas dão para esse fato. Os jornalistas espanhóis, me disse, “dão a Bannon uma importância que ele não tem.”
Não está claro se Bannon, ex-diretor do Breitbart e ex-diretor de estratégia do presidente Trump, influenciou Bardají ou vice-versa. Bardají me disse que teve a oportunidade de visitar a Casa Branca logo depois da vitória de Trump. Disse-me que estava em contato com o conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn e com seu sucessor, H.R. McMaster, e discutiram sobre a primeira visita de Trump à OTAN, bem como sobre o discurso que faria em Varsóvia, aquele em que enfatizou a necessidade de defender o mundo cristão do islamismo radical: “A aspiração de civilizar, o modo pelo qual o Ocidente deve se defender…, estávamos completamente em sintonia”, disse-me Bardají. O número de muçulmanos espanhóis hoje é relativamente baixo — a maioria da imigração espanhola vem da América Latina — e o dos EUA é ainda menor. Mas a ideia de que a civilização cristã precisa se redefinir diante do inimigo islâmico tem, é claro, uma ressonância histórica especial na Espanha, como nos Estados Unidos pós-11 de setembro e pós-Iraque.
Há outros aspectos que revelam que o Trumpworld e o Vox são simbióticos. Bardají, que diz também conhecer Jason Greenblatt, o negociador da Administração Trump no Oriente Médio, tem laços de longa data com o Governo israelense. Bardají me disse que em 2014 organizou para o Vox a visita de um assessor de relações públicas de Israel: “Eu o trouxe da equipe que venceu as eleições para Netanyahu”. Nesse mesmo ano, o primeiro candidato derrotado do Vox para o Parlamento Europeu, Alejo Vidal-Quadras Roca, recebeu uma generosa doação — de mais de 800.000 euros, divididos entre dezenas de doações individuais — da Organização Mundial dos Mujahidin do Povo Iraniano (MEK), uma organização/culto iraniano que se opõe à República Islâmica. O MEK tem uma reputação ambígua em Washington — foi classificado como organização terrorista em algumas ocasiões —, mas tem alguns aliados: tanto o conselheiro de Segurança Nacional John Bolton quanto o advogado de Trump Rudolph W. Giuliani fizeram discursos em seu evento anual em Paris. Esses vínculos compartilhados entre o Vox e a Administração Trump não sugerem uma conspiração, mas sim interesses e amigos em comum há anos. Mais do que qualquer outra coisa, são pessoas que veem que têm inimigos em comum e conseguiram adotar com o tempo uma visão similar do mundo. Assim como Espinosa, Bardají reconhece a polarização da política espanhola e, além disso, pensa que é algo permanente: “Estamos entrando em um período em que a política está se tornando algo mais, é uma guerra com outros meios — não queremos ser assassinados, queremos sobreviver… Acredito que agora na política quem ganha leva tudo. Não é um fenômeno exclusivo da Espanha”.
Bardají diz que, até agora, o Vox foi pequeno demais para orquestrar muita propaganda, e muito menos fazer parte de um movimento internacional: “Fomos um partido pequeno com um orçamento limitado”. Espinosa disse o mesmo, como fez Vidal-Quadras, que me disse que o dinheiro do MEK acabou quando ele deixou o partido. Foi um reconhecimento pessoal por suas lutas passadas. Não há razão para não acreditar neles.
Mas o fato é que muitos outros, na Europa e nos Estados Unidos, têm pressionado e promovido os temas que se tornaram a principal agenda do partido. Como o ex-presidente Aznar disse, o Vox é uma “consequência”, embora não apenas, do separatismo catalão. É também consequência do trumpismo, dos sites de conspiração, das campanhas digitais da alt-right e da extrema direita internacional e, especialmente, da reação conservadora que vem se desenvolvendo em todo o continente há anos.
De certo modo, é a maior das ironias: nacionalistas, antiglobalistas, pessoas céticas em relação às leis internacionais e muitas outras organizações agora trabalham juntos, rompendo fronteiras, por causas comuns. Compartilham contatos. Obtêm dinheiro dos mesmos fundos. Aprendem com os erros uns dos outros, copiam o vocabulário uns dos outros. E estão convencidos de que, juntos, algum dia, vencerão.
Anne Applebaum é jornalista. Seu último livro, ‘Fome vermelha’, e ‘Gulag’, pelo qual ganhou o Prêmio Pulitzer, foram publicados em espanhol pela editora Debate em janeiro.
Do El País