Falsa cura para Aids e autismo é vendida mesmo após proibição da Anvisa
Uma substância química nociva aos humanos — o dióxido de cloro (ClO2), utilizado na fabricação de produtos de limpeza —, que vem sendo promovida como um medicamento para curar autismo e doenças como Aids e câncer, continua sendo ofertada no Brasil mesmo após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibir sua comercialização.
Também conhecido como MMS (suplemento mineral milagroso, da sigla em inglês), o produto é comercializado em diversas páginas da internet. Na última semana, a Anvisa fiscalizou e tirou do ar anúncios online que ofereciam a substância.
“O dióxido de cloro não tem aprovação como medicamento em nenhum lugar do mundo. A sua ingestão traz riscos imediatos e a longo prazo para os pacientes, principalmente às crianças”, escreveu a agência, em nota.
A Anvisa também disse estar “alertando as Vigilâncias Sanitárias dos estados e municípios para que fiscalizem o comércio irregular dessa substância”, e lembrou que a prática é, além de uma infração sanitária (sujeita a multa), um crime contra a saúde pública, de acordo com o Código Penal.
No entanto, propagandas ainda podem ser encontradas com facilidade em páginas e perfis nas redes sociais e em sites especializados no produto. Há também vídeos em que personagens que se apresentam como médicos incentivam o uso do MMS, explicando os supostos efeitos terapêuticos da substância.
O site de compra e venda Mercado Livre, que foi notificado pela Anvisa, disse ter removido os anúncios e bloqueado permanentemente as contas dos anunciantes, embora outras ofertas, com descrições genéricas, continuem oferecendo o dióxido de cloro na página.
Outras lojas online, como a “Lojinha do Kefir”, ainda anunciam o produto em suas páginas, vendidos por até R$ 65,99.
O servidor público Alexis Costa conta que chegou a comprar doses da suposta medicação, mas desistiu de oferecer ao seu filho de 3 anos devido ao mau cheiro, além de não confiar na eficácia do produto.
— Existe uma série de oportunistas em cima desse tema, inclusive médicos, que prometem a cura do autismo com os mais variados e mirabolantes métodos, assim como esse produto, que nada mais é que um água sanitária melhorada — conta ele.
Costa diz ter testado “grande parte desses medicamentos” em seu filho, mas diz que apenas a terapia ocupacional ajudou a melhorar o quadro clínico dele.
Segundo Bruno Palazzo Nazar, professor de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não há medicamentos que comprovadamente ajudem na melhora do quadro de crianças com autismo.
O que pode ocorrer, em alguns casos, é uma amenização dos efeitos secundários da doença, como falta de atenção, mas apenas com os tratamentos indicados e aprovados pelos órgãos reguladores.
— Há uma grande má-fé por parte das pessoas que oferecem esses medicamentos como cura para o autismo. Eles se aproveitam da situação vulnerável dos pais, que buscam amenizar a dor dos seus filhos. É importante frisar que essas substâncias não foram submetidas aos procedimentos comuns aos demais medicamentos, para atestar a eficácia e os efeitos colaterais, por exemplo, o que representa um sério risco em caso de ingestão — afirma.
Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), Sylvio Provenzano, não há qualquer estudo científico que, de fato, comprove a eficácia do produto.
Origem mitológica
Assim como suas curas milagrosas sem nenhuma comprovação científica, a história da origem MMS também é envolta em lendas.
Seu principal divulgador foi o americano Jim Humble, um cientologista que, segundo afirma, trabalhava em uma mineração de ouro na Guiana, na fronteira norte do Brasil, e que teria chegado ao produto após pesquisar os motivos que levaram à cura de dois de seus funcionários após diagnóstico de malária.
A partir da descoberta, Humble fundou a Igreja Genesis II de Saúde e Cura, também conhecida como Igreja do MMS, da qual é o líder, além de lançar o livro “MMS: Guia de recuperação da saúde”.
Apesar de ter sido proibido em inúmeros países e de seus supostos efeitos benéficos nunca terem sido comprovados, o MMS continua sendo promovido como panaceia por comerciantes que rechaçam os alertas da comunidade científica sobre os riscos envolvidos em seu uso.
Nos grupos que divulgam o produto, várias pessoas pedem depoimentos aos que teriam obtido resultados com o tratamento, mas não há qualquer resposta. Na internet, além dos anúncios de venda e das comunidades, há ainda vídeos em que médicos explicam como funciona a substância.
Um deles foi gravado pelo cardiologista e nutrólogo Lair Ribeiro, que defende o produto atribuindo sua proibição a supostos interesses contrariados com a venda de “um negócio que cura tudo, sem efeito colateral e a preço de banana”.
À reportagem, no entanto, o médico disse que o Brasil “pulou etapas” no estudo dos efeitos do produto, e que o modo como ele é comercializado deve respeitar a legislação:
— No Brasil, você não sabe quem está produzindo, e está sendo feito de maneira desorganizada, isso tem que ser submetido ao processo normal por que os medicamentos passam, para confirmarem os seus efeitos. As agências fiscalizadoras têm que regulamentar sim. Além disso, o MMS é usado no mundo inteiro, e há uma extensa bibliografia sofre o tema. O que significa que as funções do produto devem ser estudadas a fundo.
A Anvisa baniu, desde junho de 2018, “a fabricação, distribuição, comercialização e uso” do produto no país, e afirma que ele “não tem aprovação como medicamento em nenhum lugar do mundo”.
De O Globo